Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Queria saber se a palavra preconceito é composta por aglutinação. Obrigada.

Resposta:

Não é. É historicamente uma palavra derivada por prefixação. No entanto, distingue-se nela o prefixo átono pre- que dá lugar a palavras derivadas que adquirem um sentido autónomo, diferenciado de palavras em que ocorre a forma tónica do prefixo pré-, como pré-conceito, nas quais se conservam os significados composicionais, isto é, os significados dos elementos constituintes. Com efeito, um preconceito é um pensamento ou uma atitude intolerantes, enquanto um pré-conceito é algo que preexiste ao conceito.

Cf. Quando o preconceito passa pelas nossas redes sociais

Pergunta:

Na frase «A menina ficou encantada com as histórias do avô», qual é a função sintáctica de «com as histórias»? É equivalente a uma passiva? «Pelas histórias»?

Resposta:

O particípio encantada adquiriu uma certa autonomia em relação ao paradigma verbal de que provém, que é o do verbo encantar. Trata-se de um adjectivo participial, como muitas vezes se diz na gramática tradicional. Não estamos, portanto, na presença da típica construção passiva, uma vez que a expressão «com as histórias da avó» é interpretada com valor causal («por causa das histórias da avó») e tem, portanto, a função de modificador com valor de causa (adjunto adverbial na nomenclatura gramatical brasileira).1

Assinale-se que, embora seja possível substituir a preposição com por por («A menina ficou encantada pelas histórias da avó»), não é isto indicativo de estarmos claramente na presença de um agente da passiva. É o que nos diz E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, pág. 434/435):

«Nem todo termo introduzido pela preposição por funciona como complemento de agente, principalmente se apresenta o traço não-animado, referente a uma coisa, quando deve ser classificado como adjunto circunstancial de causa ou meio. Neste caso, por é comutável por outra preposição (p. exemplo, com) [...]:

Ficaram aborrecidos pelas falsas promessas.

[...] a experiência comunicada em pelas falsas promessas [...] pode ser expressa mediante outra construção:

Ficaram aborrecidos com (por causa de

Pergunta:

Parece-me estranha, na frase apresentada pelo consulente Nuno Pinho Melo em 5/2/2009, a coocorrência das conjunções e e todavia, embora admitida pelos distintos consultores Carlos Rocha e Rui Gouveia. A par da evidente redundância, pois ambas têm valor adversativo, ainda há o empobrecimento do estilo e da concisão.

«O homem corria, mas era lento» ou «O homem corria, e era lento» ou «O homem corria, todavia era lento». Mais simples e mais elegante.

Resposta:

Do ponto de vista estilístico, talvez a frase ganhasse com as reformulações propostas pelo consulente. Contudo, é possível associar à conjunção coordenativa copulativa ou aditiva conjunções, advérbios e locuções conjuncionais ou adverbiais que, além de ligarem orações, correspondem também a conectores intertextuais:

«O homem corria e, no entanto/todavia/contudo, era lento.»
«O homem corria e, mesmo assim/apesar disso, era lento.»
«(Por um lado) o homem corria e, por outro (lado), era lento.»

E. Bechara (Moderna Portuguesa Gramática Portuguesa, pág. 322/323) considera que este tipo de unidades tem natureza adverbial e mostra que, além de não terem uma posição rígida na oração, são compatíveis com conjunções coordenativas como nem (exemplos da pág. 323):

(1) a) «Eles não chegaram nem todavia deram certeza da presença.»1

     b) «Eles não chegaram nem deram, todavia, certeza da presença.»

     c) «Eles não chegaram nem deram certeza da presença, todavia.»

Se as coordenadas em (1) se tornarem afirmativas, obtemos exemplos que legitimam a frase «O homem corria e, todavia, era lento»:

(2) a) «Eles não chegaram e, todavia, deram certeza da presença.»2
     b) «Eles não chegaram e deram, todavia, certeza da presença.»
     c) «Eles não chegaram e deram certeza da presença, todavia.»

1 No Dicionário Houaiss, todavia é o mesmo que «mas, contudo, porém, no entanto, entretanto». Assinale-se, contudo, que a

Pergunta:

Gostaria que me informassem da existência de provérbios e expressões populares relacionados com a caça e a sua explicação.

Desde já, o meu agradecimento pessoal e profissional.

Resposta:

Encontra uma lista razoável de provérbios que mencionam a caça enquanto metáfora de diferentes vivências e situações em O Livro dos Provérbios Portugueses (Lisboa, Editorial Presença, 1999), de José Ricardo Marques da Costa. Por exemplo:

sofrimento, desilusão esforço: «Caça, guerra e mores, por um prazer cem dores.»

surpresa, decepção: «Donde se não espera é que sai o coelho.»

surpresa, esperança: «De uma fraca toca sai um bicho bom.»

injustiça, oportunismo: «Enquanto uns batem o mato, os outros apanham a caça.»

imprudência, falta de prevenção ou de meios: «Ir à caça sem espingarda.»

segredo, astúcia: «Para caçar, calar.»

competição, oportunidade, perda de actualidade: «Quem vai à caça perde o lugar.»

culpa, irresponsabilidade: «Uma vez é da caça, outra do caçador.»

O Dicionário de Provérbios Francês-Português-Inglês de Roberto Cortes de Lacerda et a. (Lisboa, Contexto, 2000) permite também identificar alguns provérbios, na maior parte identificados com o imaginário brasileiro. Segue-se um lista de exemplos em que se salienta a importância da experiência de vida:

«Lobo velho não cai em armadilha.»
«Macaco velho não dá pulo/trepa em galho/ramo seco.»
«Macaco velho não mete/põe a mão em cumbuca (= armadilha).»
«Porco velho não se coça em pé de espinho.»
«Tatu velho não se esquece do buraco.»

Aconselhamo-la a fazer o levantamento que nos pede mediante a consulta das obras seguintes:

António Moreira, <...

Pergunta:

É uma curiosidade acerca da formação das palavras. É possível a formação da segunda ("pretensiosidade") em função da primeira ("pretensão")? Eu e meus amigos (informalmente) gostamos de brincar com sufixos. É o caso de "tupiniquim", "tupiniquismo", "tupinicóide", "tupinicidade". Mas o caso acima levantou polêmica quanto ao uso. Aproveitando, onde eu poderia conseguir um bom material online acerca da utilização de prefixos e sufixos?

Desde já agradeço a atenção.

Resposta:

Já muitas vezes se observou no Ciberdúvidas que a língua tem razões que a gramática desconhece, ou seja, o uso linguístico nem sempre contempla as possibilidades oferecidas pela gramática. É o caso de "pretensiosidade", que é um nome derivado do adjectivo pretensioso (e não de pretensão); é uma palavra possível, formada de acordo com as regras da morfologia do português, cujo uso não está atestado e que, a emergir como unidade lexical corrente, teria de competir com outro substantivo, pretensão, uma vez que seria seu sinónimo. Nestas situações de sinonímia, nota-se a tendência para um dos termos sinónimos desaparecer ou especializar-se dentro da respectiva área semântica. Isto não significa que, no registo adequado, não se possam usar termos como os que a consulente e os amigos criam a partir de tupiniquim. Sobre utilização de prefixos e sufixos, ver Textos Relacionados.