Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Bem, acho que vou dormir», qual é a função sintáctica de bem?

Morfologicamente é um advérbio, não é?

Obrigada.

Resposta:

Bem pertence a uma subclasse dos advérbios modificadores de frase, a dos advérbios conectivos, conforme refere João Costa, em O Advérbio em Português Europeu (Lisboa, Edições Colibri, pág. 53/54). Os advérbios conectivos «desempenham uma função textual, estabelecendo relações e nexos entre frases ou constituintes» (ibidem). Em relação ao uso de bem em frases como a apresentada na pergunta, João Costa explica que «[...] o advérbio bem [...] só pode ser interpretado como advérbio conectivo [...] [quando se encontra] em posição inicial de frase, seguido de uma pausa». É o caso da frase em análise.

Do ponto de vista da gramática tradicional, há uma certa dificuldade em precisar a função sintáctica deste uso de bem. Em princípio, classificar-se-ia como um complemento circunstancial. No entanto, mesmo em gramáticas tradicionais é manifesta a consciência de os advérbios constituírem uma classe funcional e semanticamente heterogénea; por exemplo, Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (pág. 538), advertem que «[...] alguns advérbios aparecem, não raro, modificando toda a oração». Saliente-se que, à luz de abordagens mais recentes, que integram resultados da investigação em linguística e visam o contexto escolar, como é o caso do Dicionário Terminológico (DT), é adequado analisar sintacticamente o advérbio conectivo bem como um modificador de frase.

Pergunta:

Os dicionários de português portugueses também poderão ser usados no ensino público do Brasil, em substituição dos brasileiros, pelos alunos que assim o desejarem?

Em Portugal, os alunos que optarem pelos dicionários de português brasileiros poderão, na escrita e nos exames escritos, usar os vocábulos conformes às ortografias e acentuações dos ditos dicionários? Isto é: patrimônio e não património, moleque e não rapaz, dilatar e não eliminar, etc.; ou alternar no decurso do texto ora uns ora outros, por exemplo: «Eu vi dois moleques. Mas o meu irmão afirma que viu três rapazes.» «Este fato ultrapassa-me, porque de facto não tenho a certeza», etc.

É o fim dos brasileirismos?

Os meus sinceros agradecimentos. 

Resposta:

Considero que os dicionários portugueses devem ser utilizados no Brasil — não sei é se isso é prática efectiva ou aceite. Mas também me parece que o problema levantado pelo consulente não pode ser totalmente resolvido ou orientado por um acordo ortográfico. É verdade que existe facultatividade entre patrimônio e património, e esta é uma questão gráfica correspondente a aceitar a variação relacionada com certas diferenças entre o português do Brasil (PB) e o português europeu (PE) a respeito da pronúncia das vogais seguidas de consoante nasal. Contudo, o outro aspecto focado, relativo a diferenças lexicais e semânticas, não se encontra codificado em nenhum acordo de uso vocabular. Quero dizer que, neste domínio, embora a norma não esteja explícita, o critério a seguir é o da coerência dialectal de termos e construções: a ocorrência de um termo característico do PB ou do PE verifica-se sempre ao lado das outras marcas da respectiva variedade. Assim, dizer «Eu vi dois moleques. Mas o meu irmão afirma que viu três rapazes» releva mais de um jogo metalinguístico que foca precisamente a existência de termos diferentes para uma mesma realidade como manifestação da diversidade de normas no mesmo sistema linguístico.

Seja como for, em relação ao ensino formal da língua materna, parece não se dar atenção às especificidades das variedades maternas do português falado pelos alunos. Mas, ainda que tal aconteça, admito que a cada país de língua portuguesa, sobretudo nos que têm tradições normativas próprias, como o Brasil e Portugal, seja difícil aceitar usos não conformes aos respectivos padrões linguísticos no contexto do sistema de ensino, sobretudo em situação de exames. Talvez uma maior consciência da diversidade de normas no sistema linguístico do português possa ser o princípio da criação de parâmetros de correcção transnormativos.

Pergunta:

Estou a fazer uma tradução do inglês e debato-me com a expressão inglesa «a ten-thousandfold world system», uma expressão que pode ter leitura tanto do ponto de vista da diversidade como da dimensão. Tal como, creio, por ex., a palavra quádruplo, a qual tanto se pode referir a quatro nuanças de uma situação como a uma dimensão quatro vezes maior.

