Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por favor, analisem as seguintes frases:

1) «Os sindicalistas pediram à direção da Petrobras que garantisse que não haveria demissões.»

2) «Os sindicalistas pediram à direção da Petrobras que garanta que não haverá demissões.»

Segundo um linguista brasileiro (Pasquale Cipro Neto), em 1, toda a ação parece circunscrita no passado, razão pela qual foram usadas as formas verbais garantissem (pretérito perfeito do subjuntivo) e haveria (futuro do pretérito do indicativo). Já em 2, foram usadas as formas verbais garanta (presente do indicativo do subjuntivo) e haverá (futuro do presente do indicativo). Segundo seu raciocínio, em 2, indica-se que, se houver demissões, elas ocorrerão no futuro (haverá), mas em relação ao presente (garanta). Já em 1, indica-se que, se houvesse demissões, elas ocorreriam no futuro em relação a todo o fato informado, que parece circunscrito ao passado (pediram).

Relativamente ao mesmo tema, analisem o seguinte trecho, retirado da revista Veja (14/03/12):

«Presidenta Dilma ordenou ao ministro dos Portos, Leônidas Cristino, que lance até junho o edital de concessão dos portos federais.»

Conforme algumas respostas sobre o mesmo tema no Ciberdúvidas, o tempo verbal da subordinada (lance) deve concordar com o da principal (ordenou), que não ocorre n...

Resposta:

Em português, do ponto da referência temporal, o pretérito perfeito pode ter dois valores:1

a) uma ação num tempo bem determinado e já acabado: «na década passada, os sindicalistas pediram (...) que garantisse...»

b) uma ação passada e perfeita mas num determinado período cronológico que ainda não findou: «hoje/esta semana/este ano os sindicalistas pediram (...) que garanta...»

Deste modo, não há qualquer violação da sequencialização dos tempos verbais (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, págs. 173-178). Pelo contrário, a concordância existe, porque se faz em função de valores diferentes do pretérito perfeito simples.

1 Para a identificação destes dois valores, baseio-me no artigo de Roberto Ceolin, Falsos Amigos Estruturais: Entre o Português e o Castelhano, que compara o pretérito perfeito simples e composto do português com os do castelhano normativo da Península Ibérica. Os dois valores aparecem marcados por tempos diferentes no castelhano: a ação num tempo determinado, pelo simples; a ação acabada no tempo da enunciação, pelo composto:  

[Se] duas acções coexistem numa mesma frase, o composto serve para enunciar aquela que estiver mais próxima do momento de enunciação:

1. Ayer comí en casa pero hoy he comido en el restaurante aquí al lado

Pergunta:

«Os antropólogos acharam, provavelmente, que era uma afirmação identitária.»

Que função sintáctica representa identitária na frase?

É complemento do nome, ou modificador do nome restritivo?

Resposta:

Identitária é parafraseável por «de/relativo a identidade», e afirmação é um nome que seleciona um argumento («a afirmação de alguém/alguma coisa»; neste caso, «a afirmação de identidade»). Interpretando-se «afirmação identitária» como «afirmação de identidade», verifica-se que «de identidade» é complemento de «afirmação», logo, deve analisar-se também «identitário» como complemento do mesmo substantivo.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem, se possível, a seguinte questão: Como se dividem e classificam as orações presentes neste terceto de Luís de Camões?

Estando em terra, chego ao Céu voando;

num´hora acho mil anos, e é de jeito

que em mil anos não posso achar um´hora.

Resposta:

A análise sintática da sequência de versos apresentada é a seguinte:

1. Os versos formam uma sequência constituída por duas orações coordenadas assindéticas (isto é, que se ligam sem conjunção), «estando em terra, chego ao Céu voando» e «num´hora acho mil anos, e é de jeito/que em mil anos não posso achar um´hora».

