Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A expressão correcta é «russo de mau pêlo», ou «ruço de mau pêlo»?

Resposta:

No dito tradicional português deve ocorrer a palavra ruço:

«Ruço de mau pelo, quer casar, não tem cabelo.»

Neste contexto, ruço tem o significado genérico de «pessoa com cabelo loiro ou castanho-claro» (Dicionário Houaiss).

José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, põe por hipótese derivar esta palavra do latim rōscĭdu-, "orvalhado" (é a proposta de etimologia que o Dicionário Houaiss reproduz). Esta etimologia permite afirmar que a palavra portuguesa deve escrever-se com -ç-, não se tratando, portanto, de outra mais conhecida – russo –, cuja etimologia é totalmente diferente, do francês russe ou do latim russi, do russo rús, este talvez de uma língua germânica escandinava ou do finlandês  (Dicionário Houaiss)1. No entanto, há um argumento de maior peso para se considerar que é ruço, e não russo, a forma certa na expressão tradicional portuguesa: no galego, na ortografia reconhecida oficialmente, escreve-se ruzo, que significa «de cor parda clara, cana ou tirando a cana» (em galego, cana é o mesmo que grisalho, «que tem cabelos brancos»); sucede que, por razões históricas, o -z- galego corresponde geralmente ao -ç- do português (caza é o mesmo que caça).

Estão, portanto, errados os dicionários de provérbios que registam o dito em referência com a forma russo, que deveria ser substituída pela sua homófona ruço.

Pergunta:

Os termos "ginecídio" ou "feminicídio", referindo-se à matança sistemática e compulsiva de mulheres por razões geralmente de ordem sociocultural, existem na língua portuguesa? Não sendo o caso, estariam bem formados e, consequentemente, passíveis de serem utilizados?

Resposta:

Numa consulta Google, encontram-se efetivamente em uso as palavras "ginecídio" e "feminicídio", ainda não atestadas nos dicionários*. A primeira é discutível, pois deveria ter antes a forma ginocídio, um híbrido greco-latino, que associa a «forma não canónica» gin(o)-1, do grego gunê, gunaikós, «mulher», ao elemento de composição -cídio, proveniente do latim -cidĭum, «ação de quem mata ou o seu resultado» (cf. gin(o)- e -cídio no Dicionário Houaiss). Observe-se que esta palavra evoca outra, genocídio, também um híbrido, por juntar o radical de origem grega geno- (de génos, eos-ous, «raça, tronco, família», cf. idem) ao referido elemento -cídio, de génese latina.

A forma mencionada em segundo lugar é etimologicamente homogénea quanto aos elementos que participam na sua formação; do ponto de vista tradicional prescritivo, considera-se mais correta2, visto incluir apenas radicais de origem latina: o radical femin- (do lat. femĭna, ae, «fêmea») e o já referido elemento -cídio (idem). A palavra feminicídio segue, portanto o modelo de muitos compostos morfológicos, formados exclusivamente por elementos de orig...

Pergunta:

Na frase «não existe amor em SP», o verbo é impessoal? Porque, se eu substituir o verbo existir pelo verbo haver, obtém-se a seguinte frase: «não há amor em SP», que é impessoal, pois o verbo haver está no sentido de existir. Então, eu posso deduzir que por isso a primeira frase do trecho da música do Criolo também é impessoal?

Resposta:

O verbo existir não é impessoal.

Substituindo amor por sentimentos, verifica-se que existir passa ao plural:

1) «Não existe amor em SP.»

2) «Não existem sentimentos em SP.»

O mesmo não acontece com haver:

3) «Não há amor em SP.»

4) «Não há sentimentos em SP.»

Por outras palavras, existir não é impessoal, visto concordar com expressões nominais como «amor» ou «sentimentos», que desempenham a função de sujeito (posposto) nas frases 1) e 2). Já haver é de facto um verbo impessoal: nas frases 3) e 4), não concorda com as expressões nominais «amor» e «sentimentos», antes as seleciona como objetos (ou complementos) diretos.

Pergunta:

Qual é o radical de dramalhão?

Será drama?

Resposta:

É dram-.

Poderia pensar-se que o radical do aumentativo dramalhão é drama, contudo, neste substantivo, a terminação -a é uma vogal temática que tem origem no grego antigo, língua em que existem substantivos masculinos com tema em -a (ex.: diploma, atos, «objeto duplo, tablete de papel dobrado em dois», pelo latim diploma, atis). Considerando que -alhão é um sufixo, a base de derivação é o radical dram-.

Dito isto, observe-se o sufixo -alhão é, na verdade, a sequência de dois: -alho (cf. cabeça - cabeçalho) e -ão. Mesmo assim, é notório que -alhão se comporta como um único sufixo – por exemplo, quando se analisam casos como o de espertalhão, cujo radical espert- (de esperto) é sufixado diretamente por -alhão, não se atestando a forma intermédia *"espertalho".

Pergunta:

Queria saber se os nomes seara, peral, pomar ou vinha são nomes coletivos. Também as palavras dezena, século, trimestre me suscitam a mesma dúvida: são nomes coletivos?

Obrigada pela ajuda.

Resposta:

Os substantivos seara, peral, pomar e vinha são nomes coletivos e, como tal, designam conjuntos de entidades do mesmo tipo ou espécie:

seara: «conjunto de plantas em espiga que pertencem a uma ou mais espécies de cereal»;

peral: «conjunto de pereiras»;

pomar: «conjunto de árvores de fruto»;

vinha: «conjunto de videiras».

Sobre os outros substantivos:

dezena: trata-se de um numeral coletivo (cf. Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 934/935; «coletivo numeral» no Dicionário Houaiss, s. v. coletivo);

século e trimestre: não são coletivos; são interpretados não como conjuntos, mas como intervalos de tempo, períodos.