Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho uma régua antiga em latão onde está escrito a palavra uma com h, ou seja, "huma".

Será que, por gentileza, me saberão informar em que data deixou de se escrever dessa forma?

Muito obrigado.

Resposta:

Não há uma data precisa, mas é provável que só se tenha deixado de escrever uma com h nas primeiras décadas do século XIX.

Um e uma escreviam-se geralmente com h até, pelo menos, à primeira metade do século XVIII, como se pode confirmar pelo tratado de ortografia que João Madureira Feijó (1688-1741) publicou em 1734.

Note-se que é possível que este h se tenha mantido até aos começos do século XIX, porque há tratados de ortografia da época que condenam o uso dessa letra em um e uma, ou seja, infere-se que havia quem cometesse esse erro ao escrever tais palavras com h inicial. Por exemplo, no n.º 288 de 1 de dezembro de 1810 da Gazeta de Lisboa, escrevia-se (sublinhado nosso):

«Já vendêraõ em haste publica os materiaes do Convento da Incarnaçaõ, que derribaraõ; e o seu chaõ está destinado para formar huma praça.»

Pergunta:

Há pouco escrevi a a seguinte frase:

«Há algo que possa fazer para me entreter no entretanto?»

Fiquei de imediato a questionar-me sobre se entreter e entretanto teriam a mesma origem etimológica.

Será que me podem esclarecer?

Obrigado.

Resposta:

São palavras compostas que têm em comum a preposição entre.

Contudo, os segundos elementos têm etimologias diferentes:

ter, do latim tenere, «segurar, agarrar»;

tanto, do latim tantum, «tanto».

Pergunta:

Na frase «Os adolescentes leem sentimentos, gestos e silêncios», posso considerar a presença de sinestesia?

Agradeço a vossa ajuda.

Resposta:

É um caso dúbio, até porque a frase parece provir de um texto reflexivo ou ensaístico, e a sinestesia é mais típica ou do texto póético ou da descrição em textos narrativos. Mesmo assim, pode considerar-se que o uso de ler que a frase ilustra é, estilisticamente, uma sinestesia.

Aceitando que ler sugere denotar o exercício da faculdade da visão, dir-se-á que ler sentimentos, gestos e silêncios é conjugar a capacidade de ver com outro tipo de perceção, a das emoções, marcada pela palavra sentimentos, e a sonora, evocada negativamente por silêncios. Sendo assim, poderia pensar-se que «leem sentimentos, gestos e silêncios» configura uma sinestesia, entendendo esta como uma expressão em que se associam sensações diferentes.

Não obstante, também se poderá afirmar que a frase em questão atesta um uso especial de ler, através de um processo de extensão semântica que o faz sinónimo de interpretar. Nesta perspetiva, é possível aproximar este uso do verbo ler do termo literacia, a qual, no entanto, não tem a mesma etimologia1. Além disso, ler, mais do que verbo de perceção (neste caso, a visão), é um verbo que denota um processo intelectual, razão por que se afigura mais natural considerar «leem sentimentos, gestos e silêncios» como um caso de uso figurado de ler como equivalente de interpretar.

Convém, portanto, desaconselhar a abordagem de casos como o da questão num exercício escolar para apreensão ou reconhecimento do conceito de sinestesia, visto ser pouco ou nada esclarecedor quanto à identificação desta figura de retórica.

 

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Pergunta:

Podemos dizer «ataque cibernáutico»? Ou somente «ataque cibernético»?

A palavra cibernáutico existe ou não e, se sim, em que contextos a podemos utilizar?

Obrigada.

Resposta:

Pode-se empregar «ataque cibernáutico», mas mais corrente é o uso de «ataque cibernético». Mais difundida ainda é a palavra ciberataque.

Não é possível encontrar a palavra cibernáutico em dicionários em linha com origem em Portugal (Infopédia, Priberam, Academia das Ciências de Lisboa). Também não se encontra registo nos dicionários brasileiros a que aqui se teve acesso (Houaiss, Michaelis, UNESP).

Note-se, contudo, que cibernáutico é uma palavra possível e correta, pois deriva regularmente de cibernauta. Pode igualmente considerar-se que cibernáutico é sinónimo de cibernético, pois, em abundantes registos, significa, além de «(o que é) relativo à cibernética, que é a ciência que faz os estudos comparativos dos sitemas de comunicação e regulação das máquinas e dos seres vivos», «(o que é) relativo à Internet e ao ciberespaço». Tendo, então, em conta que cibernauta é «pessoa que utiliza a Internet regularmente» (Infopédia), à formação de cibernáutico associa-se um significado que pouco ou nada difere do de cibernético.

Mesmo assim, consultando páginas em linha, nota-se que, quando se trata de ataques informáticos pela Internet, as expressões recorrentes e predominantes são «ataque cibernético». De forma mais sintética, regista-se ciberataque, provável dec...

Pergunta:

Eu fui criticado por uma expressão que julgo estar certa e, na realidade, as pessoas que me rodeiam também a dizem.

Acontece que há pessoas que dizem que é errado, na internet. Trata-se da expressão «estar de».

Bem sei que é usada para no referirmos a um estado provisório, não habitual, como «estou de baixa», «estou de férias» ou «estou de trombas», certo? Acontece que a mesma expressão, no meio em que estou inserido, ou seja em Lisboa, e pensando eu que seria no país todo, o que até pode ser que seja o caso, também se usa a expressão «estar de» em relação ao vestuário.

Por exemplo: «Eu hoje estou de ténis»; «ele está de calções e de T-shirt».

Penso que já perceberam a ideia? Conhecem esta expressão também? Ela é estranha? Existe alguma agramaticalidade contida na mesma?

Obrigado.

Resposta:

O uso em causa nada tem de incorreto.

O verbo estar pode ter associado um complemento introduzido por de realizado por uma expressão referente a vestuário, como bem se atesta, por exemplo, em textos literários (pesquisa feita no Corpus do Português, de Mark Davies):

(1) «Já todo esse campo está de camisa nova vestida, e muito branca [...]» (Fialho de Almeida, "A Velha", conto de O País das Uvas, 1893)

(2) «No espelho eu estou de traje civil ...» (Maria Velho da Costa, Missa in Albis, 1988)

(3) «Eu, que estava de toga...» (Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, 1994)

Por vezes, em relação ao vestuário, podem gerar-se pequenas diferenças:

(4) estava em camisa = estava em/de roupa interior/só vestia a roupa interior

(5) estava de camisa aos folhos = vestia camisa aos folhos

Em (5), é preciso especificar a peça de vestuário – p. ex. «camisa aos folhos», «camisa vermelha».