Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Levar no Brasil pode ter a aceção de «arrastar», no sentido eleitoral, por exemplo, «Washington Luís venceu as eleições, mas não levou».

Há este sentido em Portugal? É legítimo esse uso?

Resposta:

É uso que se atesta raramente ou nunca em Portugal, o que não significa que não seja legítimo. Aliás, nem mesmo mencionar arrastar como sinónimo de levar em alusão a eleições se afigura comum em Portugal.

Levar, na aceção de «ser declarado oficialmente vencedor/vencedora num ato eleitorial», parece ter difusão no português do Brasil, como a seguir se ilustra:

(1) «[...] Hillary Clinton obteve mais votos que Trump [...] [N]o que se refere ao voto popular, Clintou ganhou. Ganhou, mas não levou.» ("Como funcionam as eleições presidenciais nos EUA?", UOL, 03/11/2020)

(2) «Em entrevista à Rádio Guaíba, de Porto Alegre, disse que Aécio Neves teria derrotado Dilma Rousseff em 2014, mas não levou porque a eleição foi fraudada.» ("Nem Aécio acredita que ganhou de Dilma em 2014", Exame, 08/07/2021)

A consulta de páginas da Internet permite até pensar que no discurso jornalístico se fixou a expressão «ganhou mas não levou». Levando a pesquisa mais longe, o Corpus do Português, de Mark Davies, permite considerar que «ganhou mas não levou» é, na prática, uma expressão idiomática do português do Brasil, como se depreende de ocorrências de textos identificados como provenientes do Brasil, em que já se cita a sequência como uma expressão que tem um sentido particular:

(3) «É bem na linha do "ganhou mas não levou", perdeu-se o volante da Mega.»

Contudo, ainda na mesma fonte, deteta-se um exemplo de um texto atribuído a Portugal:

(4) «É o famoso "ganhou mas não levou" de todo ano...

Pergunta:

Gostaria de saber a origem dos sufixos -ivo e -ório, uma vez que apresentam o mesmo significado como por exemplo em operativo e giratório, havendo até algumas palavras sinónimas tendo derivação de ambos os sufixos como inflamativo e inflamatório.

Obrigado.

Resposta:

É preciso começar por dizer que os adjetivos derivados terminados em -ivo não têm de ser analisados todos da mesma maneira.

Na verdade, há adjetivos terminados em -ivo que têm por base nomes, como é o caso de abrasivo, cujo radical, abras-, é o do nome abrasão1. Mas, em relação aos adjetivos que fazem concorrência aos que terminam em -tório – caso de operativo e operatório –, há que considerar os que exibem a terminação -tivo, caso que se analisa de outra maneira: são adjetivos que vão buscar a sua base de derivação ao tema ao particípio passado, numa variante erudita. Daí que operativo se analise como derivado de operat-, radical de uma variante erudita (operatus) de operado, do verbo operar.

Os adjetivos sufixados por -tório derivam do mesmo tema participial e podem estar em concorrência com adjetivos terminados em -tivo. É o caso de operatório, que concorre com operativo, ainda que que não sejam sinónimos exatos e as suas colocações lexicais não sejam as mesmas. Refira-se, a título de ilustraçáo, a expressão «sistema operativo», que se usa na área da informática e «bloco operatório», que ocorre na linguagem dos cuidados médicos.

Quanto à etimologia dos sufixos em questão:

-ivo < -īvus, a, um

Segundo a Infopédia, «sufixo nominal, de origem latina, que ocorre em adjetivos derivados de verbos e traduz a ideia de capacidade, efetividade (combativo, olfativo)». O sufixo -tivo, que em c...

Pergunta:

É tema gasto, mas sem resposta satisfatória.

Vários dicionários só aceitam impudico, mas o Portal da Língua Portuguesa aceita impúdico.

Afinal, qual é a grafia «correta»?

Resposta:

Continua a não haver resposta satisfatória. À luz da norma mais conservadora não se aceita, muito embora haja registos dicionarísticos das formas acentuadas.

