Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a origem das seguintes expressões:

«Bem digo eu que me trazes de há um tempo essa ideia transuida!»

«Tem-te não cai.»

São expressões que se encontram tal qual no original de uma peça de teatro inédita, dactilografada, do séc. XX, mas cuja acção se passa no séc. XVIII.

Muito obrigada.

Resposta:

Sem dados que permitam situar o contexto da primeira frase em relação a coordenadas culturais e literárias mais precisas, limito-me a informar que:

a) transuída é palavra que não encontro atestada, que tem a configuração do feminino de particípio passado, pressupondo um verbo transuir, pelo que deve escrever-se com acento agudo no i para manter o hiato (cf. construir, construído);

b) talvez esse verbo seja latinismo com origem no verbo transŭō, ĭs, ĕre, ŭī, ūtum, «perfurar com agulha, coser»;

c) tendo em conta o contexto e as alíneas anteriores, parece-me que transuída significa «preparada», «urdida».

Sobre «tem-te não cai», será variante de tem-te-não-caias, «posição ou situação de instabilidade; falta de segurança» e «estado de saúde débil, precário» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

Pergunta:

Peço desculpa pelo teor da pergunta, mas, no poema A Minha Querida Pátria de Mário-Henrique Leiria (que em seguida transcrevo) a expressão «vou da peida» será sinónimo de «Estou-me borrifando»/«Pouco me interessa»?

A MINHA QUERIDA PÁTRIA

os camões

os aviões

e os gagos-coutinhos

coitadinhos

 

a pátria

e os mesmos

aldrabões

recém-chegados

à democracia social

era fatal

 

a pátria

novos camões

na governança

liderando

as mesmas

confusões

continuando

mesmo assim

as velhas tradições

de mau latim

da Eneida

 

enfim

sabem que mais?

pois

vou da peida

(Mário-Henrique Leiria)

Resposta:

Tudo indica que «vou da peida» tem o significado atribuído pelo consulente. Contudo, não encontro atestada a locução «ir da peida» como expressão idiomática nem em dicionários gerais nem em dicionários de calão; em corpora textuais tratados ou por tratar (como é o caso das páginas na Internet pesquisadas pelo Google), só encontro mesmo a expressão inserida no poema de Mário-Henrique Leiria. Sugiro que se trate de uma liberdade poética que visa o efeito de rima com Eneida, de modo a criar um contraste chocante: a Eneida, poema da autoria de Virgílio (70-19 a. C.) simboliza a elevação intelectual e ao mesmo tempo o convencionalismo clássico, enquanto o vulgarismo peida remete para o desrespeito contestatário do enunciador no poema de Mário-Henrique Leiria.

Pergunta:

Seria possível dar um parecer sobre qual a grafia mais correcta para os seguintes termos:

"cocolito" ou "cocólito"

"girogonito" ou "girogónito"

"holótipo" ou "holotipo"

"paratipo" ou "parátipo"?

Resposta:

Recomendam-se as seguintes formas:

cocólito [ver Dicionário Houaiss, entrada coc(o)-]: «corpos orgânicos diminutos redondos ou em forma de disco que se encontram como fósseis do fundo marinho ou em depósitos de cal que pertenceram a placas cálcares que recobriam as células de algas», cf. em espanhol, dicciomed.es, Diccionario médico-biológico, histórico y etimológico;

girogonito (o sufixo -ito aceita o acento tónico na primeira sílaba): receptáculo fóssil de sementes do género Chara em forma de espiral; ver idem);1

holótipo (ver Dicionário Houaiss; a entrada holotipo remete a forma em causa): «espécime único (ou fragmento desse espécime, ou ilustração feita a partir desse espécime) us. pelo taxonomista para a descrição original de uma espécie» (idem);

parátipo (ver Dicionário Houaiss; a entrada paratipo remete a forma em causa): «qualquer outro espécime, além do holótipo, tb. us. pelo autor de uma espécie para descrevê-la» (idem).

1 Sobre -ito, sufixo usado na linguagem científica, diz o Dicionário Houaiss:

«[...] tomado como suf[ixo] dim[inutivo], seu primeiro termo, zoonito (< gr[ego] zôion 'animal') o foi porque designava "indivíduos elementares" cujo agregado constituía todo animal invertebrado...

Pergunta:

Existem plurais de datas, meses e anos como "janeiros", "fevereiros", "marços", "abris", "maios", "junhos", "julhos", "agostos", "setembros", "outubros", "novembros", "dezembros", "25s de dezembro", "setes de setembro", "10s de dezembro", "primeiros de janeiros", "31s de dezembro", "12s de outubro", "noves de julho", "1999s", "2000s", "1800s", "2199s", "1945s", "1857s", "1776s", "2009s", "1971s", "2112s", "1983s", "2013s" e outros?

Resposta:

As regras da morfologia (flexão de plural) permitem o plural dos meses. Quanto aos numerais cardinais, se forem usados como substantivos, já a aplicação da regra tem limitações: temos um/uns, quatro/quatros, cinco/cincos, sete/setes, oito/oitos, nove/noves, onze/onzes, doze/dozes, treze/trezes, catorze/catorzes, quinze/quinzes, mas dois, três, seis e dezasseis são invariáveis; depois, noutros numerais a partir de vinte, é possível vinte/vintes, trinta/trintas, etc., mas estes, quando combinados com os numerais referentes às unidades (um, dois, três, etc.), parecem apresentar a marca de plural só no numeral correspondente às unidades, se este for flexionável («os vinte e setes» parece melhor que «os vintes e setes»).1

Para unidades de terceira ordem (centenas) e superiores (milhares, dezenas de milhares, etc.), a possibilidade de plural nos respectivos numerais torna-se teórica, uma vez que na prática mal se usam. Por exemplo, não vejo que o numeral cem se use no plural («os cens»?). São invariáveis os numerais terminados em -centos («o/os duzentos») e a forma mil («mil novecentos» e nunca *«mil novecento» ou *«miles novecentos» ou ), mas variáveis milhão, bilhão e

Pergunta:

Qual é a forma negativa da frase «Que pena que isto dá!»? É «Que pena que isto não dá!», ou «Isto não dá pena!»?

Resposta:

Não é possível a tradicionalmente chamada forma negativa. A frase «Que pena que isto dá!» é uma exclamativa parcial (ver Dicionário Terminológico), porque apenas um constituinte, «que pena», se vê afectado pela exclamação. Neste caso, em que o constituinte é de natureza nominal, não se pode construir a negação, porque esta pressupõe uma predicação verbal. Por outras palavras, não é possível negar apenas «que pena», mantendo a estrutura do resto da frase: *«Que não pena que isto dá» (o asterisco indica agramaticalidade). Além disso, mesmo que se recorra ao marcador de negação não, integrando-o na predicação que a frase encerra, ou seja, «que isto dá», obtém-se sempre uma leitura positiva: «Que pena que isto não dá!» equivale a «Que pena que isto dá!», ambas pressupondo a declarativa «Isto dá pena». Quer dizer que a negação em certo tipo de frases exclamativas é antes uma forma de intensificar o conteúdo das mesmas. Trata-se de uma área que ainda está a ser investigada, sobretudo no âmbito de certas correntes linguísticas mais recentes (ver M.ª Helena Mira Mateus, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, pág. 479-487).