Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Não muito distante do lugar onde moro, existe uma localidade cujo nome é Tará. Gostaria de saber tanto a origem como o significado desse topônimo.

Agradeço-vos imensamente!

Resposta:

Não encontro em obras de referência a etimologia do topónimo Tará («serra do Tará»). Contudo, em páginas da Internet, encontro alguma informação num sítio que parece dar algumas pistas:

TARAÍRA, chamada correntemente de traíra, mas que o correto deve ser taraíra, de significado desconhecido, mas tará significa peixe miúdo, peixinho, e ira, filhote, talvez porque a taraíra (ou traíra) é um peixe voraz, que se alimenta de peixinhos. Outros dizem que simplesmente decorre de taíra (filho). Uma estranha tradução para taraíra é "arranca-pelo", de ta-reyi. Outra estranha tradução foi dada por Teodoro Sampaio, "o que se contorce". Melhor e mais lógico é traduzir por "peixe voraz, que se alimenta de filhotes".

Não tenho, por enquanto, maneira de confirmar a informação de tará significar «peixe miúdo», que, desde já, acho estranhíssima como designação de uma serra. Deixo-a aqui apenas como desafio para os consulentes que pretendam dar o seu contributo para o esclarecimento da etimologia deste topónimo.

Pergunta:

Talvez, para mim, uma das formas mais intrigantes da nossa gramática seja o futuro do conjuntivo. Reparemos nas seguintes 4 frases.

1) Embora eu tivesse dificuldades, conseguia trabalhar.

2) Embora eu tenha dificuldades, consigo trabalhar.

3) Embora eu vá ter dificuldades, conseguirei trabalhar.

4*) Embora eu tiver dificuldades, conseguirei trabalhar.

Eu não sei a razão, mas a frase 4) me parece incorreta, e tenho a certeza de que nunca a diria substituindo-a talvez pela 3). O que se passa? É mesmo assim? Porquê?

Resposta:

É mesmo assim. As conjunções adverbiais especializam-se na selecção de uns tempos verbais, excluindo outros. A conjunção concessiva não é compatível com o futuro do conjuntivo, mas combina-se com todos os outros tempos do conjuntivo, inclusivamente quando estes participam em perífrases verbais com valor de futuro (ir + infinitivo: «Embora eu vá ter dificuldades...»). Em contrapartida, a conjunção temporal quando aceita a ocorrência do futuro do conjuntivo simples e composto, mas já rejeita a do pretérito perfeito do conjuntivo (*«quando eu tenha tido muito dinheiro, farei uma viagem». Não parece haver uma motivação semântica para este comportamento, pelo que se aceita que se trata de comportamentos idiossincráticos, semelhantes aos das regências verbais («penso em ti», cf. francês «je pense à toi»).

Pergunta:

Eu gostaria de saber mais sobre a origem da palavra saudade. Vasconcellos, 1914, afirma que sua origem teria a ver com solidão, do latim solitas, e que teria incorporado elementos de «salvação», «saúde», «saudação». Há também uma hipótese que teria surgido do árabe. Os árabes haveriam traduzido a melancolia do grego (bile negra) para sua língua e a saudah (negro, preto em árabe) teria originado a saudade portuguesa. O que lhes parece? Será que a palavra teria sido consolidada em 1580 pelos grandes escritores portugueses de então?

Ficarei muito grato por vossa resposta.

Resposta:

O que se sabe sobre a etimologia de saudade já foi bastante debatido aqui no Ciberdúvidas. De qualquer maneira, a etimologia mais provável é de origem latina, em solitate, que deu soidade (ainda em uso em galego), que passou a saudade por analogia com saúde, podendo ter havido aqui um processo de elaboração e fixação literárias do termo.

A hipótese árabe tem sido defendida sem sucesso. No entanto, refira-se que negro, em árabe clássico, é سَواد (sawād), que corresponde, entre outros nomes, a سُوَيْداء (suwaydaʔ) «humor negro, hipocondria, melancolia» (Dictionnaire arabe-français/français-arabe, Larousse, 2006), palavra que poderá ter alguma semelhança fónica com a forma galego-portuguesa soidade. Talvez haja realmente aqui influência do árabe, mas não tenho acesso a estudos filológicos cuidadosos que a confirmem.

 

Cf. 3 palavras que não se conseguem traduzir + A saudade, fundamento da literatura portuguesa

Pergunta:

Tenho uma dúvida em relação à pronúncia das consoantes. Assim como em espanhol, onde existem os seguintes alofones:

/b/ -< [b], [β]

/g/ -< [g], [γ]

/d/ -< [d], [ð]

em português (especialmente o lusitano) também existem esses casos?

Resposta:

Existem, pelo menos, em grande parte dos dialectos do português europeu, incluindo a norma-padrão, em posição intervocálica. Segundo Maria João Freitas, "O conhecimento fonológico" (in Inês Duarte, Língua Portuguesa: Instrumentos de Análises, Lisboa, Universidade Aberta, 2000, pág. 231), trata-se de alofones dos fonemas /b/, /d/ e /g/:

[H]á alguns fonemas com mais do que uma realização fonética possível (alofones): é o caso de /b/, com os alofones [b] e [β]. Em seguida, enunciam-se alguns fonemas do português que apresentam mais do que uma realização fonética possível, os alofones desse fonema, identificados pela não alteração de significado após a comutação dos sons:

Exemplos de alofones no português    

Pares mínimos         Ortografia          Fonemas e respectivos alofones

[ˈabɐ]/[ˈaβɐ]            <aba>/<aba>        /b/  -  [b]/[β]

[ˈfadɐ]/[ˈfaðɐ]          <fada>/<fada>      /d/  -  [d]/[ð]

[ˈagɐtɐ]/[ˈaγɐtɐ]      <ágata>/<ágata>    /g/  -  [g]/[γ]

Sobre os sons [β], [ð] e [γ], a mesma investigadora esclarece o seguinte (ibidem, n. 26):

Em termos articulatórios, os sons dos pares [b]/[β], [d]/[ð] e [g]/[γ] são semelhantes entre si, excepto no tipo de obstrução à passagem do ar na cavidade oral: [b, d, g] são oclusivas, logo, são produzidas com obstrução...

Pergunta:

«Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos mandou inventar» — Clarice Lispector (A Hora da Estrela).

No excerto acima, «não se a tem» e «inventa-se-a» são combinações incorretas de pronomes? Por que elas soam tão naturais e inteligíveis, se, de acordo com esta resposta, estariam supostamente incorretas?

Gostaria de um esclarecimento mais detalhado, por favor.

Resposta:

Pouco há a acrescentar ao que já se disse anteriormente. Geralmente, não se aceita a sequência formada por se, com valor de partícula apassivadora ou sujeito indeterminado, e o pronome pessoal átono de objecto directo o, como se lê na Moderna Gramática da Língua Portuguesa (2002, pág. 180), de Evanildo Bechara:

A língua-padrão rejeita a combinação se o (e flexões, apesar de uns poucos exemplos na pena de literatos:

«Parece um rio quando se o vê escorrer mansamente por entre as terras próximas...»

Os usos identificados na obra em apreço são, portanto, excepções literárias à regra da língua padronizada.