Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Não consigo encontrar na bibliografia a solução para duas dúvidas que me colocaram há uns meses, pelo que necessito da vossa ajuda.

1.º — «o seu ente querido/a sua ente querida» — Do jornal local, perguntaram-me se a palavra ente admite uma ocorrência de um especificador feminino tal como a palavra presidente. Nós podemos dizer «o nosso presidente» e «a nossa presidente». Também podemos dizer «o seu ente querido»/«a sua ente querida»?

2.º — «bem-haja»/«bem haja»/«bem hajam» — Encontrei a solução para as formas relativas à estrutura adv. + verbo («bem haja» e «bem hajam»), mas continuo com dúvidas no nome/substantivo. Embora com o novo acordo ortográfico tenha de, obrigatoriamente, perder o hífen e deixe de ser uma palavra composta por justaposição, gostaria que me confirmassem, por favor, se ao tratar-se de um nome e de acordo com as regras da gramática normativa não teria de escrever-se com hífen tal como bem-aventurado.

Obrigada pela atenção.

Resposta:

1. A palavra ente é do género masculino, não sendo possível empregá-la no género feminino (não se diz «a minha ente querida»), conforme se pode verificar nos seguintes dicionários e vocabulários ortográficos: Dicionário Houaiss, dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, Vocabulário Ortográfico do Português, do ILTEC, Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras.

2. O substantivo bem-haja1 , como composto resultante da associação de forma verbal (haja) e substantivo (bem, forma homónima do advérbio bem2), apresenta um hífen que se mantém, tal como acontece com conta-gotas e guarda-chuva (cf. n.º 1 da Base XV do Acordo Ortográfico de 1990). O facto de este composto ter origem num caso de inversão de complemento («haja(m) bem > «bem haja(m)») não parece dis...

Pergunta:

Quais são os topónimos espanhóis que devem ser traduzidos para português?

A minha dúvida reside em que tipo de topónimos espanhóis devem ser traduzidos para português.

Segundo tenho entendido, apenas as comunidades autónomas, províncias e respectivas capitais devem ser passíveis de traduzir, apesar de existirem casos em que se aceita maioritariamente o original em espanhol (ex.: Valladolid).

Para os casos das restantes localidades dever-se-ia traduzir? Ex.: Miranda de Ebro -< "Miranda do Ebro", ou, dado que não existe uma definição aportuguesada, não se traduz?

Obrigado.

Resposta:

As comunidades autónomas espanholas têm nomes portugueses, conforme se pode consultar no Código de Redacção Interinstitucional do Português em uso na União Europeia. Acontece que alguns destes nomes também são nomes de cidades, que adquirem assim uma grafia portuguesa: Múrcia e Melilha (Ceuta não oferece problema porque tem a mesma grafia).

Em relação às capitais de província, há nomes que passam ao português sem adaptação gráfica: Alicante, Albacete, Ávila, Badajoz, Barcelona, Burgos, Cáceres, Cuenca, Gerona, Granada, Huelva, Huesca, Lérida, Lugo, Madrid, Málaga, , Oviedo, Pamplona, Pontevedra, Salamanca, Santa Cruz de Tenerife, Santander, Santiago de Compostela, Tarragona, Teruel, Toledo. Existem por vezes formas portuguesas, diferentes das espanholas, com plena vigência, muitas vezes devido à projecção que essas cidades têm na vida dos falantes portugueses — ou por haver proximidade geográfica ou porque se trata de uma cidade importante ou ainda por haver tendência espontânea para fazer adaptação gráfica e/ou fónica:  Alcântara, Almeria, Bilbau, Cádis, Corunha, Palência,

Pergunta:

Não muito distante do lugar onde moro, existe uma localidade cujo nome é Tará. Gostaria de saber tanto a origem como o significado desse topônimo.

Agradeço-vos imensamente!

