Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a grafia correta deste ser mitológico: Tifão, Tífon ou Tifeu?

Muito obrigado.

Resposta:

Trata-se do nome de uma figura mitológica, um gigante filho de Gaia e do Tártaro que, de acordo com o mito, está enterrado no monte Etna.

Na origem e depois na sua transmissão às língua europeias pelo latim, o nome tem variantes1:

Τυφῶν, romanizedo Typhôn

Τυφωεύς, romanizado Typhōeús

Τυφάων, romanizado Typháōn

Τυφώς, romanizado Typhṓs 

As formas que se fixaram como corretas em português são:

Tífon

Tifeu

Tifão (esta apenas encontra registo no Dicionário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras)

 

1 Fontes: Wikipedia em inglês, e o dicionário Gaffiot latim-francês.

Pergunta:

Reparei que, nalgumas formas verbais que acabam por vogal + em, há a interposição de um /j/ entre vogal e em:

saem → /'sa.ɐ̃j̃/ → /'saj.ɐ̃j̃/

põem → /'põ.ɐ̃j̃/ → /'põj̃.ɐ̃j̃/

Sobre essa regra, tenho duas dúvidas:

1) É por causa do mesmo fenómeno que as formas verbais têm e vêm se pronunciam /'tɐ̃j̃.ɐ̃j̃/ e /'vɐ̃j̃.ɐ̃j̃/, em vez que /'tɛ.ɐ̃j̃/ e /'vɛ.ɐ̃j̃/?

2) Essa regra pode aplicar-se também a outros encontros vocálicos? Por exemplo, alguns falantes pronunciam a frase «é ela» como /ɛj 'ɛ.lɐ/, outros como /ɛ 'ɛ.lɐ/. Ambas as pronúncias estão corretas, ou uma é mais adequada do que a outra?

Obrigado

Resposta:

Em português, a vogal i ocorre frequentemente como glide – representada pelo símbolo fonético [j] –, para desfazer hiatos, isto é, encontros vocálicos que não se resolvem como ditongos.

O caso de saem é o mesmo de caem (cair) e traem (trair) e verbos relacionados: atrair, distrair, ou seja, a terminação -aem da 3.ª pessoa do plural do presente do indicativo soa como [aiɐ̃j̃]. Esta pronúncia faz parte da norma-padrão, e sobre ela não existe juízo normativo desfavorável. É, portanto, pronúncia correta. É possível que o i anti-hiático se relacione com o seu correspondente nasal em têm, vêm e põem, mas não foi aqui possível identificar estudos que proponham ou confirmem essa relação.

Dialetalmente, este [j̃] nasal anti-hiático chega a evoluir como nasal palatal, fazendo as referidas forma verbais soarem como "tenhem", "venhem" e "ponhem"1.

Note-se também que, dialetalmente – não na pronúncia padrão –, o i anti-hiático é frequente não só em sequências como «é ela»/«é ele», mas também e muito especialmente no encontro de dois aa em palavras diferentes:

«a água» > "a iágua"; «a Ana» > "a iAna".

São pronúncias sociolinguisticamente marcadas, que não fazem parte do padrão europeu, mas que se registam no centro e no norte de Portugal.

 

1 Em transcrição fonética, respetivamente: [teɲẽij̃] ou [tɐɲɐ̃j̃"]; [veɲẽij̃] ou [vɐɲɐ̃j̃]; e ['põɲɐ̃j̃].

Pergunta:

Tenho uma régua antiga em latão onde está escrito a palavra uma com h, ou seja, "huma".

Será que, por gentileza, me saberão informar em que data deixou de se escrever dessa forma?

Muito obrigado.

Resposta:

Não há uma data precisa, mas é provável que só se tenha deixado de escrever uma com h nas primeiras décadas do século XIX.

Um e uma escreviam-se geralmente com h até, pelo menos, à primeira metade do século XVIII, como se pode confirmar pelo tratado de ortografia que João Madureira Feijó (1688-1741) publicou em 1734.

Note-se que é possível que este h se tenha mantido até aos começos do século XIX, porque há tratados de ortografia da época que condenam o uso dessa letra em um e uma, ou seja, infere-se que havia quem cometesse esse erro ao escrever tais palavras com h inicial. Por exemplo, no n.º 288 de 1 de dezembro de 1810 da Gazeta de Lisboa, escrevia-se (sublinhado nosso):

«Já vendêraõ em haste publica os materiaes do Convento da Incarnaçaõ, que derribaraõ; e o seu chaõ está destinado para formar huma praça.»

Pergunta:

Há pouco escrevi a a seguinte frase:

«Há algo que possa fazer para me entreter no entretanto?»

Fiquei de imediato a questionar-me sobre se entreter e entretanto teriam a mesma origem etimológica.

Será que me podem esclarecer?

Obrigado.

Resposta:

São palavras compostas que têm em comum a preposição entre.

Contudo, os segundos elementos têm etimologias diferentes:

ter, do latim tenere, «segurar, agarrar»;

tanto, do latim tantum, «tanto».

Pergunta:

Na frase «Os adolescentes leem sentimentos, gestos e silêncios», posso considerar a presença de sinestesia?

Agradeço a vossa ajuda.

Resposta:

É um caso dúbio, até porque a frase parece provir de um texto reflexivo ou ensaístico, e a sinestesia é mais típica ou do texto póético ou da descrição em textos narrativos. Mesmo assim, pode considerar-se que o uso de ler que a frase ilustra é, estilisticamente, uma sinestesia.

Aceitando que ler sugere denotar o exercício da faculdade da visão, dir-se-á que ler sentimentos, gestos e silêncios é conjugar a capacidade de ver com outro tipo de perceção, a das emoções, marcada pela palavra sentimentos, e a sonora, evocada negativamente por silêncios. Sendo assim, poderia pensar-se que «leem sentimentos, gestos e silêncios» configura uma sinestesia, entendendo esta como uma expressão em que se associam sensações diferentes.

Não obstante, também se poderá afirmar que a frase em questão atesta um uso especial de ler, através de um processo de extensão semântica que o faz sinónimo de interpretar. Nesta perspetiva, é possível aproximar este uso do verbo ler do termo literacia, a qual, no entanto, não tem a mesma etimologia1. Além disso, ler, mais do que verbo de perceção (neste caso, a visão), é um verbo que denota um processo intelectual, razão por que se afigura mais natural considerar «leem sentimentos, gestos e silêncios» como um caso de uso figurado de ler como equivalente de interpretar.

Convém, portanto, desaconselhar a abordagem de casos como o da questão num exercício escolar para apreensão ou reconhecimento do conceito de sinestesia, visto ser pouco ou nada esclarecedor quanto à identificação desta figura de retórica.

 

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