Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Os adolescentes leem sentimentos, gestos e silêncios», posso considerar a presença de sinestesia?

Agradeço a vossa ajuda.

Resposta:

É um caso dúbio, até porque a frase parece provir de um texto reflexivo ou ensaístico, e a sinestesia é mais típica ou do texto póético ou da descrição em textos narrativos. Mesmo assim, pode considerar-se que o uso de ler que a frase ilustra é, estilisticamente, uma sinestesia.

Aceitando que ler sugere denotar o exercício da faculdade da visão, dir-se-á que ler sentimentos, gestos e silêncios é conjugar a capacidade de ver com outro tipo de perceção, a das emoções, marcada pela palavra sentimentos, e a sonora, evocada negativamente por silêncios. Sendo assim, poderia pensar-se que «leem sentimentos, gestos e silêncios» configura uma sinestesia, entendendo esta como uma expressão em que se associam sensações diferentes.

Não obstante, também se poderá afirmar que a frase em questão atesta um uso especial de ler, através de um processo de extensão semântica que o faz sinónimo de interpretar. Nesta perspetiva, é possível aproximar este uso do verbo ler do termo literacia, a qual, no entanto, não tem a mesma etimologia1. Além disso, ler, mais do que verbo de perceção (neste caso, a visão), é um verbo que denota um processo intelectual, razão por que se afigura mais natural considerar «leem sentimentos, gestos e silêncios» como um caso de uso figurado de ler como equivalente de interpretar.

Convém, portanto, desaconselhar a abordagem de casos como o da questão num exercício escolar para apreensão ou reconhecimento do conceito de sinestesia, visto ser pouco ou nada esclarecedor quanto à identificação desta figura de retórica.

 

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Pergunta:

Podemos dizer «ataque cibernáutico»? Ou somente «ataque cibernético»?

A palavra cibernáutico existe ou não e, se sim, em que contextos a podemos utilizar?

Obrigada.

Resposta:

Pode-se empregar «ataque cibernáutico», mas mais corrente é o uso de «ataque cibernético». Mais difundida ainda é a palavra ciberataque.

Não é possível encontrar a palavra cibernáutico em dicionários em linha com origem em Portugal (Infopédia, Priberam, Academia das Ciências de Lisboa). Também não se encontra registo nos dicionários brasileiros a que aqui se teve acesso (Houaiss, Michaelis, UNESP).

Note-se, contudo, que cibernáutico é uma palavra possível e correta, pois deriva regularmente de cibernauta. Pode igualmente considerar-se que cibernáutico é sinónimo de cibernético, pois, em abundantes registos, significa, além de «(o que é) relativo à cibernética, que é a ciência que faz os estudos comparativos dos sitemas de comunicação e regulação das máquinas e dos seres vivos», «(o que é) relativo à Internet e ao ciberespaço». Tendo, então, em conta que cibernauta é «pessoa que utiliza a Internet regularmente» (Infopédia), à formação de cibernáutico associa-se um significado que pouco ou nada difere do de cibernético.

Mesmo assim, consultando páginas em linha, nota-se que, quando se trata de ataques informáticos pela Internet, as expressões recorrentes e predominantes são «ataque cibernético». De forma mais sintética, regista-se ciberataque, provável dec...

Pergunta:

Eu fui criticado por uma expressão que julgo estar certa e, na realidade, as pessoas que me rodeiam também a dizem.

Acontece que há pessoas que dizem que é errado, na internet. Trata-se da expressão «estar de».

Bem sei que é usada para no referirmos a um estado provisório, não habitual, como «estou de baixa», «estou de férias» ou «estou de trombas», certo? Acontece que a mesma expressão, no meio em que estou inserido, ou seja em Lisboa, e pensando eu que seria no país todo, o que até pode ser que seja o caso, também se usa a expressão «estar de» em relação ao vestuário.

Por exemplo: «Eu hoje estou de ténis»; «ele está de calções e de T-shirt».

Penso que já perceberam a ideia? Conhecem esta expressão também? Ela é estranha? Existe alguma agramaticalidade contida na mesma?

