Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Deve dizer-se, de um produto numa embalagem, se é «pronto a usar», ou «pronto para usar»?

Obrigada.

Resposta:

Com o adjetivo pronto, pode usar-se quer a preposição a quer a preposição para (cf. Francisco Fernandes, Regimes de Substantivos e Adjetivos, São Paulo, Globo, 1995). Está, portanto, correto dizer/escrever: «pronto a usar» e «pronto para usar».

Pergunta:

Quando se diz «A protagonista é uma cria de esquilo-vermelho (Sciurus vulgaris), que estava mais interessada em roer uma pinha do que em mim, que estava a mais ou menos 5 metros dela», a frase está-se a referir a um animal do sexo feminino, ou masculino?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

O animal em referência parece ser do género feminino, mas não é impossível que seja do sexo masculino. Os contextos situacional e discursivo é que ajudarão a desambiguar a frase.

Cria é um nome sobrecomum, isto é, usa-se como substantivo a que se atribui apenas um género gramatical (neste caso, o feminino), embora podendo referir-se a indivíduos tanto do sexo masculino como do feminino. Se necessário for, como a palavra se aplica sobretudo a animais, o substantivo cria comporta-se como um epiceno, associando-se a macho e fêmea para explicitar o sexo do indivíduo designado: cria macho, cria fêmea (outras opções morfológicas e ortográfica, aqui). Protagonista é um nome comum de dois, ou seja, é um nome que apresenta a mesma forma para os dois sexos, ficando o género marcado no artigo, determinante ou adjetivo que se lhe associem: «o protagonista», «a portagonista».

Se cria se referir a um indivíduo do sexo masculino, é de esperar que protagonista assuma o género masculino: «O protagonista é uma cria de esquilo-vermelho, que estava mais interessada...» (também aceitável «interessado» se se pretender ter «o protagonista» por antecedente). No entanto, não se deve excluir o caso em que protagonista adota o género feminino por simples concordância gramatical, porque cria é sempre do género feminino. Se for esta a situação, não é possível saber ao certo qual o sexo do animal em referência, a não ser que se recorra ao contexto situacional ou discursivo.

Pergunta:

O que é correcto: «sofrer de uma doença», ou «sofrer uma doença»? Por exemplo: «sofrer de osteoporose», ou «sofrer osteoporose»?

Muito obrigada.

Resposta:

O verbo sofrer é usado como:

a) intransitivo: «ela sofre muito»;

b) transitivo direto: «ela sofreu ferimentos na perna/injúrias» (na aceção de «levar», «receber»);

c) como intransitivo indireto, neste caso, selecionando um complemento oblíquo (ou um complemento preposicionado): «ela sofre de osteoporose» (quando se trata de uma doença prolongada ou crónica).

Em c) a preposição rege o complemento de («sofrer de asma, sofrer de ataques de pânico»).

Pergunta:

Ao ler a Bíblia ou publicações bíblicas, encontramos expressões como estas:

«A cabeça da mulher é o homem...»

«O cabeça da família de suprir todas as necessidades...»

Agradeço esclarecimento sobre essa questão, informando-me como ou quando se deve empregar uma ou outra expressão.

Obrigado.

Resposta:

Ao substantivo cabeça atribui-se geralmente o género feminino, como no primeiro exemplo (em que tem valor metafórico: o homem é como se fosse a cabeça da mulher, porque, numa perspetiva que não aceita a igualdade de tratamento entre sexos, se considera que ele a orienta). Contudo, no segundo exemplo, a palavra é usada com o significado de «líder», «figura proeminente em qualquer associação ou grupo de seres humanos ou de animais» e é usada no masculino: «o cabeça do casal», «o cabeça do grupo» (cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Na revisão de um trabalho, deparei-me com uma estrutura que me causa muita estranheza: «Quem raio é aquele?»

Percebo o objetivo do tradutor, uma vez que o original é: «Who the hell is that guy?» O pronome quem foi bem empregado, porque se usa em relação a uma pessoa, mas penso que não pode ser usado com o substantivo. Talvez o tradutor tenha tentado adaptar a frase à expressão «Que raio?», mas, para ser correto, teria de ser algo do género: «Que raio!» Quem é aquele?' ou «Diabos, quem é aquele?».

A opção do tradutor está correta?

Resposta:

Nesse tipo de construção interrogativa, em lugar de raio, é preferível diabo: «Quem diabo é aquele?» Em alternativa, também são adequadas as soluções propostas pela consulente.

Não encontrei nos dicionários nem nas gramáticas de que dispus nenhum comentário sobre o uso de raio no contexto em questão, mas o exemplo enviado parece apresentar um uso muito marginal deste substantivo como interjeição, aparentemente em lugar de diabo, também com valor interjetivo:

«Quem diabo é aquele?» > «Quem raio é aquele?»

Não havendo doutrina sobre este caso entre os gramáticos normativos, vale a pena examinar o uso destas interjeições e procurar definir preferências de uso. Fiz, por isso, uma pesquisa no Corpus do Português, que reúne textos literários e não literários para pesquisa de palavras. Verifiquei que a expressão «que raio» ocorre frequentemente depois de que interrogativo («que raio de...», «por que raio...», «que raio fizeste...»), mas é muito rara a sua associação a quem: com efeito, «quem raio...» apenas figura uma vez, num texto da escritora portuguesa Hélia Correia. Tudo isto sugere que se evita tal associação.

Poderia pensar-se que o mesmo aconteceria com diabo, mas a verdade é que, com valor interjetivo, este vocábulo ocorre associado não só a que interrogativo em contextos semelhantes aos de «que raio» (751 vezes no referido corpus), mas também a quem de modo mais significativo do que «quem raio» (24 vezes, idem). Esperar-se-ia que raio pudesse substituir diabo