Resposta:

Não encontro em obras de referência a etimologia do topónimo Tará («serra do Tará»). Contudo, em páginas da Internet, encontro alguma informação num sítio que parece dar algumas pistas:

TARAÍRA, chamada correntemente de traíra, mas que o correto deve ser taraíra, de significado desconhecido, mas tará significa peixe miúdo, peixinho, e ira, filhote, talvez porque a taraíra (ou traíra) é um peixe voraz, que se alimenta de peixinhos. Outros dizem que simplesmente decorre de taíra (filho). Uma estranha tradução para taraíra é "arranca-pelo", de ta-reyi. Outra estranha tradução foi dada por Teodoro Sampaio, "o que se contorce". Melhor e mais lógico é traduzir por "peixe voraz, que se alimenta de filhotes".

Não tenho, por enquanto, maneira de confirmar a informação de tará significar «peixe miúdo», que, desde já, acho estranhíssima como designação de uma serra. Deixo-a aqui apenas como desafio para os consulentes que pretendam dar o seu contributo para o esclarecimento da etimologia deste topónimo.

Pergunta:

Talvez, para mim, uma das formas mais intrigantes da nossa gramática seja o futuro do conjuntivo. Reparemos nas seguintes 4 frases.

1) Embora eu tivesse dificuldades, conseguia trabalhar.

2) Embora eu tenha dificuldades, consigo trabalhar.

3) Embora eu vá ter dificuldades, conseguirei trabalhar.

4*) Embora eu tiver dificuldades, conseguirei trabalhar.

Eu não sei a razão, mas a frase 4) me parece incorreta, e tenho a certeza de que nunca a diria substituindo-a talvez pela 3). O que se passa? É mesmo assim? Porquê?

Resposta:

É mesmo assim. As conjunções adverbiais especializam-se na selecção de uns tempos verbais, excluindo outros. A conjunção concessiva não é compatível com o futuro do conjuntivo, mas combina-se com todos os outros tempos do conjuntivo, inclusivamente quando estes participam em perífrases verbais com valor de futuro (ir + infinitivo: «Embora eu vá ter dificuldades...»). Em contrapartida, a conjunção temporal quando aceita a ocorrência do futuro do conjuntivo simples e composto, mas já rejeita a do pretérito perfeito do conjuntivo (*«quando eu tenha tido muito dinheiro, farei uma viagem». Não parece haver uma motivação semântica para este comportamento, pelo que se aceita que se trata de comportamentos idiossincráticos, semelhantes aos das regências verbais («penso em ti», cf. francês «je pense à toi»).

Pergunta:

Eu gostaria de saber mais sobre a origem da palavra saudade. Vasconcellos, 1914, afirma que sua origem teria a ver com solidão, do latim solitas, e que teria incorporado elementos de «salvação», «saúde», «saudação». Há também uma hipótese que teria surgido do árabe. Os árabes haveriam traduzido a melancolia do grego (bile negra) para sua língua e a saudah (negro, preto em árabe) teria originado a saudade portuguesa. O que lhes parece? Será que a palavra teria sido consolidada em 1580 pelos grandes escritores portugueses de então?

Ficarei muito grato por vossa resposta.

Resposta:

O que se sabe sobre a etimologia de saudade já foi bastante debatido aqui no Ciberdúvidas. De qualquer maneira, a etimologia mais provável é de origem latina, em solitate, que deu soidade (ainda em uso em galego), que passou a saudade por analogia com saúde, podendo ter havido aqui um processo de elaboração e fixação literárias do termo.

A hipótese árabe tem sido defendida sem sucesso. No entanto, refira-se que negro, em árabe clássico, é سَواد (sawād), que corresponde, entre outros nomes, a سُوَيْداء (suwaydaʔ) «humor negro, hipocondria, melancolia» (Dictionnaire arabe-français/français-arabe, Larousse, 2006), palavra que poderá ter alguma semelhança fónica com a forma galego-portuguesa soidade. Talvez haja realmente aqui influência do árabe, mas não tenho acesso a estudos filológicos cuidadosos que a confirmem.

 

Cf. 3 palavras que não se conseguem traduzir + A saudade, fundamento da literatura portuguesa