Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É tema gasto, mas sem resposta satisfatória.

Vários dicionários só aceitam impudico, mas o Portal da Língua Portuguesa aceita impúdico.

Afinal, qual é a grafia «correta»?

Resposta:

Continua a não haver resposta satisfatória. À luz da norma mais conservadora não se aceita, muito embora haja registos dicionarísticos das formas acentuadas.

A insatisfação com as formas púdico e impúdico terá mais de 100 anos, de acordo com o apontamento que escreveu, também há bastante tempo (mais de 60 anos), Vasco Botelho de Amaral, no seu Dicionário de Dificuldade e Subtilezas do Idioma Português. Note-se que nestes casos, a terminação -ico não vem do sufixo pós-tónico greco-latino -ĭcus, cujo i é breve, mas sim de uma terminação latina que recebia acento tónico no i (longo) de pudīcus.

Botelho de Amaral atribuía a interferência espanhola o uso de púdico, origem que não se pode aqui confirmar, mas que coincide com a fixação da forma púdico em espanhol (cf. dicionário RAE). No entanto, cabe perguntar se a forma esdrúxula não resultará de uma interpretação errónea (hipercorreta) do francês pudique no período em que a leitura nessa língua era frequente nos meios burgueses e aristocráticos de Portugal (e, porque não?, de Espanha). Com efeito, projetando o uso de pudique no português e havendo desconhecimento da forma etimológica latina, é possível que muitos falantes tenham julgado que a terminação francesa deveria ser transposta como o sufixo átono -ico e, por hipercorreção, a palavra deveria assumir a forma púdico. Não é aqui possível aprofundar a questão.

Em todo o caso, refira-se que, em 1966, Rebelo Gonça...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a métrica dos versos seguintes desta cantiga, uma vez que há dúvidas.

«Non chegou, madr’, o meu amigo
e oj’ést’o prazo saido»

Resposta:

Trata-se de uma cantiga de amigo, das muitas compostas pelo rei D. Dinis (1261-1325).

Nos dísticos da cantiga, cada verso tem oito sílabas métricas1:

Non/ che/gou,/ ma/dr’, o/ meu/ a/mi/go – 8 sílabas
e/ o/j’és/t’o/ pra/zo/ sa/i/do2 – 8 sílabas

O poema completo pode encontrar-se na plataforma Cantigas Medievais Galego-Portuguesas (Projeto Littera). Também se encontra aqui, acompanhado de uma análise mais especializada (em galego), na plataforma Universo Cantigas, donde se pode recolher a seguinte paráfrase dos dois versos (adaptada ao português): «Não chegou, mãe, o meu amigo, e hoje acaba o prazo.»

 

1 Recorde-se que as sílabas métricas se contam até à última sílaba tónica da última palavra do verso. No verso «Non chegou, madr’, o meu amigo», a contagem das sílabas métricas vai até à silaba -mi- de amigo, mas já não inclui a sílaba final desta palavra, porque -go é sílaba átona final.

2 A forma ést é o mesmo que é, 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ser.

Pergunta:

Esta dúvida surgiu-me quando estava a falar com uma colega sobre um texto que ela escreveu e que li, com o propósito de o rever.

Uma das poucas questões surgidas versou a pontuação quando se usavam aspas. Esta é a frase:

«"Deve ser por isso que .... são iguais a ele.”, pensou.»

A minha colega argumentou que, quando uma frase entre aspas fica completa, a pontuação deve ficar dentro das aspas. Por isso, colocou um ponto final na frase que transcreve um pensamento, e uma vírgula a seguir.

Embora concorde com a afirmação de que a pontuação deve ficar dentro das aspas, tratando-se de uma frase completa, penso que este é um caso diferente, pois tem ainda a intervenção do narrador. Em minha opinião, o ponto final só deve ficar a seguir à intervenção do narrador, como acontece nos diálogos.

Estarei enganada? Será diferente quando se trata de transcrever pensamentos?

Ficar-vos-ei muito grata pela vossa ajuda.