A insatisfação com as formas púdico e impúdico terá mais de 100 anos, de acordo com o apontamento que escreveu, também há bastante tempo (mais de 60 anos), Vasco Botelho de Amaral, no seu Dicionário de Dificuldade e Subtilezas do Idioma Português. Note-se que nestes casos, a terminação -ico não vem do sufixo pós-tónico greco-latino -ĭcus, cujo i é breve, mas sim de uma terminação latina que recebia acento tónico no i (longo) de pudīcus.

Botelho de Amaral atribuía a interferência espanhola o uso de púdico, origem que não se pode aqui confirmar, mas que coincide com a fixação da forma púdico em espanhol (cf. dicionário RAE). No entanto, cabe perguntar se a forma esdrúxula não resultará de uma interpretação errónea (hipercorreta) do francês pudique no período em que a leitura nessa língua era frequente nos meios burgueses e aristocráticos de Portugal (e, porque não?, de Espanha). Com efeito, projetando o uso de pudique no português e havendo desconhecimento da forma etimológica latina, é possível que muitos falantes tenham julgado que a terminação francesa deveria ser transposta como o sufixo átono -ico e, por hipercorreção, a palavra deveria assumir a forma púdico. Não é aqui possível aprofundar a questão.

Em todo o caso, refira-se que, em 1966, Rebelo Gonça...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a métrica dos versos seguintes desta cantiga, uma vez que há dúvidas.

«Non chegou, madr’, o meu amigo
e oj’ést’o prazo saido»

Resposta:

Trata-se de uma cantiga de amigo, das muitas compostas pelo rei D. Dinis (1261-1325).

Nos dísticos da cantiga, cada verso tem oito sílabas métricas1:

Non/ che/gou,/ ma/dr’, o/ meu/ a/mi/go – 8 sílabas
e/ o/j’és/t’o/ pra/zo/ sa/i/do2 – 8 sílabas

O poema completo pode encontrar-se na plataforma Cantigas Medievais Galego-Portuguesas (Projeto Littera). Também se encontra aqui, acompanhado de uma análise mais especializada (em galego), na plataforma Universo Cantigas, donde se pode recolher a seguinte paráfrase dos dois versos (adaptada ao português): «Não chegou, mãe, o meu amigo, e hoje acaba o prazo.»

 

1 Recorde-se que as sílabas métricas se contam até à última sílaba tónica da última palavra do verso. No verso «Non chegou, madr’, o meu amigo», a contagem das sílabas métricas vai até à silaba -mi- de amigo, mas já não inclui a sílaba final desta palavra, porque -go é sílaba átona final.

2 A forma ést é o mesmo que é, 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ser.

Pergunta:

Esta dúvida surgiu-me quando estava a falar com uma colega sobre um texto que ela escreveu e que li, com o propósito de o rever.

Uma das poucas questões surgidas versou a pontuação quando se usavam aspas. Esta é a frase:

«"Deve ser por isso que .... são iguais a ele.”, pensou.»

A minha colega argumentou que, quando uma frase entre aspas fica completa, a pontuação deve ficar dentro das aspas. Por isso, colocou um ponto final na frase que transcreve um pensamento, e uma vírgula a seguir.

Embora concorde com a afirmação de que a pontuação deve ficar dentro das aspas, tratando-se de uma frase completa, penso que este é um caso diferente, pois tem ainda a intervenção do narrador. Em minha opinião, o ponto final só deve ficar a seguir à intervenção do narrador, como acontece nos diálogos.

Estarei enganada? Será diferente quando se trata de transcrever pensamentos?

Ficar-vos-ei muito grata pela vossa ajuda.

Resposta:

A questão levantada refere-se à pontuação a empregar com diálogos ou na representação de pensamentos. Neste caso, o ponto só se coloca dentro das aspas, se a fala ou o pensamento terminarem o período ou o parágrafo:

(1) «Deve ser por isso que.... são iguais a ele.»

Contudo, se a fala ou pensamento forem seguidos de uma frase que pertence já à narração, geralmente incluindo um verbo declarativo («disse ele/ela») ou um verbo de atividade mental («pensou ela/ele»), então, não se coloca ponto dentro das aspas:

(2) «Deve ser por isso que.... são iguais a ele», pensou. [ou «"Deve ser por isso que.... são iguais a ele" – pensou.»]

Fonte: Marco Neves, Pontuação em Português, Guerra e Paz, 2022, pp. 38-44.