Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Obrigada pelo magnífico trabalho.

A minha dúvida: tenho ouvido e lido com frequência (na boca e na "caneta" de governantes, de pessoas que, suponho, terão educação superior e que ocupam cargos importantes nos meios de comunicação, quer na imprensa escrita quer na falada) a frase «tirar consequências». As consequências tiram-se, ou temos de acarretar/aprender com e pagar por elas?

Obrigada.

Resposta:

De facto, as situações, os acontecimentos e as decisões acarretam consequências.

No entanto, entre as aceções de consequência encontra-se uma relacionada com o âmbito da lógica:

«conclusão que deriva de um raciocínio lógico; inferência, ilação, dedução. Ex.: a c. de uma proposição lógica» (Dicionário Houaiss).

No Dicionário de Português Básico (Porto, Edições Asa, 1991), de Mário Vilela, também se atesta este uso:

«Agora, tirem as consequências do facto.»

Sendo assim, tal como se diz «tirar/retirar conclusões», também se poderá usar «tirar/retirar consequências».

Pergunta:

Quando se fala de arte musical, se costuma falar de eufonia e consonância para sons agradáveis aos ouvidos e harmonia de sons.

Mas, e quando se fala de arte pinturesca, quando se tem formas e desenhos simétricos e coerentes em pinturas, como se chama em uma só palavra?

Desde já muito obrigado.

Resposta:

No contexto das artes plásticas, também se usa harmonia, como comprova o Dicionário Houaiss quando inclui entre as aceções atribuíveis à palavra estas que se seguem: «10 Rubrica: artes plásticas. proporção agradável; beleza de linha, forma e volume. Ex.: a h[armonia] dos templos gregos. 11  Rubrica: pintura. o equilíbrio de cores, tons, nuanças.»

Pergunta:

Como classificar sintaticamente a frase «Portugal está mergulhado em profunda crise»?

Este problema foi-me colocado e, depois de discutido em grupo, chegámos a esta conclusão que não sei se estará correta.

Sujeito – «Portugal»;

Predicado – «está mergulhado em profunda crise»;

Predicativo do sujeito – «mergulhado em profunda crise»;

Complemento do adjetivo – «em profunda crise»;

Modificador restritivo do adjetivo – «profunda».

Gostávamos de ter a vossa opinião. Obrigada.

Resposta:

É adequada a análise exposta na pergunta, se considerarmos que mergulhado é um adjetivo participial. Recordamos, no entanto, que, dada a ambiguidade deste tipo de formas, também é possível considerar que, em «está mergulhado em profunda crise», o núcleo é constituído por «está mergulhado», porque se trata de uma passiva estativa (cf. Gramática do Português, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 443/444),1 sendo «em profunda crise» um complemento oblíquo.

1 Também chamada «voz passiva de estado» por Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Edições João Sá da Costa, 1984, pág. 383 e 393). Trata-se da passiva construída por estar, usado como verbo auxiliar, e o particípio passado de um verbo principal («Estamos impressionados com o facto.», idem, p. 393).

Pergunta:

Porque o fruto da oliveira é a azeitona, e não "olivona" ou o contrário?

Resposta:

Por razões históricas.

Documenta-se em português o uso de oliva, do latim oliva, «oliveira», «azeitona», que é pouco usado:

«Hoje este vocábulo tem uso reduzido em português, pràticamente só literário; no entanto, deve ter sido corrente o seu emprego como se deduz da documentação que até nós chegou. [...] Creio que este vocábulo desapareceu do uso vencido pelo arabismo azeitona. A partir, porém, do século XVI voltou a aparecer, mas apenas como termo de linguagem literária, que na acepção de "azeitona", quer na de "oliveira" [...]» (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa; manteve-se a ortografia original).

Para a difusão de azeitona terá contribuído a importância da produção de azeite durante o domínio árabe na Península Ibérica. Foi assim que o óleo de "oliva" passou a chamar-se azeite (do árabe az-zayt, «óleo»; Dicionário Houaiss), e o fruto donde este produto é extraído, azeitona (do árabe az-zaytuna, «oliveira», «azeitona», originalmente uma unidade de medida; idem).

Pergunta:

No decurso da realização de um questionário sobre a cena do Onzeneiro [no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente] surge, na parte da gramática, a seguinte frase: «Quem não cometeu pecados e quem não tem vícios pode evitar seguir no batel do Diabo.» O tipo de sujeito que vem identificado na correção é, naturalmente, sujeito composto. Após alguns exercícios, uma aluna inquiriu sobre a possibilidade de existência de um "sujeito composto indeterminado". Embora nunca tenha visto nenhum exemplo escrito, parece-me que, na frase «Pensa-se e diz-se que é possível que haja vida noutros planetas» ou em «Diz-se e faz-se!» e muitas outras, poderíamos/poderemos ter exemplos disso mesmo. No entanto, e porque quando procuro apenas encontro exemplos isolados de cada um dos tipos de sujeito, gostaria de saber o que responder-lhe, até porque a questão me pareceu bastante pertinente.

Grata pela atenção.

Resposta:

A pergunta é, na verdade, pertinente, mas na resposta deve chamar-se a atenção para o facto de a coordenação constituir uma forma de articulação entre vários tipos de constituintes. Assim:

a) se articularmos dois grupos nominais, ambos com a função de sujeito na mesma frase, falamos de sujeito complexo («Ele e ela podem evitar entrar no batel»);

b) se articularmos duas orações, como é o caso («quem não cometeu pecados» e «quem não tem vícios»), desempenhando as duas, no entanto, a função de sujeito da frase em que se encaixam, também falamos de sujeito complexo (é curioso verificar que não é possível aplicar a concordância no plural, embora se trate de um sujeito complexo: «quem... e quem pode evitar...»);

c) mas, se articularmos duas orações, sem que estas se encaixem numa frase matriz para aí desempenharem a função de sujeito (p. ex., «Eles cometeram pecados e têm vícios»), não falamos em sujeito composto, porque cada oração tem o seu próprio sujeito, mesmo que estejam subentendidos (como é o caso em «e têm vícios»).

Na frase «pensa-se e diz-se que é possível que haja vida noutros planetas», se o pronome se for interpretado como sujeito indeterminado1, o facto de ele se repetir nas duas orações coordenadas não significa que os sujeitos de cada oração estejam também coordenados e constituam, por isso, um sujeito composto. Nada disso: a coordenação associa duas orações, cada uma com o seu próprio sujeito, e não dois grupos nominais. Por essa razão, não podemos afirmar que o sujeito é composto; o que podemos é dizer que as duas orações têm os seus próprios sujeitos indeterminado.

1 Os gramáticos mais tradicionalistas rejeitariam se como marca de sujeito indete...