Procurei no dicionário (Houaiss) e vi que a palavra miríade significa: «número, grandeza, correspondente a dez mil».

Do mesmo modo que a quatro corresponde quádruplo, que palavra deve corresponder a dez mil? Lembrei-me de "miriadécuplo", mas tenho sérias dúvidas.

 Agradeço a resposta que me deram. Porém, a minha referência à expressão inglesa pretende apenas indicar o enquadramento. Na verdade, a minha questão é somente:

– se a quatro corresponde quádruplo, a cinco corresponde quíntuplo, a nove corresponde nónuplo, a noventa corresponde nongêntuplo, que termo corresponde a dez mil? Será miriadécuplo, já que uma miríade são dez mil?

Agradecido pela atenção.

Resposta:

Penso que miriadécuplo é um neologismo possível, mas não sei se a sua interpretação em português é tão fácil como como a de ten-thousandfold em inglês... Duvido e passo a apontar duas objecções a respeito da aceitabilidade de tal palavra:

1. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática da Língua Portuguesa, pág. 375), os membros da subclasse dos numerais multiplicativos não têm todos o mesmo uso: enquanto dobro, duplo e triplo são formas correntes, «os demais pertencem à linguagem erudita». Estes gramáticos, sugerem o emprego alternativo do «numeral cardinal seguido da palavra vezes: quatro vezes, oito vezes, doze, etc.». Estas afirmações afiguram-se-me controversas, porque quádruplo, quíntuplo e sêxtuplo também são formas correntes, pelo menos em português europeu. Porém, é verdade que nónuplo já me parece pouco corrente e nogêntuplo menos corrente ainda. Sendo assim, «dez mil vezes» seria preferível a miriadécuplo.

2. Os numerais multiplicativos formados com o sufixo -plo (acrescente-se -plice) costumam ter por base de derivação numerais de origem latina ou já criados em português, conforme descreve o Dicionário Houaiss:

«[existe] uma série de lat. -plus — tipo duplus, triplus etc. —, que aparece no port. (numerais multiplicativ...

Pergunta:

Como fica o caso de palavras como "pronto-socorro" e "pronto-atendimento"?

Resposta:

A 5.ª edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) da Academia Brasileira de Letras só regista pronto-socorro, com hífen. Presume-se que que «pronto atendimento» não tenha hífen, atendendo ao exposto na Base XV, n.º 6:

«Nas locuções de qualquer tipo, sejam elas substantivas, adjetivas, pronominais, adverbiais, prepositivas ou conjuncionais, não se emprega em geral o hífen, salvo algumas exceções já consagradas pelo uso (como é o caso de água-de-colónia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-roupa).»

Por outras palavras, «pronto atendimento» não é uma excepção consagrada pelo uso e, por isso, não tem hífen. Pronto-socorro é uma expressão consagrada pelo uso ou, pelo menos, o VOLP assim a reconhece; por consequência, escreve-se com hífen.

Pergunta:

A palavra obrigado ou obrigada, quando usada como forma de agradecimento é considerada uma interjeição? E no caso de «muito obrigado(a)», é uma locução interjectiva?

Resposta:

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, classifica obrigado como uma interjeição e «muito obrigado» como uma locução interjectiva. O Dicionário Houaiss não é tão peremptório e classifica obrigado como adjectivo «empregado também interjetivamente».

Noutras fontes, mais duvidosa se torna a classe de palavras de obrigado. O Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, diz que, como forma de agradecimento, se trata de «exclamação que exprime agradecimento». Na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, e na Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara, não se incluem as formas de agradecimento entre as interjeições.

Observe-se que o Dicionário Terminológico (DT), isto é, a nova versão da TLEBS, ao definir interjeição como «palavra invariável», parece, por um lado, excluir a fórmula obrigado, porque esta varia em género em função do sexo do enunciador; por outro, descreve interjeição como tendo «uma função exclusivamente emotiva» e um valor que «depende do contexto de enunciação e corresponde a uma atitude do falante ou enunciador». Se é assim, obrigado e «muito obrigado» são ainda interjeições, embora não de um modo típico, dada a variação em género.

Em suma, apesar da identificação da classe de palavras de obrigado e «muito obrigado» poder ser assunto controverso, considero que a classificação proposta pelo dicionário da Academia das Ciências é adequada, porque obrigado e «muito obrigado» dão expressão a um agradecimento, ou seja...