Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber onde existe a redundância nas seguintes frases:

a) «Com o manual, o usuário dispensa a necessidade de memorizar os comandos.»

b) «O desmatamento de grandes florestas é um crime contra a natureza.»

c) «Os guerreiros valentes queriam revidar o ataque.»

d) «A família é o alicerce básico de qualquer sociedade.»

e) «O candidato apresentou uma política voltada para o bem comum de todos.»

Obrigada pela informação.

Resposta:

Corrijo as frases pela mesma ordem:

a) «Com o manual, o usuário dispensa memorizar/a memorização os/dos comandos.

Redundância: dispensar é «não necessitar», «não ter necessidade»; logo, não ter necessidade da necessidade é, no mínimo, paradoxal.

b) «O desmatamento (de grandes superfícies/extensões) é um crime contra a natureza.»

Redundância: desmatamento já significa «desflorestamento».

c) «Os guerreiros valentes queriam revidar.»

Redundância: revidar é o mesmo que «reagir ao ataque»; no entanto, é duvidoso que «revidar o ataque» seja assim tão redundante, porque o verbo selecciona palavras como crítica, golpe, descaso, que podem comportar-se como hipónimos de ataque (cf. Dicionário Houaiss).

d) «A família é o alicerce de qualquer sociedade.»

Redundância: por definição, um alicerce só pode ser básico, porque é base de uma construção.

e) «O candidato apresentou uma política voltada para o bem comum.»

Redundância: comum é equivalente a «pertencente a todos».

Pergunta:

Escrevo-lhes em parte para pedir esclarecimentos, em parte para, com cuidadosa modéstia, contribuir.

Começo pela contribuição. Acerca da conjunção como, ao ler nesta resposta a categórica afirmação de não-existência da pronúncia /cumo/ no Brasil, tenho de discordar.

Certamente não era do conhecimento dos senhores consultores — daqueles que formularam a resposta — a variação ortoépica existente no Nordeste brasileiro. Embora tida como ruralizante, a pronúncia /cumo/ ainda se encontra em pessoas mais velhas ou em falantes que vivam mais afastados dos grandes centros urbanos. Tal fato se torna bastante notável em frases que contenham a expressão de realce é que. Por exemplo: «Como é que vai a senhora?» pode soar, no Nordeste do Brasil, da seguinte maneira: /cumé qui vai a sinhóra?/, em que ocorre elisão de como + é.

Em seguida, a respeito do tema em apreço ainda me restam dúvidas relativamente à pronúncia doutras palavras. Em se tratando de língua portuguesa, que palavras são, por natureza, átonas? Há classes gramaticais de palavras inteiramente átonas?

De acordo com o que aconselham, deve-se proferir /cômo/; se se trata de dissílabo átono, como se explica a preferência pelo o fechado, em contraste com porque /purque/? Sem contar com outros monossílados átonos, por exemplo: por, com.

Muito obrigado pela atenção.

Resposta:

A ocorrência de vogais médias em sílaba átona não é surpreendente, pelo menos, em português europeu, variedade em que há numerosas excepções à regra de redução do vocalismo átono. Basta lembrar casos como o de oliveira que tem uma vogal média (ora pronunciada como o aberto ora como o fechado) em lugar do [u] que seria de esperar em posição inicial, uma vez que se trata de núcleo de uma sílaba átona.

Sobre palavras sem acento tónico próprio, diz Paul Teyssier, no seu Manual de Língua Portuguesa (Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pág. 21):

«Algumas palavras, tais como os artigos, os pronomes pessoais átonos, certas preposições e certas conjunções, não têm acento tónico por si próprias, formando um único grupo fonético.

a) Quer com a palavra que vem a seguir 

    p. ex. o livro

Neste caso chamam-se proclíticas

b) Quer com a palavra que vem antes

    p. ex. vejo-te [...]

Neste caso chamam-se enclíticas

Pergunta:

Como se deve dizer: «vila de Lagoa», ou «vila da Lagoa»?

Obrigada.

Resposta:

Visto Lagoa ter origem num nome comum, lagoa, deveria seguir-se tendência de topónimos deste tipo serem usados com artigo definido: «vila da Lagoa». E parece que assim acontece. No entanto, verifico em páginas da Internet, em especial nas da câmara municipal da localidade açoriana assim chamada, que também se dispensa o artigo definido: «município de Lagoa», «concelho de Lagoa». Mais, noto até que a referência à povoação é feita com o artigo, mas a menção da unidade administrativa ocorre sem o artigo: «A taxa de actividade na Lagoa é de 42,7%» vs. «nota-se que o Concelho de Lagoa conta com uma população activa (cidadãos no mercado de trabalho) de 5575 pessoas empregadas». Seja como for, mesmo achando este caso como mais uma das peculiaridades do uso toponímico regional, favoreço o emprego sistemático de Lagoa com artigo definido, incluindo contracções («da Lagoa», «na Lagoa», «pela Lagoa»).

