Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Se (aparentemente) existe um consenso entre os filólogos da certeza das formas "menistro" e "vezinho" ao ler ministro e vizinho, o que dizer "deregir" ao ler dirigir, como já se ouve na televisão?

Muita força para o Ciberdúvidas!

Resposta:

Trata-se da generalização da passagem de todos os ii átonos a e mudo. É possível que a pronúncia tenha surgido com base na 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo – dirige –, que em Portugal pode pronunciar-se "derige", com e mudo na primeira sílaba por efeito de uma regra de dissimilação numa sequência de dois ii seguidos, tal como se verifica na pronúncia-padrão (cf. Filipe, que soa "Felipe" e até "Flipe"). Com base no radical desta forma, é possível que muitos falantes apliquem novamente a regra de dissimilação no infinitivo do verbo, dirigir, talvez pressupondo que o verbo tem a forma "derigir".

Este fenómeno é claramente um desvio à pronúncia-padrão do português de Portugal.

Pergunta:

Gostaria de saber se [as palavras palavras então e ] podem ser usadas como adjetivos, ou advérbios adjetivados, como nas frases «o então presidente da República», «os então professores da escola», referindo-se, geralmente, a uma época passada, conforme tenho observado; «os já funcionários da empresa», ao se falar, por exemplo, de estagiários da empresa que recentemente passaram a ser funcionários, em relação a outros estagiários que ainda não são, mas que brevemente serão: «os ainda não funcionários da empresa». [...]

Sem mais, por ora, desde já agradeço-lhe(s) a atenção e consideração.

Resposta:

O uso de advérbios como modificadores de substantivos é correto. Encontra-se, por exemplo, descrito na Gramática do Português (ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 1574):

«[...] [A]lguns advérbios, entre os quais um pequeno número com valor semântico temporal ou locativo, podem ocorrer no interior de sintagmas nominais cujo núcleo é um nome eventivo ou denotador de um cargo, função ou profissão, funcionando como adjuntos adverbiais, ainda que de forma limitada (e marginal para alguns falantes), como se ilustra nos seguintes exemplos:

(10) a. [O então catedrático da cadeira de Introdução aos Estudos Linguísticos], o professor Lindley Cintra, foi o presidente do júri.
          b. Lá temos de aturar de novo [a sempre solícita secretária].
          c. Não tarda muito, [o ainda ministro] vai para a rua.
          d. [O jogo [aqui/no Estádio da Luz] vai ser muito difícil.
          e. [a greve [ontem/na semana passada] teve um sucesso retumbante.»

Pergunta:

Os carpinteiros usam muito a palavra "prexas" associada a "ripas" (madeira para o telhado). Essa palavra existe?

Resposta:

Trata-se de precha, variante minhota (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa) de percha, que significa, segundo o Dicionário Houaiss:

«1 vara de madeira, de três a quatro metros de comprimento, us. por ginastas; 2 (a1858)  pau em que são colocados os panos que foram apisoados para serem cardados; 3 (1597) Rubrica: termo de marinha. Diacronismo: antigo. em veleiros com beque, peça que ia da face exterior da proa até ao extremo posterior do beque; 4 Rubrica: termo de marinha.
moldura que serve de ornamento curvo da proa do navio; 5 Rubrica: termo de marinha. design. genérica para qualquer peça de madeira utilizada como viga.»

Esta palavra tem origem no francês perche, com origem no latim pertĭca, formas a que se atribui o mesmo sentido; em português, está atestada como percha no século XV e precha, no século XVI (idem).

Pergunta:

Qual o emprego correto de «a tempo» e «em tempo»?

Gostaria também de saber mais sobre o mesmos se possível. Já revirei páginas a fio na Internet e nada encontro. Poderiam me ajudar?

Grata!

Resposta:

Não se pode afirmar que haja uma diferença semântica clara entre «a tempo» e «em tempo».

O Dicionário Houaiss distingue semanticamente a duas locuções adverbiais:

a tempo: «no momento oportuno; ex.: "viajou a tempo"»; «dentro do prazo; ex.: "apresentou os documentos a tempo"».

em tempo: «expondo-se a; correndo o perigo de; ex.: "atravessou com o sinal fechado, em tempo de ser atropelado"».

Esta clara distinção não é confirmada pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa:

a tempo: «compassadamente»; «no momento apropriado, oportuno; sem atraso: tinha sempre tudo pronto a tempo»

em tempo: «oportunamente».

E Maria Helena de Moura Neves, no seu Guia de Uso do Português, regista «a tempo» como sinónimo de «em tempo»:

«A expressão adverbial a tempo equivale a em tempo, isto é, o a é uma simples preposição: Betinha ia responder mas parou A TEMPO [...]

Pode seguir-se uma expressão iniciada pela preposição de: Voltei rapidamente e agarrei-o A TEMPO de impedir que fosse laçado novamente pelos homens encolerizados [...].»

Em suma, as locuções «a tempo» e «em tempo» nem sempre são sinónimas, mas confundem-se no uso – sem que haja condenação tradicional da norma – quando significam «sem atraso».

Pergunta:

A expressão correcta é «russo de mau pêlo», ou «ruço de mau pêlo»?

Resposta:

No dito tradicional português deve ocorrer a palavra ruço:

«Ruço de mau pelo, quer casar, não tem cabelo.»

Neste contexto, ruço tem o significado genérico de «pessoa com cabelo loiro ou castanho-claro» (Dicionário Houaiss).

José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, põe por hipótese derivar esta palavra do latim rōscĭdu-, "orvalhado" (é a proposta de etimologia que o Dicionário Houaiss reproduz). Esta etimologia permite afirmar que a palavra portuguesa deve escrever-se com -ç-, não se tratando, portanto, de outra mais conhecida – russo –, cuja etimologia é totalmente diferente, do francês russe ou do latim russi, do russo rús, este talvez de uma língua germânica escandinava ou do finlandês  (Dicionário Houaiss)1. No entanto, há um argumento de maior peso para se considerar que é ruço, e não russo, a forma certa na expressão tradicional portuguesa: no galego, na ortografia reconhecida oficialmente, escreve-se ruzo, que significa «de cor parda clara, cana ou tirando a cana» (em galego, cana é o mesmo que grisalho, «que tem cabelos brancos»); sucede que, por razões históricas, o -z- galego corresponde geralmente ao -ç- do português (caza é o mesmo que caça).

Estão, portanto, errados os dicionários de provérbios que registam o dito em referência com a forma russo, que deveria ser substituída pela sua homófona ruço.