Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Notabiliza-se, dia após dia – especialmente, na esfera universitária de grande visibilidade –, a ascensão daquilo a que chamam "linguagem neutra": vê-se, ora hebdomadariamente, ora cotidianamente, publicações de universidades fazendo uso da linguagem dita neutra, sem mencionar as entidades políticas que, também, o fazem.

A meu humilde ver, o ver de alguém que prepara bebidas e que ama sua língua pátria; essa implementação – quase discricionária – que me tem sido apresentada, não só através da tela da televisão e do telefone celular; mas, também, através dos clientes que se sentam ao outro lado do balcão; possui – também – a aparência de uma medida que não traz, em seu imo, o intuito de ser uma linguagem não excludente, visto que seu uso se tem espalhado às custas de apelos morais de seus entusiastas: apelos estes que compungem aqueles que não aquiescem a seu uso.

Indago, portanto, aos senhores: a implementação da linguagem neutra é, realmente, necessária?

É o caminho natural– per viam naturalem – que se seguirá rumo à evolução de nossa língua? Ou é reflexo da deterioração do uso de nosso idioma, que passou por séculos de evolução até chegar à sua fisionomia atual em que a neutralidade se faz presente — ao menos no que concerne aos pronomes, e ao que meu saber me limita — na forma masculina.

Agradeço, de antemão aos senhores deste sítio pelo posicionamento seriíssimo com que têm atuado ante as mais diversas questões que lhes tem sido apresentadas.

Resposta:

A questão faz parte de um debate muito alargado que, como é de calcular, não se limita à língua portuguesa e também se faz sentir em línguas em que o contraste de género tem realização morfológica, como é o caso do espanhol ou do alemão.

Sobre o assunto, o Ciberdúvidas tem dado espaço para posições a favor e contra (ver Textos Relacionados), bem como a propostas que podem encontrar cabimento nas estruturas da língua e a outras propostas que podem revelar-se irrealistas. Por exemplo, na referência a um grupo de pessoas constituído por homens e mulheres é verdade que o masculino funciona como plural genérico, uso que atualmente tem sido alvo de contestação, mas não ao ponto de provar que é uso incorreto ou desadequado. Não é, e, do ponto de vista da economia de palavras, continua a ser um plural válido, apesar de, independentemente do debate contemporâneo sobre identidade e género, já se disponibilizarem formulações antecipatórias do estilo inclusivo – é o caso da expressão «Senhoras e Senhores», ou «Minhas Senhoras e meus Senhores».

Para já, o balanço que se pode fazer é que as propostas de linguagem inclusiva que são viáveis são meramente estilísticas: é a avaliação que se pode fazer de expressões como «portuguesas e portugueses».

Quanto ao uso de @ ou de "-e" como marcadores de plural inclusivos – "tod@s" e "todes" – e de outros sinais com função de referência genérica, trata-se de recursos gráficos. É certo que -e tem tido realização fonética, como acontece em "todes", mas é uso de êxito incerto. É preciso notar que a mudança linguística é um processo lento e nem sempre previsível. Quando se trata de níveis de funcionamento linguístico mais profundo, como o sistema fonológico, as regras de formação de palavras (morfologia) ou a sintaxe, a mudança não se faz nem se evita por voluntarismo de grupos. Daí que, mu...

Pergunta:

A minha dúvida prende-se com a escrita correta da palavra "músculo-invasivo", tendo em consideração o novo acordo ortográfico.

Já pesquisei em várias fontes e a forma mais consensual parece-me ser "músculo-invasivo", contudo, com o novo acordo, não deveria ficar "musculoinvasivo"? Ou "músculoinvasivo"? (se bem que esta última me parece menos provável).

Agradecia muito esclarecimento da parte de alguém que, de facto, consiga identificar a grafia correta desta palavra.

Resposta:

Não temos uma resposta categórica, mas musculoinvasivo é a forma mais compatível com a normas do Acordo Ortográfico de 1990. "Músculo-invasivo" é muito discutível, e "músculoinvasivo" é impossível, mesmo no quadro da ortografia de 1945.

É de assinalar que palavra composta em questão foge ao tipo de compostos abrangidos pela atual norma ortográfica. Com efeito, com o elemento musculo- registam-se compostos como musculoadiposo e musculoesquelético, os quais, à luz do atual acordo ortográfico, só terão hífen se o segundo elemento de composição começar pela mesma vogal com que acaba musculo- (caso que não tem até agora registo).

