Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No título da palestra de Stewart Brand, na TED, The dawn of de-extinction. Are you ready?, surge a palavra de-extinction.

É correto usar o prefixo des- (ou in- ou outro) na tradução em português?

Ex.: "des-extinção".

Resposta:

Do ponto de vista das regras de formação de palavras (morfologia), pode afirmar-se que a forma desextinção é uma palavra correta, muito embora, no momento em que se escreve esta resposta, se trate de um neologismo recente, que ainda não tem uso consolidado, pelo menos, num certo tipo de discurso. Assinale-se, contudo, que a tradução para português da conferência TED em apreço decalca sem dificuldade o inglês de-extinction como desextinção. Com efeito, em português, é possível formar o neologismo desextinção para designar, como em inglês, a possibilidade de fazer reviver espécies que já se encontram extintas. Observe-se que o prefixo des- é usado com verbos; e ocorre em palavras derivadas dos verbos assim prefixados, como é o caso de descobrimento, cuja base de derivação é o tema de descobrir (descobri-). Ora, seguindo este modelo, pode formar-se desextinção, com base em desextinguir – com a ressalva de desextinção pressupor não o tema desextingui-, mas, sim, o substantivo extinção, que é a nominalização correspondente a extinguir, base da derivação de desextinguir.

Pergunta:

Nas frases – tomadas dos artigos jornalísticos do escritor Antonio Lobo Antunes:

«Torna a emprestar-me a chave do apartamento...»

«Vou ter de mandar-te ao oculista.»

«Voltarmos a habituar-nos um ao outro.»

Nestas frases, os pronomes me, te e nos poderiam colocar-se diante do verbo, ou seja, «voltarmos a nos habituar», «vou ter de te mandar ao oculista», «torna a me emprestar»? Não sei se é uma licença do escritor, ou se pode escrever-se desse modo.

E nestas outras frases: «terás de vir visitar-me a Espanha», ou «terás de me vir visitar»? «Gostaria muito de ver-te em París», ou «gostaria muito de te ver em Paris»?

Muito obrigada e desculpas por ser um bocadinho longo.

Resposta:

Com os verbos auxiliares que se associem a um infinitivo por meio de preposição – ex., «ter de», «voltar a», «tornar a» –, tudo depende da preposição em causa:

a) de permite a ênclise ou a próclise: «tenho de mandar-te ao oculista»/«vou ter de te mandar ao oculista»;

b) a só é compatível com a ênclise: «torna a emprestar-me a chave do apartamento»; «voltamos a habituar-nos».

Deste modo, atendendo a a), estão corretas as frases em que ocorre a preposição de antes de infinitivo – incluindo aquelas em que figura o verbo gostar (que não é um auxiliar).

De notar também que é possível associar o pronome pessoal átono aos auxiliares que têm associada a preposição a: «torna-me a emprestar a chave»; «voltamo-nos a habituar».

Esta possibilidade só se verifica com «ter de», se o pronome ocorrer antes do auxiliar (não é possível *«tenho-te de mandar»): «não te tenho de mandar ao oculista».

Na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1242), propõe-se que a impossibilidade de «tenho-te de mandar ao oculista» se deva a de ter-se tornado parte integrante do auxiliar (cf. o uso de «haver de» e a forma popular *"hades", em lugar da correta, que é hás de).

Cf. Ter de ≠ ter que

Pergunta:

Por que socioeconômico não tem hífen, e político-econômico tem?

Resposta:

Considera-se que socio- funciona como radical ou prefixo, logo dispensa hífen quando participa em compostos1 – daí socioeconómico.

Quanto a político-económico, considera-se que a palavra é um composto com estrutura de coordenação2, semelhante a casos como os de luso-brasileiro.

Dito isto, não se afigura totalmente clara a razão por que não se escreve "sócio-económico". É certo que socioeconómico constitui a forma escrita correta, fixada nos dicionários e vocabulários ortográficos atualizados; mas cabe observar que, correspondendo socioeconómico à coordenação de social e económico, tal como político-económico resulta da coordenação de político e económico, pode concluir-se que, ortograficamente, não é uniforme o tratamento deste tipo de compostos coordenados.

Refira-se igualmente que socioeconómico se regista como sinónimo de económico-social (cf. Priberam), que tem hífen e coordena económico e social, combinando a noção associada a social à noção de económico. Pela mesma lógica, não seria, então, impossível a forma "sócio-económico", também com hífen.

