Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Quais são os tópicos correntes na linguística corrente?

Resposta:

Sendo «linguística corrente» uma expressão muito vaga, dou-me conta de que ela pode ser entendida de várias maneiras. Atrevo-me a propor duas:

a) introdução aos estudos linguísticos, conforme surge por vezes nos currículos universitários, o que significa geralmente aflorar problemas de análise linguística em sintaxe, morfologia, fonologia e fonética, eventualmente abarcando breves apresentações de outros âmbitos de investigação como a psicolinguística, a lexicologia, a sociolinguística, a pragmática;

b) a linguística atual, com os campos de investigação que neste momento têm estado mais em foco: por exemplo, a psicolinguística, a sociolinguística, a pragmática, a fonologia (em especial, os estudos de prosódia).

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo deixar pode ser utilizado nas seguintes formas:

«Eu deixei ela fazer o que queria.»

«Eu deixei que ela fizesse o que queria.»

«Eu deixei-a fazer o que queria.»

Resposta:

As formas corretas são:

1. «Eu deixei-a fazer o que queria.»

2. «Eu deixei que ela fizesse o que queria.»

O sujeito da oração subordinada substantiva não finita (ou de infinitivo) em 1 (implicitamente, «ela») realiza-se sempre como complemento direto de deixar quando este é o verbo da oração subordinante. Quanto a 2, temos uma oração subordinada substantiva completiva.

Pergunta:

Tenho uma dúvida quanto ao uso do pronome se para coisas inanimadas e impessoais. Por exemplo: «A praça se esvaziou.»/«A praça esvaziou.»

Qual forma é a correta? «A porta abriu», ou «se abriu»?

«O copo caiu e quebrou» ou «se quebrou»?

Resposta:

Não me parece que a gramática normativa tenha uma resposta clara sobre toda esta classe de verbos. É famosa a condenação de "reuniu", em lugar de reuniu-se, mas depois não há a tradição de rejeitar «a praça esvaziou», «o copo partiu/quebrou», «a porta abriu», em lugar de «a praça esvaziou-se», «o copo partiu-se/quebrou-se» e «a porta abriu-se», respetivamente. Trata-se do que em gramáticas como a de M.ª Helena Mira Mateus se chama «verbos de alternância causativa», nos quais o clítico se pode ser obrigatório ou opcional (Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 305/306).1

 

No caso dos verbos esvaziar, partir, quebrar e abrir, recorro à minha intuição (embora não encontre um teste que me permita saber com segurança em que casos o se é opcional e obrigatório), para dizer que, com todos eles, o se é opcional, uma vez que não noto agramaticalidade na ausência deste pronome. No entanto, do ponto de vista da norma, parece-me que se encara este uso como próprio do registo informal, dando-se caráter de formalidade ao uso pronominal («esvaziou-se», «partiu-se», «quebrou-se», «abriu-se»).

1 Opto pela ênclise do pronome átono ao verbo em contexto de frase declarativa sem qualquer relação de subordinação. Sobre a colocação do pronome clítico nas variedades brasileiras, ver Textos Relacionados.

Pergunta:

Já vi, em textos antigos, Cascais escrito como «Cascaes», e Portuguesa como «Portugueza».

Eu tinha ideia de que a escolha do z ou do s, e do e ou do i, nos casos em que têm o mesmo valor fonético, se prendia pela etimologia das palavras. Então porque é que estas palavras não se escrevem desta maneira?

Resposta:

As formas "Cascaes" e "portugueza" são anteriores ao Acordo Ortográfico de 1945. Assim:

1. Cascaes deve ter sido substituído por Cascais na sequência da Reforma de 1911, a qual determinava que a «[a subjuntiva fraca dos ditongos seja sempre escrita com i, u,e nunca e, o [...]» (Relatório, publicado no Diário do Governo, n.º 213, de 12 de setembro de 1911, in Ivo Castro et al., A Demanda da Ortografia Portuguesa, Edições João Sá da Costa, 1987, pág. 156). É possível que a grafia Cascaes tenha perdurado depois de 1911; de qualquer modo, o acordo de 1931 voltava a reforçar que ae devia dar lugar a ai (idem, pág. 165; mantém-se a grafia original): «[Grafar] [c]om ai, au, eu, iu e oi os ditongos que alguns escrevem com ae, ao, eo, io, oe: mãi,

Pergunta:

Tenho a seguinte dúvida:

Em A Cidade e as Serras (edição da Livros do Brasil), lê-se, na página 81: «o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse.»

A minha dúvida é sobre «o interessasse». Não seria mais correcto «lhe interessasse»?

Ou seriam ambos aceitáveis?

Resposta:

O verbo interessar pode ser transitivo direto («o interessasse») ou transitivo indireto («lhe interessasse»). Com base em Mário Vilela (Dicionário de Português Básico, Porto, Edições ASA, 1991) e Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, pág. 522/523), verifica-se geralmente que este verbo:

a) com complemento direto, ocorre nas aceções de «cativar o espírito» («a
história não interessa as crianças» = «... não as interessa») e «captar o
favor de» («o professor interessou o aluno pelo livro» = «...
interessou-o...»);

b) significando «dizer respeito a», seleciona complemento direto ou complemento indireto («este tema não interessa o público/ao público» = «... não o/lhe interessa»).

Note-se, porém, que há ocorrências de interessar que têm leitura ambígua, entre «cativar o espírito» e «dizer respeito a», podendo elas também aceitar um complemento indireto. Por exemplo, Celso Cunha e Lindely Cintra (ibidem) apresentam o uso de interessar como transitivo direto, na aceção de «captar ou prender o espírito, a atenção, a curiosidade» e «excitar a», mediante o seguinte exemplo: «As histórias de Zefinha não o interessavam.» (José Lins do Rego, Meus Verdes Anos — memórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 1957, pág. 318). No entanto, a substituição de o por lhe não afeta a gramaticalidade da frase: «As histórias de Zefinha não lhe interessam.» Neste caso, a interpretação semântica do verbo não indica com clareza a opção sintática.1 Em s...