Por outro lado, musculoadiposo e musculoesquelético revelam uma estrutura de coordenação, pois os seus significados resultam da adição de duas noções: musculoadiposo significa «formado por músculo e tecido adiposo», e musculoesquelético é entendido como «relativo ao sistema muscular e ao sistema do esqueleto» (cf. Infopédia). Não é esta, porém, a estrutura nem a semântica de musculoinvasivo, que se interpreta como «invasivo de músculo», numa estrutura que até há décadas não parecia frequente nos compostos de língua portuguesa, mas que é muito produtiva na língua inglesa – p. ex. muscle invasive.

Mesmo assim, aceitando que musculo- funciona como primeiro elemento de um composto de modo semelhante ao de ...

Pergunta:

Qual o significado da palavra mastragança?

Resposta:

O nome mastragança não tem registo nos dicionários aqui consultados1. Contudo, uma pesquisa em páginas da Internet faculta exemplos do uso da palavra:

(1) «Ultimamente, não sou especialmente atraída pelos livros franceses, sobretudo desde a banhada que apanhei nas férias do Verão com aquela mastragança da Breve Vida das Plantas [...]» (Maria do Rosário Pedreira, Horas Extraordinárias. As horas que passamos a ler, blogue, 01/03/2023; mantém-se a ortografia do original).

É muito provavelmente uma variante de mastragalhada, «comida mal-feita, negócio atrapalhado» e, por extensão, «coisa mal-feita» (cf. A. M. Pires Cabral, Língua Charra. Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2013). Tal como mastragalhada, mastragança derivará de mastragar, «pisar, amassar, amachucar» (cf. ibidem).

 

1 Foram consultados:Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa (de António Morais Silva), e Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea de Academia das Ciências, .Dicionário Priberam, Dicionário Info...

Pergunta:

Qual a frase correta: «Estou na Maranduba» ou «Estou em Maranduba»?

Resposta:

Diz-se das duas maneiras, com e sem artigo definido.

Maranduba é um topónimo do litoral do estado de São Paulo. Quando a situação é mais formal, como acontece com páginas oficiais na Internet, usa-se «em Maranduba» e «de Maranduba». No entanto, também parece corrente o uso com artigo definido – «a Maranduba» –, conforme documenta o artigo respetivo na Wikipédia: «na Maranduba».

O topónimo Maranduba terá origem obscura e a sua forma original pode ter sido diferente da atual (cf. "Maranduba: árvore, ilha, lago, terra, lenda ou tudo junto?", blogue Ubatubense, 28/02/2011).

Assinale-se, contudo, que se regista a nome comum maranduba ou maranduva, que significa «história ou relato sobre guerra ou viagem» e, no norte e nordeste do Brasil, «narrativa fantasiosa, inverossímil; mentira, patranha» (Dicionário Houaiss) e tem origem no tupi mora'nduwa, «notícia, novidade» e, por extensão semântica, «enredo, intriga» (ibidem). A homonímia entre o topónimo e o nome comum pode sugerir a mesma origem. Não obstante, o significado de maranduba levanta questões quanto à congruência entre a sua semântica e a sua eventual aptidão para referir, de forma direta, um nome de lugar.

Pergunta:

Qual é a origem da palavra contrabando? Ao que parece, vem do italiano, mas como se formou nesta língua?

Resposta:

Como outras palavras de configuração semelhante em espanhol (contrabando), francês (contrebande) e inglês (contreband), embora seja mais corrente (smuggling), a palavra portuguesa contrabando tem origem no italiano contrabbando, «importação ou exportação de mercadorias, sem pagar direitos», termo formado por contra- + bando, do gótico *bandwa «senha, sinal» (Dicionário Houaiss).

Observe-se, porém, que o termo italiano bando, equivalente ao português bando («grupo»), pode também ser interpretado como «anúncio público, proclamação» ou «disposição legal» (ver Dicionário Treccani). Esta última aceção não é alheia ao uso de bando em português, ainda que bastante rara.

Por outras palavras, a palavra italiana original significava «coisa ou ação realizada contra uma disposição legal».