Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem uma dúvida que surgiu relativamente à sintaxe do verbo aparecer. Na frase «Apareceu o anjo a José no Egito», a expressão «no Egito» desempenha a função sintática de complemento oblíquo, ou de modificador? Comparando com a sintaxe dos verbos que denotam movimento direcional tais como chegar ou entrar, poderá também este permitir a omissão do seu complemento oblíquo, ou devemos mesmo considerar que a noção de espaço, neste caso, prefigura um modificador?

Obrigada.

Resposta:

O constituinte «no Egito» é complemento oblíquo de «apareceu», não é modificador. A possibilidade de o retirar da frase («apareceu o anjo a José»), sem causar uma impressão de incompletude, não é indicativa de que se trata de um modificador. Expliquemos porquê.

O verbo aparecer, a par de outros verbos como chegar, entrar ou sair, aceita a omissão do seu complemento oblíquo, devido às suas propriedades semânticas e sintáticas. Na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 355, 1163 e 1208), aparecer é incluído entre os  verbos de «apresentação» e «entrada/saída de cena», junto com desaparecer, chegar, entrar, sair, fazendo todos parte de uma classe de verbos conhecida como «verbos inacusativos». Sobre o subconjunto formado por chegar, entrar, sair (verbos de movimento), a referida gramática diz claramente que é possível omitir o respetivo complemento oblíquo de valor locativo (trata-se de um argumento opcional), desde que o contexto situacional permita identificá-lo; p. ex.: «chegou a Rita» = «a Rita chegou aqui (o lugar onde eu, o enunciador, me encontro)».

Também o verbo aparecer seleciona um argumento com a função de complemento oblíquo com o valor de locativo, como é o caso de «no Egito» em «apareceu um anjo no Egito». Este verbo, sobretudo com sujeito posposto («apareceu um anjo»), tem a particularidade de poder ser usado em frases que descrevem globalmente uma situação (juízos téticos), sem se centrarem numa entidade em especial. Ora o contexto situaci...

Pergunta:

Quais são as classe e subclasse da palavra dúzia, na expressão «Há uma dúzia de anos...»?

Obrigada.

Resposta:

Há quem classifique a palavra dúzia como mero substantivo comum, mas o Dicionário Houaiss (s. v. coletivo) e a Gramática do Português (Fundação C. Gulbenkian, 2013, pág. 934) incluem-na numa classe designada como numeral coletivo. A referida gramática também usa os termos numeral especial e nome quantificacional (ibidem).

Pergunta:

Eu gostaria de saber o significado de jinns, que se encontra no conto A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, de Mário de Carvalho.

Obrigada.

Resposta:

Num estudo sobre o conto em apreço – "Subsídios para uma leitura orientada do conto A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, de Mário Vieira de Carvalho", Máthesis, 12, 2003, 313-325 – lê-se a seguinte nota (p. 322, nota 16):

«Jinns, na mitologia maometana, são espíritos, génios, de categoria inferior aos anjos, com poder sobrenatural sobre os homens e capazes de assumir forma humana ou animal.»

Neste contexto, a palavra maometano deve ser entendida como o mesmo que árabe, embora na verdade seja sinónimo de islâmico ou islamita.

O Dicionário Houaiss também regista esta palavra sob a forma djim, definindo-a assim:

«[C]ada uma das entidades corporais maléficas ou benfazejas, superiores aos homens e inferiores aos anjos, imperceptíveis aos sentidos, e cuja importância na literatura popular e no folclore árabes é bastante grande.»

Assinale-se que a grafia djim (substantivo masculino singular), além de registada no Dicionário Houaiss (1.ª edição, 2001), figura igualmente no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora, disponível na Infopédia, e no Vocabulário O...

Pergunta:

No Dicionário Terminológico, no que respeita a modalidade, encontra-se a seguinte definição/explicação:

«Categoria gramatical que exprime a atitude do locutor face a um enunciado ou aos participantes do discurso. A modalidade permite expressar apreciações sobre o conteúdo de um enunciado (i) ou representar valores de probabilidade ou certeza (modalidade epistémica) (ii), ou de permissão ou obrigação (valor deôntico) (iii). A modalidade pode ser expressa de muitas formas diferentes: através da entoação, da variação no modo verbal, através de advérbios, de verbos modais (auxiliares como “dever”, poder”… ou principais com valor modal como “crer”, “pensar”, “obrigar”,…), etc.»

Por que razão já não aparece enunciado, explicitamente, o «valor apreciativo», conforme os restantes valores?

Aparece a indicação «expressar valores», aparecem exemplos, mas não a classificação. Será um lapso? Ou haverá outra razão que me escapa?

Obrigada.

Resposta:

Não estando o Ciberdúvidas de forma nenhuma envolvido na elaboração do Dicionário Terminológico (DT), destinado a apoiar o ensino da gramática nos níveis básico e secundário em Portugal, não sei explicar a razão por que não se deixou explícito o uso do termo «modalidade apreciativa». Mas, tal como está formulada a definição de modalidade no DT (domínio B 6.4), é fácil depreender que «valor modal apreciativo» ou «modalidade apreciativa» são também expressões terminologicamente adequadas, à semelhança de «modalidade epistémica» e «valor deôntico», expressões que ocorrem de facto na referida definição. É o que fazem as seguintes gramáticas, que adotam o DT e empregam esse termo:

– M. Olga Azeredo et al. 2010. Gramática Prática do Português, Lisboa Editora, pág. 253;

– Cristina Serôdio et al., 2011. Nova Gramática Didática do Português, Santillana/Constância, pág. 232;

– Zacarias S. Nascimento e M.ª do Céu V. Lopes, 2011. Domínios – Gramática da Língua Portuguesa, Plátano Editora, pág. 311.

Pergunta:

Por que está errado dizer «batatinha, quando nasce, "esparrama" pelo chão»? Está errado mesmo, ou tem como explicar porque o povo modificou a expressão «espalha a rama pelo chão»?

Obrigada!

Resposta:

O dito está correto, porque se usa o verbo esparramar na seguinte aceção:

(1) «crescer, lançando ramos em todas as direções (ger. planta). Ex.: a aboboreira se esparramou pelo quintal» (Dicionário Houaiss).

Em (1), o verbo é usado pronominalmente, mas o pronome pode eventualmente ser omitido, porque esparramar faz parte de uma série de verbos que apresentam a chamada alternância causativa, isto é, trata-se de verbos que podem ser usados ora como transitivos ora como intransitivos:

(2) O padre casou o João e a Rita./ O João e a Rita casaram-se./ O João e Rita casaram.

Neste grupo de verbos, encontram-se muitos que só opcionalmente são conjugados pronominalmente (é o caso de casar). O exemplo de uso incluído em (1) sugere que o pronome se é obrigatório, mas a sua omissão é aceitável, como se infere de outro uso de esparramar na fonte consultada (idem):

(3) «cair ao comprido ou deitado; estatelar(-se), escarrapachar(-se). Ex.: esparramou(-se) na lama.»

Tudo isto permite aceitar a frase «batatinha, quando nasce, esparrama pelo chão».