Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber, se possível, as datas em que as palavras quiromancia e ortodontia apareceram na língua portuguesa. Obrigado.

Resposta:

Não é possível indicar datas precisas, porque as fontes consultadas (Dicionário Houaiss, Dicionário Etimológico e Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Dicionário Etimológico Nova Fronteira, de António Geraldo da Cunha, e Corpus do Português, de Michael J. Ferreira e Mark Davies) apenas permitem estimar o período em que a palavra foi introduzida ou identificar a data do documento mais antigo (numa colecção de textos, isto é, num corpus) em que ela ocorre. Por outras palavras, é sempre possível que o uso da palavra a datar seja anterior ao seu registo nas fontes disponíveis ou que o seu uso só se tenha generalizado mais tarde, apesar de algumas ocorrências esporádicas em períodos precedentes. Mesmo assim, proponham-se as seguintes datações:1

Quiromancia

A atestação mais antiga será de finais do século XVII (em D. Luís Xavier de Meneses, Portugal Restaurado, vol. I, 1679; vol. II, 1698; cf. Dicionário Houaiss).

Ortodontia

Termo da odontologia que terá aparecido no século XX (cf. Dicionário Etimológico, de António Geraldo da Cunha), embora não se consiga precisar o ano ou a década. De notar, porém, que, na segunda metade do referido século, a palavra já vinha sendo registada em dicionários gerais, como o Grande Dicionário de Língua Portuguesa, de José Pedro Machado.

1 Em vez de «data de aparecimento», quando se fala da história de uma palavra, é mais adequado falar em datação, termo usado em lexicologia: «indicação da data (milênio, século, meio século, quartel do século, década,...

Pergunta:

Ultimamente, tenho percebido o uso cada vez mais freqüente (ou frequente, pelo novo Acordo Ortográfico) da palavra não como prefixo de negação com relação a um adjetivo ou substantivo posterior como em: não-nascido (o que não nasceu) e não-ajustamento (ato de não ajustar). O que me chama atenção é a sutil diferença semântica entre usar o não e outro prefixo que indique negação: desajustamento, assim, me parece significar o «ato de fazer com que fique sem ajuste», enquanto não-ajustamento seria «o ato de não ajustar, de deixar de ajustar». Essa percepção estaria correta? De fato há uma diferença semântica entre usar um não e usar, se for possível, um prefixo como in ou des?

Muito obrigado!

Resposta:

A diferença semântica que aponta é plausível, porque não com verbos marca simplesmente a negação do conteúdo desses verbos, enquanto des- corresponde não só a negação mas também a uma oposição a que pode estar associada um depreciação (ver M. H. Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 965; Li Ching sobre a formação de palavras com prefixos em português actual, Boletim de Filologia, n.º 22, pág. 139).1 Com efeito, «não fazer» tem o sentido sentido de «abster-se de agir», enquanto desfazer assume a acepção de  «agir reduzindo em fragmentos, pedaços» (ver Dicionário Houaiss). Com substantivos (normalmente deverbais, isto é, derivados de verbos) o comportamento afigura-se semelhante: um não-ajustamento é a simples ausência de ajustamento, enquanto um desajustamento pode ser o resultado da alteração de um ajustamento prévio ou uma uma falta de ajustamento depreciativamente encarada.

Contudo, este valor opositivo de des- não é generalizável aos adjectivos; neste caso, o valor é negativo, igual ou muito próximo de não (ibidem): não-leal/desleal. Mesmo assim, é possível detectar uma depreciação ou um reforço da negação em certos contextos: «um combatente não-leal ao rei» vs. «um combatente desleal ao rei» (ver nota 1).

Em relação ao contraste entre não e in-, a diferença parece mínima, mas ainda é possível detectar um matiz de intensificação no prefixo i...

Pergunta:

No 1.º ano do 1.º ciclo, como se ensina às crianças a divisão silábica de, por exemplo, carro, sossegado, pêssego, etc.? De acordo com o manual Pasta Mágica, a divisão silábica surge como aprendi na antiga 1.ª classe: guitarragui/ta/rra. Contudo, a professora do meu filho faz exercícios em que considera esta divisão errada, pois separa as palavras da seguinte forma: gui/tar/ra; car/ro; sos/se/ga/do; pês/se/go. Não estará a professora a fazer confusão com translineação? Creio que a um nível de 1.º ano do 1.º ciclo as crianças aprendem a noção de sílaba em termos fonéticos e não em termos gráficos (aqui, sim, será a translineação). O importante neste nível de aprendizagem é que a criança tenha a noção de separação baseada no som. Será que eu e as pessoas da minha geração aprendemos mal e o manual escolhido pelo colégio onde está o meu filho está errado? Será que algo mudou na nossa língua em termos de divisão silábica e não dei por isso? E aqui reforço que, no meu tempo de estudante, aprendi que uma sílaba é um fonema (som) ou um conjunto de fonemas (sons) pronunciado numa só emissão de voz. Assim, a palavra guitarra, dividida silabicamente, será gui/ta/RRA, pois os dois rr são um mesmo fonema (som). Será que até na minha formação universitária nas cadeiras de linguística me enganaram?! A noção de translineação, salvo erro, será iniciada ou em fins do 2.º ano ou no 3.º ano do 1.º ciclo, e aí, sim, a palavra será separada <...