Resposta:

A questão levantada refere-se à pontuação a empregar com diálogos ou na representação de pensamentos. Neste caso, o ponto só se coloca dentro das aspas, se a fala ou o pensamento terminarem o período ou o parágrafo:

(1) «Deve ser por isso que.... são iguais a ele.»

Contudo, se a fala ou pensamento forem seguidos de uma frase que pertence já à narração, geralmente incluindo um verbo declarativo («disse ele/ela») ou um verbo de atividade mental («pensou ela/ele»), então, não se coloca ponto dentro das aspas:

(2) «Deve ser por isso que.... são iguais a ele», pensou. [ou «"Deve ser por isso que.... são iguais a ele" – pensou.»]

Fonte: Marco Neves, Pontuação em Português, Guerra e Paz, 2022, pp. 38-44.

Pergunta:

Qual a grafia correta deste ser mitológico: Tifão, Tífon ou Tifeu?

Muito obrigado.

Resposta:

Trata-se do nome de uma figura mitológica, um gigante filho de Gaia e do Tártaro que, de acordo com o mito, está enterrado no monte Etna.

Na origem e depois na sua transmissão às língua europeias pelo latim, o nome tem variantes1:

Τυφῶν, romanizedo Typhôn

Τυφωεύς, romanizado Typhōeús

Τυφάων, romanizado Typháōn

Τυφώς, romanizado Typhṓs 

As formas que se fixaram como corretas em português são:

Tífon

Tifeu

Tifão (esta apenas encontra registo no Dicionário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras)

 

1 Fontes: Wikipedia em inglês, e o dicionário Gaffiot latim-francês.

Pergunta:

Reparei que, nalgumas formas verbais que acabam por vogal + em, há a interposição de um /j/ entre vogal e em:

saem → /'sa.ɐ̃j̃/ → /'saj.ɐ̃j̃/

põem → /'põ.ɐ̃j̃/ → /'põj̃.ɐ̃j̃/

Sobre essa regra, tenho duas dúvidas:

1) É por causa do mesmo fenómeno que as formas verbais têm e vêm se pronunciam /'tɐ̃j̃.ɐ̃j̃/ e /'vɐ̃j̃.ɐ̃j̃/, em vez que /'tɛ.ɐ̃j̃/ e /'vɛ.ɐ̃j̃/?

2) Essa regra pode aplicar-se também a outros encontros vocálicos? Por exemplo, alguns falantes pronunciam a frase «é ela» como /ɛj 'ɛ.lɐ/, outros como /ɛ 'ɛ.lɐ/. Ambas as pronúncias estão corretas, ou uma é mais adequada do que a outra?

Obrigado

Resposta:

Em português, a vogal i ocorre frequentemente como glide – representada pelo símbolo fonético [j] –, para desfazer hiatos, isto é, encontros vocálicos que não se resolvem como ditongos.

O caso de saem é o mesmo de caem (cair) e traem (trair) e verbos relacionados: atrair, distrair, ou seja, a terminação -aem da 3.ª pessoa do plural do presente do indicativo soa como [aiɐ̃j̃]. Esta pronúncia faz parte da norma-padrão, e sobre ela não existe juízo normativo desfavorável. É, portanto, pronúncia correta. É possível que o i anti-hiático se relacione com o seu correspondente nasal em têm, vêm e põem, mas não foi aqui possível identificar estudos que proponham ou confirmem essa relação.

Dialetalmente, este [j̃] nasal anti-hiático chega a evoluir como nasal palatal, fazendo as referidas forma verbais soarem como "tenhem", "venhem" e "ponhem"1.

Note-se também que, dialetalmente – não na pronúncia padrão –, o i anti-hiático é frequente não só em sequências como «é ela»/«é ele», mas também e muito especialmente no encontro de dois aa em palavras diferentes:

«a água» > "a iágua"; «a Ana» > "a iAna".

São pronúncias sociolinguisticamente marcadas, que não fazem parte do padrão europeu, mas que se registam no centro e no norte de Portugal.

 

1 Em transcrição fonética, respetivamente: [teɲẽij̃] ou [tɐɲɐ̃j̃"]; [veɲẽij̃] ou [vɐɲɐ̃j̃]; e ['põɲɐ̃j̃].