Perante as discrepâncias apontadas, à escrita de compostos como estes conviria certamente uma clarificação e uma especificação das regras ortográficas.

 

1 Cf. Base XVI, 2, b) do

Pergunta:

Segundo o Dicionário Terminológico, na frase «Eu quero fumar», considera-se que o sujeito é nulo. Será possível dar uma explicação mais pormenorizada sobre isto?

Muito obrigada.

Resposta:

O exemplo que é dado pelo Dicionário Terminológico (DT) está certo, porque o sujeito nulo ocorre entre «quero» e «fumar», sendo assinalado por um pequeno travessão entre parênteses retos ([–]). Ou seja, eu é o sujeito explícito de «quero», enquanto o de «fumar» é nulo.1 

A análise que o DT pressupõe é que o infinitivo que completa o verbo querer corresponde, de modo abstrato, a uma oração completiva, pelo que a frase poderia parafrasear-se do seguinte modo:

1. «Eu quero que eu fume.»

Acontece que em português, uma frase como 1 não é habitual. O que ocorre em português é o verbo querer ser considerado não um auxiliar, mas um verbo que seleciona uma oração subordinada com uma particularidade: se o sujeito de tal subordinada tiver a mesma referência que o de querer, a oração tem de estar no infinitivo (não flexionado), e o sujeito não é realizado, o que explica a frase 2, completamente correta:

2. «Eu quero [-] fumar.»

O [-] que aparece no exemplo do DT apenas indica que o infinitivo tem um sujeito que não se realiza, isto é, trata-se de um sujeito nulo.

1 Como se explica no DT, um sujeito nulo é um sujeito sem realização lexical, isto é, trata-se de um sujeito que não é marcado explicitamente por nenhuma palavra (o travessão entre parênteses indica a ocorrência de um sujeito nulo): «eu quero (–) comer»; «(–) quero um bolo»; «(–) dizem que ele ganhou a lotaria».

Pergunta:

Traduzindo para português o segmento frásico em francês «[...] laquelle loi a créé une Commission pour la transparence financière de la vie politique [...]», obtemos «a qual lei criou uma Comissão para a transparência financeira da vida política».

Actualmente, segundo o Dicionário Terminológico, cujo é considerado o único determinante relativo da língua portuguesa. Mas como classificar morfologicamente «a qual» senão como também um determinante relativo?

Resposta:

O uso de o qual como determinante é um arcaísmo.

A Gramática do Português (2013, págs. 2095/296), da Fundação Calouste Gulbenkian, descreve esse uso do seguinte modo:

«[...] Em fases anteriores da língua, o qual apresentava dois padrões sintáticos distintos em orações relativas de nome: num deles, o qual era equivalente a um sintagma nominal, como em português contemporâneo (cf. o professor elogiou muito o Rui, o qual teve 20 no teste; o qual = o Rui); no outro, funcionava como um determinante explícito, precedendo um grupo nominal dentro do constituinte relativo, geralmente idêntico ao grupo nominal antecedente (ou a parte dele), mas podendo também ser um sinónimo ou um hiperónimo deste. Estes dois usos exemplificam-se, respetivamente, em (ia) e (ib) [...]:[*]

(i) a. E pedia q(ue) p(er) Sen(ten)ça o cost(re)ngese q(ue) lhj dese a d(i)ta vaca cõ sua ffilha segu~do mays conp(ri)dam(en)t(e) Era (con)tehudo e~ sua petiçom a q(u)al ffoy contestada p(er) o d(i)to p(ri)oll [...]

b. Asy diserom q(ue) os di(c)t(os) logares danboores (e) mõte valem todo onze m(a)r(avedi)s da boa moeda cõ ho di(c)to monte os q(u)aes logares danboroes p(ar)tem cõ erdade darouqua (e) cu~ erdade do di(c)to Johã de basto (e) cõ erdade de v(asco) m(art)iz [...]

No entanto, alguns autores [...] registam o uso como determinante explícito em orações relativas apositivas, como as de (ii) [...]:

(ii) a. A falta de monitores na Faculdade de Direito de Lisboa não permitiu ainda que começassem as aulas das subturmas, as quais aulas funcionam em regime de avaliação contínua de conhecimentos.

b. Ao livro ninguém fez referência, o qual livro merece a ma...