Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Certo dia, chegou o autocarro vindo de Paris...», pode considerar-se a expressão «Certo dia» como locução adverbial de tempo?

Caso a resposta seja afirmativa, qual seria o advérbio equivalente?

Resposta:

A expressão «certo dia» pode ser considerada uma locução adverbial de tempo, tal como «um dia», «certa vez» ou «uma vez»1. Quanto à substituição desta locução por um advérbio equivalente, não encontro palavra que a possibilite. Noto, porém, que, quando se diz que uma locução adverbial equivale a um advérbio, não quer isso dizer que tenhamos de encontrar sistematicamente um advérbio para o efeito; o que importa saber é que uma locução adverbial tem numa frase o mesmo comportamento que um advérbio, conforme apontam Cristina Serôdio et al., na Nova Gramática Didática da Língua Portuguesa (Lisboa, Santillana/Constância, 2011, pág. 122):

«As locuções adverbiais são expressões formadas por mais de uma palavra que funcionam como um advérbio simples. [...]»

No caso em apreço, é também de assinalar que a locução é formada por um grupo nominal, tal como acontece com grupos nominais (ou sintagmas nominais) de localização temporal com interpretação adverbial (cf. M.ª Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 166/167; ver Textos Relacionados).


1 No Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, o que Énio Ramalho diz sobre a expressão «um belo dia» aplica-se a «certo dia»: «dia, um belo: um belo d[ia] veio ter comigo um pobre camponês (num certo dia: exprime data indeterminada).»

Pergunta:

Após várias pesquisas no site do Ciberdúvidas, dicionários, prontuários... não consegui esclarecer uma dúvida.

O que é correto: «Ele obteve muito bons resultados», ou «Ele obteve muitos bons resultados», ou ambos estão corretos?

Resposta:

Depende do que se pretende dizer:

a) «Ele obteve muito bons resultados» = «Ele obteve resultados que são muito bons»;

b) «Ele obteve muitos bons resultados» = «Ele obteve muitos resultados que foram bons.»

Pergunta:

Queria saber a transcrição fonética das palavras sede e seda.

Resposta:

Sede e seda são formas que podem corresponder individualmente a duas palavras diferentes: sede = «vontade de beber» vs. sede = «lugar»; seda = «tipo de tecido» vs. seda «dá sedativo (forma de 3.ª pessoa do singular do verbo sedar).

A respeito do português europeu, eis as transcrições fonéticas pedidas (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, e Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora):

sede «vontade/necessidade de beber» [ˈsedɨ]

sede «lugar» [ˈsɛdɨ]

seda «tipo de tecido» [ˈsedɐ]

Para a forma verbal seda, não há transcrição disponível, mas a abertura da vogal do radical por efeito da deslocação do acento nos verbos da 1.ª conjugação permite fazer a seguinte transcrição:

seda «forma do verbo sedar» [ˈsɛdɐ]

Os dicionários consultados apresentam o símbolo [d] para representar uma consoante intervocálica como oclusiva dental vozeada, mas é de notar que muitos falantes de Portugal produzem essa consoante entre vogais como uma fricativa interdental vozeada ([ð]: [ˈseðɨ], [ˈseðɐ]).

Quanto ao português do Brasil, o registo áudio disponível no Dicionário Aulete permite as seguintes transcrições:

Pergunta:

Na frase «Ontem, ele fez o trabalho duas vezes», como é classificado sintaticamente «duas vezes» na antiga terminologia linguística?

Resposta:

Em Portugal, na perspetiva da antiga terminologia, dir-se-ia que «duas vezes» é um complemento circunstancial. Depois, haveria a dificuldade de o especificar, mas parece-me que o mais plausível seria classificá-lo como complemento circunstancial de tempo, dado a expressão se referir à repetição de uma ação.

Pergunta:

Sei que a palavra religião vem do latim religĭo, ōnis, mas gostaria de saber se existe alguma sustentação para o étimo geralmente atribuído a ela, tal seja o que a faz derivar de religo (infinito religare) (Francisco Torrinha, em seu Dicionário Latino Português, nem sequer registra esse verbo).

Parece tratar-se apenas de uma etimologia fantasiosa. Estou errado?

Resposta:

Não há a certeza de que religio apresente o mesmo radical de religare, conforme se comenta no Dicionário Houaiss, em nota etimológica baseada no Dictionnaire Etymologique de la Langue Latine, de A. Ernout e A. Meillet:1

«"o prefixo é re-, red- (cf. relliquiae, reliquiae)", dizem Ernout e Meillet, "mas o segundo elemento é obscuro. Os latinos ligam-no a relegere (...), etimologia defendida por Cícero (...). Outros autores [Lactâncio e Sérvio] associam religĭo a religāre: seria propriamente `o fato de se ligar com relação aos deuses´, simbolizado pela utilização das uittae [`fitas para enfeitar as vítimas ou ornar os altares´] e dos stémmata no culto. Alega-se em favor desse sentido a imagem de Lucrécio, 1, 931: religionum nodis animum exsoluere; (...). O sentido seria portanto: `obrigação assumida para com a divindade; vínculo ou escrúpulo religioso´ (cf. mihi religio est `tenho o escrúpulo de´); depois `culto prestado aos deuses, religião´."»

1 Sobre estas duas hipóteses etimológicas, leia-se também «Religião vem de "reler" ou "religar"?»