Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual seria a classificação sintático-morfológica da expressão em destaque: «Os nomes das companhias não vêm ao caso

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A expressão «ao caso» forma com o verbo vir um todo, ou seja, constitui com este verbo uma expressão idiomática não decomponível em constituintes sintácticos. É o que pode verificar-se no Dicionário Houaiss, onde «vir ao caso» é uma subentrada de caso: «vir ao c[aso]: vir a propósito, ser pertinente. Ex.: seu comentário não vem ao c[aso].» A locução tem, portanto, valor intransitivo.

Em alternativa, aceitando eventualmente que «ao caso» tem uma função sintáctica como «a propósito» em «vir a propósito», por sua vez, equivalente a «referir com oportunidade», poderá dizer-se que «ao caso», como «a propósito», é um modificador de predicado.

De qualquer modo, parece-me aconselhável encarar «vir ao caso» como uma locução, pelo facto de, na expressão, o verbo perder o seu significado literal, de movimento.

Pergunta:

Olá! Estava na Web a pesquisar sobre particularidades da pronúncia do latim clássico e encontrei esse portal. Que, por sinal, pareceu-me muito esclarecedor. Por isso, resolvi enviar-lhes esse comentário que carrega consigo uma dúvida: Eu canto num coral, e estamos às beiras de apresentar uma obra de Mozart escrita em latim, e tenho algumas dúvidas quanto à pronúncia de palavras que são grafadas com xc, c. Pois, foi-me orientado que lemos essas palavras como se pronunciássemos uma palavra com ss em nossa língua. Vocês me poderiam esclarecer essa dúvida? Desde já, agradecimentos.

Resposta:

O Ciberdúvidas esclarece dúvidas de português, e não de latim, mas tentarei dar resposta ao pedido que é feito.

Como já se disse noutras respostas, o latim pode ser pronunciado de três maneiras: tradicional, eclesiástica (ou romana) e restaurada. No caso apresentado pelo consulente, há a possibilidade de usar a pronúncia tradicional, que é praticamente a do português, mas, tratando-se de uma obra de Mozart, não seria descabido optar pela pronúncia eclesiástica. Sendo assim, as palavras grafadas com xc e c serão lidas como se explica a seguir (cf. António Freire, Gramática Latina, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1983, pág. 14):

a) o c antes de a, o, u ou consoante é sempre [k]: caput, excuso, excludo;

b) antes de e e i, xc e c são articulados, respectivamente, como "kch" e "tch" (em transcrição fonética, [kʃ] e [tʃ]): excelsis ("ekchelsis"), centum ("tchentum").

Pergunta:

«Elo de ligação» é uma expressão correcta? Por exemplo, uma autarca no seu site escreve: «pretendemos com este site reforçar os elos de ligação entre este concelho e o mundo.» Não estamos perante uma redundância?

Muito obrigada e parabéns pelo vosso excelente trabalho.

Resposta:

Em princípio, trata-se de um pleonasmo, porque elo significa, além de «argola de corrente», «relação existente entre pessoas ou coisas; conexão, vinculação, união», pelo que «elo de ligação» vem a ser o mesmo que «união de ligação», uma clara redundância. No entanto, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa atesta o uso da expressão, e o mesmo faz o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, sem qualquer espécie de indicação que condene ou restrinja o emprego de «elo de ligação». Os usos pleonásticos são muitas vezes legitimados pelo seu valor enfático; ainda assim, não sendo este caso dos mais recomendáveis, o melhor é evitá-lo.

Pergunta:

Gostaria de que tivessem a gentileza de dizer-me qual destas orações é o correcto. Se for a última, que me digam, por favor, por que é necessária a preposição: Te pago o serviço; te pago pelo serviço.

Infinitamente obrigado.

Resposta:

Pode usar as duas estruturas, embora elas não tenham os mesmos valores semânticos e referenciais. Assim, mantendo a formulação da frase, que é comum no português brasileiro coloquial:

1. «Te pago o serviço.»

2. «Te pago pelo serviço.»

Em 1, subentende-se a expressão «o que o serviço custa», «o valor do serviço» ou «o preço do serviço». Em 2, ocorre a elipse da expressão correspondente ao valor pago: «pago-te [uma dada soma de dinheiro] pelo serviço».

 

Pergunta:

A estrutura «deixar-se ser/estar + particípio» é aceitável?

Resposta:

Depois de «deixar-se», não é de recomendar a construção passiva formada pelo auxiliar ser e pelo particípio passado de um verbo principal, como mostra a agramaticalidade (indicada por um asterisco) ou a reduzida aceitabilidade (marcada por ?) da seguinte frase:

1.*/?«Ele deixou-se ser apanhado.»

Como a gramática tradicional tem dificuldade em explicar (1), socorro-me da investigação em linguística, mais precisamente, dos comentários de Augusto Soares da Silva sobre a construção deixar-se + infinitivo, em A Semântica de Deixar (Fundação para a Ciência e Tecnologia/Ministério da Ciência e Tecnologia, 1999, págs. 590):

«Na construção reflexiva deixar-se + INF, ocorre o infinitivo ora intransitivo ("O Zé deixou-se cair") ora transitivo ("O Zé deixou-se apanhar"). No primeiro caso, o pronome reflexo é o sujeito da frase infinitiva (O Zé deixou + O Zé caiu), ao passo que, no segundo, é o objecto directo da frase infinitiva (O Zé deixou + Alguém apanhou o Zé).»

Quando o infinitivo corresponde a um verbo transitivo, este assume um valor passivo, mas com certas particularidades em relação à passiva canónica (idem, pág. 591):

«Com infinitivo transitivo [...] põe-se a questão da interpretação do valor passivo não só do infinitivo como de toda a construção. Se é verdade que a oração apresenta marcas da passiva, que se tornam claras quando o sujeito do infinitivo é explicitado no sintagma com por (cf. O Zé deixou-se apanhar pelo companheiro = O Zé deixou + o Zé foi apanhado pelo companheiro), e estas marcas "contaminam" toda a construção, também é verdade que o sujeito (aqui, "o Zé") é mais 'activo' do que na passiva canónica e falta o carácter 'resultativo' (estáti...