Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Relativamente à frase «Vem dar-nos conta do seu saber sobre o tema de que vamos tratar neste seminário», diz-se: «de que vamos tratar», ou «que vamos tratar neste seminário»?

Resposta:

No sentido de «abordar», «discutir», o verbo tratar usa-se com ou sem a preposição de, conforme atesta o Dicionário Houaiss (s. v. tratar): «tratemos hoje o problema da dívida interna do país» (sem preposição); «vou tratar da morfologia, deixando a sintaxe para outra aula» (com a preposição de). Deste modo, estão corretas as duas sequências apresentadas pela consulente.

Atenção com a expressão «trata-se (de)», que é impessoal e se usa sempre preposicionada, com o significado de «o que está em causa é...», «o que importa é...», «(isto) é...», «estamos a falar de...»: «trata-se aqui de reclamar direitos feridos» (idem).

 

CfTratam-se ou trata-se de erros comuns?

 

A repetição de dois sinais de dois pontos na mesma frase é ou tem sido possível, pelo menos, em textos literários, embora se trate de um uso muito marginal que a maioria dos prontuários, das gramáticas de referência ou dos guias gramaticais não chega a mencionar1. Há, no entanto, algumas pistas históricas que permitem um juízo normativo mais consistente.

Pergunta:

O verbo caber, no sentido de competir, flexiona normalmente?

«Cabem aos tribunais as revisões anuais...», ou «Cabe aos tribunais as revisões anuais...»?

Resposta:

O verbo caber não é impessoal, concordando com o seu sujeito (cf. Winfried Busse, Dicionário Sintático de Verbos Portugueses, Coimbra, Almedina, 1994, s. v. caber).

Deste modo, deverá dizer-se e escrever-se «cabem aos tribunais as revisões anuais», porque «revisões anuais» é uma expressão nominal no plural que desempenha a função de sujeito.

Pergunta:

Tomei conhecimento um dia destes de norma de língua culta estabelecendo impossibilidade de ênclise em verbos proparoxítonos. Gostaria de saber se poderia me ajudar com a referência a essa norma. Fiz uma busca rápida, mas não consegui encontrá-la nos materiais que consultei. Saberia me dizer onde posso encontrar referência a ela?

Resposta:

Não encontro referência à restrição que o consulente aponta, que diz respeito a formas verbais, e não a verbos tomados globalmente.

As formas proparoxítonas ocorrem na primeira pessoa do plural: «púnhamos o chapéu» > «púnhamo-lo»; «cantávamos a canção» > «cantávamo-la»; «fizéssemos um elogio» > «fizéssemo-lo» (p. ex.: «fizéssemos um elogio ou não, estava sempre calada» > «fizéssemo-lo ou não, estava sempre calada»). É, pois, possível ocorrerem pronomes átonos em ênclise a formas verbais proparoxítonas.

Pergunta:

A palavra autocarro é derivada, ou composta?

Resposta:

Não me parece fácil dar uma resposta inequívoca.

Do ponto de vista sincrónico, isto é, considerando o funcionamento do português numa dada fase, no caso atual, podemos descrever a palavra de duas maneiras:

a) composto morfológico, dado que auto- é um radical de origem grega que significa «mesmo», tal como acontece em autoconfiança ou autómato;

b) contudo, o elemento auto- aparece frequentemente classificado como prefixo, sobretudo quando analisado como um prefixo resultante da truncação de automóvel; nesse caso, diz-se que autocarro é uma apalavra derivada por prefixação.

Não obstante, do ponto de vista da história da palavra, não se confirmam as análises em a) e b). Na verdade, o Dicionário Houaiss indica que a palavra autocarro foi introduzida em português por empréstimo do francês autocar, por sua vez adaptação «do ing[lês] autocar, "automóvel", com especialização de sentido para (1895) "carro automóvel equipado para o transporte coletivo de passageiros"».