2. Por sua vez, estas orações coordenadas analisam-se do seguinte modo:

2.1. «estando em terra»: oração subordinada reduzida de gerúndio de valor temporal (equivalente a «quando estou em terra»)

«chego ao Céu voando»: subordinante

«voando»: oração subordinada reduzida de gerúndio com valor de simultaneidade (equivalente a «ao mesmo tempo que voo»)

2.2. «num´hora acho mil anos»: oração coordenada

«e é de jeito/que em mil anos não posso achar um´hora»: oração coordenada

«em mil anos não posso achar um´hora»: oração subordinada completiva (complemento da expressão «é de jeito que»).

Pergunta:

Sou natural de Aveiras de Cima, freguesia do concelho de Azambuja, onde ninguém se entende quanto ao gentílico.

Quando era criança, era natural chamar aos habitantes da terra aveirenses, o que propiciava a confusão com os habitantes de Aveiro. A partir de uma certa altura começou a deixar de se usar esta designação, e até a filarmónica local mudou o nome de Filarmónica Recreativa Aveirense para Filarmónica Recreativa de Aveiras de Cima.

Actualmente usa-se o termo aveirecense ou aveiricense, que me parece foneticamente errado. Já ouvi o termo cima-aveirense, que me parece mais adequado. Eu propunha o termo veirense, apenas porque, segundo os registos, seria o nome original, já muito antigo, da localidade. Teria havido um fenómeno de evolução fonética. Note-se que os naturais de Guimarães são vimaranenses. Afinal, qual é o termo correcto?

Resposta:

Entre as formas apresentadas pelo consulente, são possíveis aveirense e cima-aveirense. Como bem se observa na pergunta, aveirense tem realmente o grande inconveniente de se confundir com o gentílico relativo a Aveiro. Cima-aveirense também constitui alternativa a aveirense, tendo em conta o exemplo de Cima Corgo, donde se deduz a forma não atestada cima-corguense. No caso Aveiras de Cima, no qual Cima se segue ao topónimo Aveiras, é possível seguir o modelo de América do Sul ou África do Sul, aos quais correspondem formas gentílicas com inversão da marca de localização: sul-americano e sul-africano. Mas se tanto aveirense como cima-aveirense incomodam os naturais da localidade em apreço, então é de aconselhar o uso de perífrases como «de Aveiras de Cima», para modificar outros substantivos, como acontece com «Filarmónica Recreativa de Aveiras de Cima», com valor adjetival, ou de expressões nominais como «os de Aveiras de Cima», «os naturais de Aveiras de Cima», «a população de Aveiras de Cima».

A forma "aveirecense" é que não se afigura aceitável: a terminação -ecense não tem justificação nem morfológica e etimológica, visto pôr a hipótese de Aveiras ter origem em *

Pergunta:

Porque é uma conjunção coordenativa ou subordinativa?

Se puder ser ambas as coisas, gostaria de ver exemplos das duas situações.

Resposta:

Podemos encarar porque quer como conjunção coordenativa quer como conjunção subordinativa.

Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, págs. 577 e 581) classificam porque do seguinte modo:

a) como conjunção coordenativa explicativa, podendo substituir pois: «Dorme cá, pois quero mostrar-lhe as minhas fazendas.» (Aquilino Ribeiro, Malhadinhas Minas de Diamantes, Lisboa, Bertrand, 1958, pág. 45) = «Dorme cá, porque quero mostrar-lhe as minhas fazendas.»

b) como conjunção subordinativa causal: «Tenho continuado a poetar, porque decididamente se me renovou o estro.» (Antero de Quental, Cartas, 2.ª ed. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921, pág. 357).

Em a), porque introduz a justificação de uma ordem («dorme cá»), pelo que marca valor explicativo. Em b), a conjunção introduz uma oração que se refere à causa do acontecimento ou situação expressos pela oração subordinante — trata-se de um porque causal.

Note-se, no entanto, que porque é muitas vezes ambíguo, marcando os dois valores. Por exemplo, no caso de b), também se pode dizer que porque é uma conjunção explicativa, na medida em que se justifica o enunciado «tenho continuado a poetar» (ver Textos Relacionados).