Obrigado.

Resposta:

O uso em causa nada tem de incorreto.

O verbo estar pode ter associado um complemento introduzido por de realizado por uma expressão referente a vestuário, como bem se atesta, por exemplo, em textos literários (pesquisa feita no Corpus do Português, de Mark Davies):

(1) «Já todo esse campo está de camisa nova vestida, e muito branca [...]» (Fialho de Almeida, "A Velha", conto de O País das Uvas, 1893)

(2) «No espelho eu estou de traje civil ...» (Maria Velho da Costa, Missa in Albis, 1988)

(3) «Eu, que estava de toga...» (Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, 1994)

Por vezes, em relação ao vestuário, podem gerar-se pequenas diferenças:

(4) estava em camisa = estava em/de roupa interior/só vestia a roupa interior

(5) estava de camisa aos folhos = vestia camisa aos folhos

Em (5), é preciso especificar a peça de vestuário – p. ex. «camisa aos folhos», «camisa vermelha».

Pergunta:

O termo metralhamento pode ser aceite como correto no léxico do português europeu?

Já o vi grafado em alguns meios, como o diário dos debates parlamentares, e revistas militares.

Gostaria de o utilizar na tradução do termo strafed, derivado do verbo strafe, que significa «atacar com metralhadoras ou canhão, a partir de aeronaves voando a baixa altitude», embora os dicionários traduzam genericamente por bombardear.

Desde já, muito grata pelo vosso parecer.

Resposta:

É uma opção por enquanto discutível em português de Portugal, sobretudo porque tem pouco uso. Mesmo assim, há bons argumentos para a sua aceitação.

Numa consulta na Internet, a palavra metralhamento, que está bem formada, parece ser corrente em páginas com origem no Brasil. O vocábulo não parece ter registo frequente nos dicionários brasileiros, mas encontra-se no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2003), com a seguinte definição: «execução com tiros de metralhadora ou outra arma automática».

Acontece que em páginas relacionáveis com Portugal, a palavra alguma presença, sobretudo como termo técnico militar 1. Note-se, porém, que, tratando-se de palavra correta e verificando que o verbo que lhe dá a base de derivação2, metralhar, está também bem formado e não tem tradição de censura normativa, não avulta razão para rejeitar metralhamento, que, relativamente ao inglês strafe2, é palavra semântica e referencial mais próxima do que bombardeamento.

Não se vê, portanto, argumento de peso contra o uso de metralhamento no português de Portugal. Mesmo assim, visto tratar-se de palavra pouco usada em Portugal, é sempre possível recorrer a perífrases, apesar de estas constituírem sempre uma solução menos elegante. Por exemplo: «eles foram metralhados por aviões em voo rasante» ou «aviões em voo rasante metralharam-nos».

1 Em páginas da Internet, foi possível recolher cinco atestações da palavra, duas na edição digital da ...

Pergunta:

Qual é a diferença entre as locuções latinas modus operandi e modus faciendi?

Resposta:

São locuções latinas praticamente sinónimas, como se conclui da consulta dos seus registos no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001):

«modus faciendi: modo de fazer ou de proceder.»

«modus operandi: modo pelo qual um indivíduo ou uma organização desenvolve suas atividades ou opera.»

Se diferença existe, é a que distingue a ação indiferenciada associada a modus faciendi da ação vista como trabalho que conota modus operandi.

Mas a distinção é mínima, como se infere dos registos destas locuções em francês – por exemplo, no dicionário da Académie Française sobre a palavra latina modus. No entanto, nota-se que, nos dicionários de espanhol, italiano ou inglês, modus operandi tem registo mais corrente do que modus faciendi.

É também de assinalar que, na ordem inversa, faciendi modus ocorre na Institutio Oratoria de Quintiliano (35 d.C.-95 d. C.) com significado próximo do termo «voz ativa», por oposição a patiendi modus, «voz passiva» (ver Gaffiot, Dictionnaire Latin-Français, 1934, s.v. modus).