Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No livro Por Terras do Norte, de João Paulo Freire, pág. 59, a dado passo pode ler-se: «alguns menores, rapazitos de dez a doze anos, viciando-se, pervertendo-se, miasmatisando-se no contacto doentio do vício!»

Resposta:

A palavra miasmatizando (atualmente com z)1 é o gerúndio de miamastizar, verbo não registado nas fontes de que dispomos. No entanto, a palavra é possível, uma vez que se atesta a forma miasma, «emanação a que se atribuía, antes das descobertas da microbiologia, a contaminação das doenças infecciosas e epidêmicas» (Dicionário Houaiss), à qual corresponde a forma miasmático, cujo radical miasmat- permite a formação do verbo miasmatizar.

1 O livro Por Terras do Norte é do jornalista português João Paulo Freire (1885-1953) e foi publicado em 1925. Não tivemos acesso à obra, mas é possível que a a grafia apresentada pelo consulente corresponda à do original.

Pergunta:

Conhecendo a palavra jeira escrita com a letra j, solicito informação sobre a palavra geira, neste caso escrita com a letra g. Conheço a expressão «geira romana», que é uma estrada romana.

Muito obrigado.

Resposta:

Trata-se de palavras diferentes.

A palavra jeira, «porção de terreno», «serviço de lavoura» (cf. Dicionário Houaiss), tem origem no latim «diaria (opera), ´tarefas diárias`» (Dicionário Houaiss).

Geira tem outra origem. José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003) propõe que se relacione com o latim Caesaria:

«Do lat. Caesaria, -area, "imperial", "de César". O nome-título figura, como de costume, nos marcos miliários, o que levaria a popularizar a designação. Cf. top. esp. Jerez Caesaris, genitivo de Caesar. O top. port. Gerês terá a mesma origem. O s.f. port. jeira, tal como o cast. jera, deve-se ao lat. diaria [...].»

No entanto, trata-se de uma hipótese controversa, pois Amílcar Guerra ("Algumas questões de toponímia pré-romana do Ocidente peninsular", Palaeohispanica. Zaragoza. 3, págs. 101–112.2003, citado por J. de Alarcão, "Notas de arqueologia, epigrafia e toponímia-VI",  Revista Portuguesa de Arqueologia, volume 15, 2012, pp. 125), relaciona Geira e Gerês com as formas pré-romanas atestadas na epigrafia latina Ocaera e Ocaerensis, respetivamente (o resultado medieval da segunda forma aparece atestado como «alpes Ugeres» ou «Ogeres»). É, pois, possível que ...

Pergunta:

Pelo visto, estou ultrapassado. Aprendi há muito que pagado é um arcaísmo, embora o Saramago, talvez por influência do castelhano, do catalão ou do valenciano, o use com frequência nas suas obras. Quanto a o gastado e o ganhado terem dado o lugar a gasto e a ganho, também quando usados com o verbo ter, confesso-me surpreendido. Passou a ser norma? E as formas gastadoganhado são alternativas às simplificadas, quando usadas com o verbo ter, ou já ganharam o estatuto de arcaísmos?

A seguir, virá a aceitação da palavra “empregue”, que já vi num dicionário, e a da palavra  “encarregue”, que ainda não vi em nenhum.

Resposta:

Do ponto de vista normativo, o uso dos particípios passados gastado e ganhado é correto e faz-se de maneira igual à de outros particípios regulares, isto é, ocorrendo só com o auxiliar ter. Com o auxiliar ser, o particípio passado tem sempre forma curta ou irregular (gasto e ganho).

No entanto, há muito que certos gramáticos vêm assinalando a preferência do uso pelas formas irregulares destes particípios passados, mesmo em associação com o auxiliar ter («tinha gasto/ganho»):

– Vasco Botelho de Amaral, no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa (1958), observa que ganhado «vai rareando», e gastado, também.

– Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág.440) consideram que pagado foi substituído por pago, e ganhado com gastado tendem a ser substituídos pelas formas irregulares.

– Em obras exclusivamente elaboradas por gramáticos brasileiros, as posições podem não coincidir completamente: E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, págs. 229/230) inclui ganhado, gasto e até mesmo pagado ao lado das formas curtas numa lista de formas participiais duplas, mas deixa indicação de estas formas irregulares poderem usar-se tanto na passiva como nos tempos compostos. Maria Helena de Moura Neves (Guia de Uso do Português, 2003), procurando conciliar a tradição normativa com a observação do uso por meio de corpora, apresenta ganhado e gastado como formas pouco usadas.

Pergunta:

Gostaria de saber o que as fontes dizem sobre o aportuguesamento Ardaã da cidade turca de Ardahan. Em pesquisa no Google achei duas fontes que citam a forma em português, ambas brasileiras, e uma delas sendo de 2012.

Resposta:

É uma forma possível, mas acontece que a ortografia do português ainda aguarda a definição de critérios gerais de adaptação de topónimos estrangeiros por parte das entidades que monitorizam a sua normativização. Sem excluir a possibilidade de usar a forma turca e internacional Ardahan, e apesar de se tratar do nome de uma cidade pouco referida nos media em português, pode aceitar-se que a forma Ardaã está de acordo com os princípios da ortografia da língua portuguesa.

Pergunta:

Gostava de saber qual é a origem da expressão «ao tio ao tio», como quem se refere que anda «às aranhas» com algo. Ex: «Não vou andar por aí "ao tio ao tio" à procura dele.»

Obrigado.

Resposta:

Não dispomos de fontes que nos esclareçam as circunstâncias ou o contexto em que a expressão surgiu.

A forma que encontramos registada é «andar ó tio, ó tio», no Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Publicações D. Quixote), de Guilherme Augusto Simões, que lhe atribui o significado de «à procura; de um lado para o outro» e uma versão mais completa – «ó tio, ó tio, passa pra cá barcaça» –, sem esclarecer a razão do aparecimento da expressão (história popular? alguma deixa do teatro popular?).

Orlando Neves (Dicionário de Expressões Correntes, Lisboa, Editorial Notícias, 2000) reitera o sentido dado à expressão por G. Augusto Simões, mas acrescenta-lhe outro: «andar sem posses, a pedir emprestado». António Nogueira Santos (Português – Novo Dicionário de Expressões Idiomáticas, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 2006) também regista este idiomatismo, interpretando-o de maneira sintética como «procurar alguma coisa por todos os lados, recorrendo ao auxílio de outras pessoas».