Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na frase «Para aprender matemática é preciso esforço, concentração e pensamento», não deveria ser antes «(...) são precisos esforço, concentração e pensamento»? Ou a forma verbal não tem de concordar em número com o predicativo do sujeito que assumo que seja esforço, concentração e pensamento?

Obrigada.

Resposta:

O uso generalizado – e correto – é mesmo «é preciso esforço, concentração e pensamento», sem haver concordância, como se o verbo ter tivesse sido omitido: «é preciso (ter)...»

E. Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, 2002, p. 551) aceita e descreve este uso:

«Com expressões do tipo "é necessário", "é bom", "é preciso", significando ´é necessário`, o adjetivo pode ficar invariável, qualquer que seja o gênero e o número do termo determinado, quando se deseja fazer uma referência de modo vago ou geral. Poder-se-á também [...] fazer normalmente a concordância:

"É necessário paciência."

"É necessária muita paciência."

"O fato de ter sido precisa a explicação."

"Eram precisos outros três homens" [...]

[...] [A] flexão de "necessária(s)" é mais freqüente que a de "precisa".»

Pergunta:

Chinês, ou chinez? Gaguês, ou gaguez?

Qual a regra para quando uma palavra deve acabar em -ês ou em -ez?

Onde posso encontrar online um website oficial (por exemplo do governo) com a definição desta regra?

Houve alguma altura na história da língua portuguesa em que a terminação -ez era a comum, tendo mais tarde evoluído para -es?

Resposta:

Não há propriamente uma regra. O que existe são critérios com fundamento na história das palavras. Assim:

– A forma -ês é um sufixo que, associando-se geralmente a radicais de substantivos, forma adjetivos e substantivos que exprimem naturalidade ou proveniência (gentílicos) : China → chinês; Irlanda → irlandês; montanha → montanhês.1

– A forma -ez é um sufixo que forma substantivos abstratos com base em adjetivos: gago → gaguez; malvado → malvadez; escasso → escassez.

As diferentes grafias destes dois sufixos parecem ter estabilizado depois da reforma ortográfica de 1911, com base em razões históricas: -ês vem do latim -ENSE; e -ez, do latim -ITIES (cf. Dicionário Houaiss).2

Trata-se, portanto, de dois sufixos que evoluíram de sufixos latinos diferentes, que no português medieval tinham pronúncias diferentes (-ês soaria como "-êss", e -ez como "-ets"), e que mais tarde acabaram por convergir na mesma pronúncia.

Em suma, a este respeito, a solução para encontrar a ortografia certa é atender realmente encontrar um dicionário, mas, querendo ir mais além, um que inclua notas etimológicas de modo a compreender-se a origem da palavra e, assim, justificar-se a opção por um sufixo ou outro.

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Pergunta:

No título da palestra de Stewart Brand, na TED, The dawn of de-extinction. Are you ready?, surge a palavra de-extinction.

É correto usar o prefixo des- (ou in- ou outro) na tradução em português?

Ex.: "des-extinção".

Resposta:

Do ponto de vista das regras de formação de palavras (morfologia), pode afirmar-se que a forma desextinção é uma palavra correta, muito embora, no momento em que se escreve esta resposta, se trate de um neologismo recente, que ainda não tem uso consolidado, pelo menos, num certo tipo de discurso. Assinale-se, contudo, que a tradução para português da conferência TED em apreço decalca sem dificuldade o inglês de-extinction como desextinção. Com efeito, em português, é possível formar o neologismo desextinção para designar, como em inglês, a possibilidade de fazer reviver espécies que já se encontram extintas. Observe-se que o prefixo des- é usado com verbos; e ocorre em palavras derivadas dos verbos assim prefixados, como é o caso de descobrimento, cuja base de derivação é o tema de descobrir (descobri-). Ora, seguindo este modelo, pode formar-se desextinção, com base em desextinguir – com a ressalva de desextinção pressupor não o tema desextingui-, mas, sim, o substantivo extinção, que é a nominalização correspondente a extinguir, base da derivação de desextinguir.

Pergunta:

Nas frases – tomadas dos artigos jornalísticos do escritor Antonio Lobo Antunes:

«Torna a emprestar-me a chave do apartamento...»

«Vou ter de mandar-te ao oculista.»

«Voltarmos a habituar-nos um ao outro.»

Nestas frases, os pronomes me, te e nos poderiam colocar-se diante do verbo, ou seja, «voltarmos a nos habituar», «vou ter de te mandar ao oculista», «torna a me emprestar»? Não sei se é uma licença do escritor, ou se pode escrever-se desse modo.

E nestas outras frases: «terás de vir visitar-me a Espanha», ou «terás de me vir visitar»? «Gostaria muito de ver-te em París», ou «gostaria muito de te ver em Paris»?

Muito obrigada e desculpas por ser um bocadinho longo.

Resposta:

Com os verbos auxiliares que se associem a um infinitivo por meio de preposição – ex., «ter de», «voltar a», «tornar a» –, tudo depende da preposição em causa:

a) de permite a ênclise ou a próclise: «tenho de mandar-te ao oculista»/«vou ter de te mandar ao oculista»;

b) a só é compatível com a ênclise: «torna a emprestar-me a chave do apartamento»; «voltamos a habituar-nos».

Deste modo, atendendo a a), estão corretas as frases em que ocorre a preposição de antes de infinitivo – incluindo aquelas em que figura o verbo gostar (que não é um auxiliar).

De notar também que é possível associar o pronome pessoal átono aos auxiliares que têm associada a preposição a: «torna-me a emprestar a chave»; «voltamo-nos a habituar».

Esta possibilidade só se verifica com «ter de», se o pronome ocorrer antes do auxiliar (não é possível *«tenho-te de mandar»): «não te tenho de mandar ao oculista».

Na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1242), propõe-se que a impossibilidade de «tenho-te de mandar ao oculista» se deva a de ter-se tornado parte integrante do auxiliar (cf. o uso de «haver de» e a forma popular *"hades", em lugar da correta, que é hás de).

Cf. Ter de ≠ ter que

Pergunta:

Por que socioeconômico não tem hífen, e político-econômico tem?

Resposta:

Considera-se que socio- funciona como radical ou prefixo, logo dispensa hífen quando participa em compostos1 – daí socioeconómico.

Quanto a político-económico, considera-se que a palavra é um composto com estrutura de coordenação2, semelhante a casos como os de luso-brasileiro.

Dito isto, não se afigura totalmente clara a razão por que não se escreve "sócio-económico". É certo que socioeconómico constitui a forma escrita correta, fixada nos dicionários e vocabulários ortográficos atualizados; mas cabe observar que, correspondendo socioeconómico à coordenação de social e económico, tal como político-económico resulta da coordenação de político e económico, pode concluir-se que, ortograficamente, não é uniforme o tratamento deste tipo de compostos coordenados.

Refira-se igualmente que socioeconómico se regista como sinónimo de económico-social (cf. Priberam), que tem hífen e coordena económico e social, combinando a noção associada a social à noção de económico. Pela mesma lógica, não seria, então, impossível a forma "sócio-económico", também com hífen.

Perante as discrepâncias apontadas, à escrita de compostos como estes conviria certamente uma clarificação e uma especificação das regras ortográficas.

 

1 Cf. Base XVI, 2, b) do