Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Certa vez ouvi uma história a respeito de um rei português que certo dia, por altura de uma festa, mandou fazer uns bolos num convento. Como os bolos eram muitos e não havia farinha que chegasse, juntaram palha moída. O rei, sem saber, comeu os bolos e achou-os bons. Depois, mais tarde, veio a saber como tinham sido feitos e que o pasteleiro andava a dizer que «todo o burro come a palha, a questão é saber dar-lha».

Queria saber, se possível, a história completa e o nome do rei.

Desde já fico agradecido.

Resposta:

Não encontramos fontes que permitam identificar tal rei ou contenham o relato da história em questão. Observe-se, no entanto, que o provérbio ou o ditado em questão é bastante conhecido, estando, por exemplo, registado por Maria Alice Moreira dos Santos, no seu  Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas (Porto Editora, 1999, 332) com formulação praticamente igual: «Todo o burro come palha, o que é preciso é saber dar-lha.» Manuel Madeira Grilo (Dicionário de Provérbios, Casa Véritas, 2009) também o recolhe, atribuindo-lhe a seguinte interpretação: «Toda a gente se deixa cair no logro, o que é necessário é escolher a melhor forma de ser eficiente.»

Pergunta:

Quando se escreve Sol, e quando se escreve sol?

Resposta:

Sol, com maiúscula, designa a estrela que é o centro do sistema planetário de que faz parte a Terra, ou seja, do sistema solar.

sol, com inicial minúscula, é referente a qualquer estrela ou à luz e ao calor emitidos pelo Sol ou por outra estrela.

Note-se que o novo acordo ortográfico não altera os critérios aqui expostos.

Pergunta:

Tenho ouvido falar em "juriscidade" e/ou "juridicidade". São palavras distintas, ou alguma delas é mais correta do que outra?

Obrigado.

Resposta:

Encontramos dicionarizadas apenas as formas juridicidade e juricidade (Dicionário Houaisss), sendo esta última variante em que ocorreu a síncope (queda de sons no meio de palavra) da sílaba di de juridicidade. A forma "juriscidade" está, portanto, incorreta, tendo talvez surgido por analogia com o elemento juris de palavras como jurisprudência.

Pergunta:

Por que escrevem o nome dessa cidade fluminense com y? Segundo o novo acordo, as letras k, w e y continuam com restrição de uso. Creio que o certo é escrever Parati e não "Paraty". O próprio apêndice onomástico do Dicionário Caldas Aulete (1958) traz Parati. Parece-me que hoje cada um escreve como quer, como se não valessem nada as normas da língua. Escrever "Paraty" é, de acordo com meu entendimento, um retrocesso linguístico, da mesma forma que a bizarra escrita Bahia. Qual é a opinião do Ciberdúvidas?

Resposta:

A forma deveria ser Parati, mas há de facto a tradição de escrever Paraty, de que os paratienses parecem muito ciosos. Note-se que na norma ortográfica que esteve em vigor no Brasil até 2009, ou seja, no Formulário Ortográfico de 1943 (FO43), se estipulava que os nomes locativos, entre os quais se incluem os topónimos, se sujeitavam às mesmas regras que os nomes comuns (XI, 39): no entanto, ao mesmo tempo, abria-se a possibilidade de certos topónimos verem aceites formas gráficas consagradas pela tradição (XI, 42):

«Os topônimos de tradição histórica secular não sofrem alteração alguma na sua grafia, quando já esteja consagrada pelo consenso diuturno dos brasileiros. Sirva de exemplo o topônimo Bahia, que conservará esta forma quando se aplicar em referência ao estado e à cidade que têm esse nome.»

Esta disposição não se aplicava a derivados, pelo que os respetivos gentílicos seguiam as regras gerais: baiano, paratiense (tal como se escreve atualmente).

Parati/Paraty tem sido um caso enquadrável nesta exceção, em resultado de certos acontecimentos ocorridos nos anos 40, segundo relato disponível no sítio Paraty.tur.br, que defende a posição segundo a qual a grafia Parati é incorreta, porque, no contexto da já citada secção XI, 42 do FO43, tornava-se legítimo continuar a escever Paraty, forma que remontava à transcrição de parati, em tupi o mesmo que «água do peixe (chamado) parati», como Paraty por parte dos evangelizadores jesuítas do século XVI.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida que surgiu relativamente à função sintática modificador.

Na frase «Ela chegou à escola», «à escola» é complemento oblíquo. E na frase «Ela chegou esta manhã», «esta manhã» é também complemento oblíquo, ou é modificador do grupo verbal? «Esta manhã» também é selecionado pelo verbo? Ou «Ela chegou» é uma frase perfeitamente gramatical, não necessitando de mais nenhum elemento. Se assim é, como poderemos explicar aos alunos a diferença entre estes dois casos? Será porque o verbo chegar reenvia para espaço, e, por isso, necessita de um complemento?

Agradeço, desde já, a vossa atenção e disponibilidade.

Resposta:

O verbo chegar, que denota movimento direcional (tal como entrar, sair, partir), aceita a omissão do seu complemento oblíquo, de valor locativo, numa situação de enunciação que permita depreender a identificação desse locativo (cf. Gramática do Português, da Fundação C. Gulbenkian, vol. II, p. 1163 e 1208). Assim acontece com a frase «ela chegou à escola», que no contexto situacional adequado (numa escola) pode assumir a forma «ela chegou». Quanto a «esta manhã», trata-se de um grupo nominal que é modificador (de valor temporal) do grupo verbal (na terminologia tradicional, dizia-se que era um complemento circunstancial; na terminologia brasileira e entre vários gramáticos portugueses, diz-se que é um adjunto adverbial).

Deste modo, é adequada a proposta de didatização da consulente, porque chegar efetivamente alude a uma localização espacial marcada por um complemento oblíquo, que, não obstante, pode estar omisso devido às propriedades semânticas e pragmáticas do verbo que o seleciona.