Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pesquisando o que julgo ser o real significado da palavra ateu, deparei-me com uma resposta que indica descrença em Deus, negação da existência de Deus.

No entanto, pesquisando pelo prefixo a-, é-me respondido que pode significar «ausência de». Por exemplo, amoral, acéfalo, assexuado, etc.

Daí a minha pergunta: ateu não significará, em rigor, «ausência de deus»?

Resposta:

Ateu é um substantivo e um adjetivo que se aplica a pessoas que têm um dado posicionamento em relação à questão da existência de Deus, e não a esse posicionamento em si, que é designado por ateísmo. Deste modo, ateu não significa «descrença em Deus» ou «ausência de deus», mas, sim, «aquele que não crê em Deus» e «aquele que não tem deus».

Quanto à análise etimológica da palavra ateu, há a dizer que o Dicionário Houaiss lhe atribui origem grega, do grego átheos, a, on, «que não crê em Deus», palavra que foi transmitida ao português pela adaptação latina athĕus ou athĕos; o mesmo dicionário indica que a palavra está documentada em português, pelo menos desde 1611.

Pergunta:

Antes de mais, o grande agradecimento ao site – um tira-teimas de que me socorro muitas vezes – e os parabéns!

Agradeço esclarecimento sobre a regência do verbo alertar e do verbo avisar com oração completiva (a verdadeira dificuldade das regências):

1) «Eu avisei [alguém] de que/que chegaria tarde.»

2) «Os media alertaram [os idosos] para que/que/de que devem ficar em casa devido à vaga de calor.»

Resposta:

No primeiro caso, a melhor construção é «eu avisei alguém de que chegaria tarde» e, no segundo, «os media alertaram os idosos para que devem ficar em casa...» ou «os media alertaram os idosos para que fiquem em casa...».

Com base em Winfried Busse, Dicionário Sintático de Verbos Portugueses (Coimbra, Almedina, 1994), é possível descrever a sintaxe destes dois verbos do seguinte modo (exemplos retirados da fonte consultada, com adaptações):

1. Alertar

1.1. «alertar alguém»: «Vocês vieram aqui para nos alertar [...].»

1.2. «alertar alguém de alguma coisa»: «[...] ele devia ter uma espécie de radar que funcionava mesmo durante o sono e o alertava dos perigos.»

1.3. «alertar [alguém] para alguma coisa» (é opcional o complemento direto — referente à pessoa alertada): «Alertei as pessoas para a ilegalidade que estavam a cometer»; «O primeiro-ministro alertou para a necessidade de combater o insucesso escolar.»

1.4. «alertar alguém [para] que...» (seguido de oração completiva finita com o verbo no conjuntivo; é opcional a preposição para): «Alertei-os (para) que prestassem atenção aos intrusos.»

N. B.: No entanto, o verbo alertar também pode ocorrer com uma completiva finita com o verbo no indicativo, como se verifica no Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira: «[...] Antônio Carlos Magalhães [...] alertou que a emenda da reeleição não significa recondução automática dos governantes [...].» Neste caso, trata-se de um sinónimo de avisar (ver infra), sendo permutável com este («ele alertou/avisou que a emenda não signi...

Pergunta:

É lícita no idioma vernáculo a construção a + infinitivo em expressões como «assuntos a tratar» ou «conteúdo a publicar»?

Resposta:

É lícita, sim. Há gramáticos normativistas que consideraram que a construção, por ter influência francesa, devia ser rejeitada (ver Vasco Botelho de Amaral, Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, pág. 4). No entanto, a construção está hoje de tal modo enraizada no português, que se pode afirmar que se naturalizou e é correta.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é a classificação gramatical da palavra ainda e se existe alguma regra para a sua colocação na frase em relação aos verbos (i. e., deve estar antes ou depois).

Por exemplo, a seguinte frase deve ser «Quando regressei, a empregada ainda estava a preparar o almoço», ou «... estava ainda a preparar o almoço»?

Resposta:

Ainda é tradicionalmente classificado como um advérbio de tempo (ver Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 539). Pode ocorrer antes ou depois do verbo (idem, pág. 542): «ainda preparava» = «preparava ainda».

No caso de o verbo corresponder a uma locução verbal, o advérbio pode surgir antes ou depois do auxiliar («ainda estava a preparar» = «estava ainda a preparar») ou depois do verbo principal («estava a preparar ainda»).

Pergunta:

Sou professora de português e, constantemente, ouço gente a dizer: «Na minha opinião, acho que...» Isto já aconteceu até com um ex-primeiro-ministro português. Parece-me que são dois enunciados fundidos em um. Será correto, ou não? Um aluno já foi expulso da sala de aula por ter dito ao professor que não se pode enunciar uma opinião com as duas expressões.

Obrigada.

Resposta:

É preciso ter alguma serenidade em matéria de práticas normativas de língua: dizer «na minha opinião, acho...» é uma redundância, porque quem acha tem opinião. Por isso, em vez da expressão redundante, há que encontrar formas de a evitar; por exemplo:

a) «Na minha opinião, o João tem um desempenho acima da média.»

b) «Acho que o João tem um desempenho acima da média.»

Mas não vejo necessidade de que, por causa de uma redundância, um aluno diga que não se pode proferi-la, como se se tratasse de um imperativo categórico, ou que um professor o expulse, eventualmente porque acha (ou é de opinião...) que a redundância é que está certa. Certamente que no conflito de que dá conta a consulente algo mais se jogava do que um uso linguístico a evitar.