Resposta:

Maria João Freitas, Dina Alves e Teresa Costa, em O Conhecimento da Língua: Desenvolver a Consciência Fonológica (Lisboa, Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular, pág. 16, n.º 6) confirmam a distinção feita pela consulente nos seguintes termos:

«Em casos como carro ou massa, [...] as sequências gráficas rr e ss representam, respectivamente, o som [R] e o som [s]. Em contexto lectivo, ao pedir-se a translineação de palavras deste tipo, a resposta é car-ro e mas-sa. Porém, se se pedir aos alunos a divisão silábica, a reposta deve ser ca-rro e ma-ssa. Os dígrafos rr e ss funcionam como os dígrafos nh, lh ou ch: cada dígrafo representa um só som, respectivamente, [R], [s], [ɲ], [ʎ] e [ʃ].»1

Quanto ao momento em que a noção de translineação é apreendida, verifica-se que o termo correspondente surge só na lista de itens de funcionamento da língua que dizem respeito ao 3.º ano do 1.º ciclo do ensino básico em Portugal (ver programa de Língua Portuguesa do 1.º ciclo, pág. 158, em vigor à data de publicação desta resposta), num contexto assim formulado:

«Decompor palavras em sílabas (para efeitos de translineação).»

Pergunta:

O problema da tradução de termos científicos a partir do inglês, por sua vez do latim: crustose, foliose e fruticose. Eu e os meus colegas traduzimos para crustáceo, foliáceo e fruticuloso. Há quem traduza para crustoso, folioso, fruticuloso... e o assunto tem originado pequenas discussões sempre que nos encontramos. Quem está correcto? Tenho quase a certeza de que somos nós, mas nunca se sabe. Outra dúvida: existe o termo squamulose, que não é bem escamoso porque pretende descrever escamas mais pequenas, ou seja, "esquamulas", logo "esquamuloso". Estas palavras existem em português? Obrigada pela paciência.

Resposta:

1. Sobre crustose

Em português existem como adjectivos crustáceo, crustoso e crostoso, todos a significarem «recoberto de crosta (ou crusta)». Segundo o Dicionário Houaiss, todos eles têm uso especializado, em carcinologia (morfologia botânica).

2. Sobre foliose

Folioso não está atestado como termo especializado nos dicionários gerais; no entanto, o Grande Dicionário da Porto Editora regista-o como derivado de folia, no sentido de «em que há folia, brincadeira ou divertimento». Para o domínio científico, existe folhoso como termo especializado, significando «cujo talo apresenta apêndices, subdivisões ou expansões (filídios ou filódios) semelhantes a folhas (diz-se de planta, esp. de hepática)» (Dicionário Houaiss); e foliáceo, com duas acepções científicas: em morfologia zoológica – «em forma de folha (diz-se de qualquer estrutura ou órgão)» – e em morfologia botânica – «que é laminar (diz-se de qualquer órgão ou estrutura vegetal)».

3. Sobre fruticose

Tanto o Dicionário Houaiss como o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, registam fruticoso e fruticoloso. O Dicionário Houaiss indica que estes termos são sinónimos que em morfologia botânica significam «semelhante a arbusto; frutescente» e «que é ereto e ramificado, semelhante a um diminuto arbusto (diz-se de talo ou de talófita, esp. de líquen)»; a entrada de fruiculoso

Pergunta:

Sendo de Castelo Branco, ao mudar-me para Évora, fui "criticado" por uma maneira minha de falar que passarei a explicar. Se eu falar lentamente, direi: «A água está quente», p. ex. na oralidade formal. Porém, ao falar numa corrente familiar e com amigos, ao falar mais rapidamente, para tornar a frase menos complicada de dizer (inconscientemente...), direi algo do género: «Aiágua xtá quente.»

Erro ao tornar inconscientemente a frase mais simples de dizer?

Ou, cada vez que falo informalmente, tenho de "silabar" cada palavra dafrase?

Para terminar, gostaria de saber se é correcto que um professor exija que eu diga «Eu vi ú cão» (em vez de «eu vi o cão»), "Hugo" (em vez de "Hugo") e "coalho" em vez de "coelho".

Desde já obrigado e parabéns pelo magnifico estado deste site.

Resposta:

Actualmente, há uma maior tolerância para com as pronúncias regionais, mesmo no registo formal. Não acho, por isso, haver erro na inserção (ou epêntese) de um "i" entre uma palavra terminada por "-a" e outra começada por um "a-" (aberto ou fechado) tónico em sequências como «a água» (=«a-i-água») ou «a Ana» (=«a-i-Ana»); trata-se de um processo característico dos dialectos setentrionais do português europeu. Em Évora, certamente se observarão traços dialectais na pronúncia local: por exemplo, a tendência para monotongar o "ei" medial de maneira ("manêra") ou o ão de não antes de outra palavra («nã sei»).

Quanto às pronúncias apontadas pelo consulente, nas duas primeiras, tal como estão descritas, não se percebe a diferença. No entanto, a terceira, "coalho", é por certo a pronúncia da palavra coelho no dialecto de Lisboa, a qual se representa figuradamente e com maior adequação por "coâlho" (transcrição fonética: [ku`ɐʎu]), com o chamado «á fechado». Visto que o consulente é estudante de Teatro, admito que lhe seja necessário muitas vezes adaptar-se à pronúncia-padrão do português europeu, que, quer se goste, quer não, absorveu muitos traços dialectais da capital — por exemplo, a pronúncia "â" ([ɐ]) da letra e antes de consoantes pré-palatais (veja, fecha) e palatais (espelho, venho).