Pergunta:

Em palavras compostas em que o primeiro elemento é um verbo na terceira pessoa do singular do presente do indicativo, e o segundo é um substantivo, sendo ambos unidos por hífen, geralmente este último aparece no plural: saca-rolhas, porta-malas, guarda-volumes, salva-vidas, etc.

O fato de o último estar no plural, mesmo quando a palavra composta ao qual pertence está no singular, parece-me ter um lógica: um saca-rolhas é um instrumento que pode sacar muitas rolhas e não apenas uma rolha; um porta-malas, porta (pode conter) várias malas e não apenas uma; num guarda-volumes, guarda-se sempre mais de um volume; um salva-vidas de praia, ao longo de sua vida profissional, ou mesmo em um único dia, pode salvar muitas vidas humanas.

Casos há, todavia, em que o segundo elemento vem mesmo no singular, quando a palavra composta está no singular, indo ao plural somente quando esta se pluraliza: guarda-roupa, guarda-fato, guarda-louça, lava-louça, lava-roupa. No plural: «dois guarda-roupas»; «cinco lava-louças». Parece ser porque o segundo elemento, embora esteja no singular, tem sentido plural. Exemplificando, roupa pode ser uma peça de roupa como um conjunto de peças de roupa. O mesmo ocorre com louça.

Em guarda-chuva, parece que chuva pode ser a chuva de um momento ou toda a chuva de um período ou ano ou anos. Daí o fato de chuva estar no singular, já que tem também o sentido plural.

É o guarda-sol, e não o "guarda-sóis", pois há somente um sol.

No caso de palavras compostas análogas formadas no Brasil, creio qu...

Resposta:

O que é proposto na pelo consulente terá a sua lógica, mas sucede que língua e lógica são dimensões diferentes, muitas vezes coincidentes, mas também aqui e ali divergentes, como é o caso de certos plurais. Em compostos de verbo e substantivo, o segundo elemento recebe a marca de plural, mesmo que, do ponto de vista da semântica dos elementos constituintes, isso possa resultar ilógico ou paradoxal. Assim:

guarda-chuva (singular) > guarda-chuvas (plural)

guarda-sol (singular) > guarda-sóis (plural)

Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (Rio e Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 129) é claro sobre o assunto:

«Plural dos nomes compostos [...] A – SOMENTE O ÚLTIMO ELEMENTO VARIA: [...] 3) nos compostos de tema verbal ou palavra invariável seguida de substantivo ou adjetivo:

furta-cor               furta-cores

beija-flor               beija-flores

abaixo-assinado      abaixo-assinados

alto-falante           alto-falantes

vice-rei                 vice-reis

ex-diretor              ex-diretores

ave-maria          ...

Pergunta:

Gostaria de saber se é incorrecta a designação «fenómeno sintáctico», ou se há alguma diferença entre recurso sintáctico e fenómeno sintáctico.

Muito obrigada!

Resposta:

Pode falar de «fenómeno sintáctico» se estiver a referir-se a um processo ou mecanismo sintácticos (por exemplo, concordância e a elipse), muito embora o Dicionário Terminológico indique o «processo sintáctico» como termo a aplicar.

A palavra recurso costuma ser usada em estudos literários para designar certos efeitos linguísticos mobilizados com intenção estética. Um recurso sintáctico é, portanto, uma estrutura sintáctica da qual se tira partido literário; por exemplo, a deslocação de certos constituintes para os tornar semanticamente salientes ou para facilitar a estrutura métrica e rimática, como acontece frequentemente em Os Lusíadas, de Luís de Camões (estâncias 122 e 123):

«Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,

 

Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co sangue só da morte ladina
Matar do firme amor o fogo aceso.
[...]»

 

Note-se a deslocação dos constituintes sintácticos na sequência «O velho pai sesudo [...]/Tirar Inês ao mundo determina», na qual a oração completiva «tirar Inês ao mundo» precede o verbo que a selecciona, «determina», contrariando a ordem de palavras mais frequente (canónica) — «O velho pai sesudo determina tirar Inês ao mundo». A posição não canónica da oração completiva, por um lado, permite a rima com «ladina», no verso «Crendo co sangue só da morte ladina» e, por outro, salienta a oração «tirar Inês ao mundo» logo no início de uma nova estância, aumentando o efeito de choque da...