Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o significado da expressão «sem espinhas»? Depois de um jogo de futebol em que o resultado foi de 3-1, o adepto da equipa ganhadora disse: «Sem espinhas!»

Resposta:

Não encontramos registo da expressão nas fontes de que dispomos. No entanto, dado que quem a profere é adepto da equipa ganhadora, infere-se que «sem espinhas» significa o mesmo que «sem dificuldade» ou seja, «foi fácil» (ou, para usar outro idiomatismo, «foi canja»). A origem da expressão é claramente metafórica: se é mais fácil comer peixe sem espinhas, então uma vitória que foi fácil é comparável a essa situação.

Pergunta:

Vulgarizou-se «quais é que são» por «quais são». É permitido?

Resposta:

É permitido, é totalmente normal na oralidade e aceita-se mesmo na escrita, embora muitos normativistas do século passado achassem que havia algum abuso na construção.

Vasco Botelho de Amaral, no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa (s. v. «é que, foi que»), criticava o «uso descomedido» de «é que», mas verificava que o seu emprego não é historicamente um galicismo, podendo atestar-se nas obras de Alexandre Herculano. Rodrigo Sá Nogueira (Dicionário de Erros e Problemas da Linguagem, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1974) também se referia a esse abuso, mas assinalava do mesmo modo que a expressão tinha, no português, tradição anterior à influência francesa do século XIX.

No final do século XX, a expressão «é que» é descrita sem qualquer observação que restrinja ou condene a sua ocorrência. Assim, por exemplo, Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, págs. 504/505) referem-se à «locução invariável "é que"» e descrevem-na sem qualquer juízo normativo desfavorável. Atualmente, a sequência «é que» é descrita por linguistas como locução que participa em construções de foco (clivagem), ou seja, em construções que dão relevo especial a certos constituintes frásicos («o meu clube é que ganhou»).

Pergunta:

Como classificar «de água», na seguinte frase?

«Agora uma estreita tira de água e monte que se avistava entre dois prédios (...)»

É que não se enquadra, a nosso ver, nos casos do complemento do nome, mas parece-nos necessário para a inteligibilidade da frase. Ex.: «Passa-me a tira» (será sempre necessário dizer de quê...).

Obrigada.

Resposta:

Palavras como tira, pedaço, bocado, porção, dose, pinga são consideradas parte integrante de expressões quantitativas nominais («uma tira de veludo», «um pedaço de tecido», «uma dose de arroz», etc.). Note-se que o termo «expressão quantitativa nominal» não faz parte da terminologia usada nos ensinos básico e secundário em Portugal (cf. Dicionário Terminológico), embora se encontre em obras e estudos elaborados no âmbito da linguística (cf. M.ª Helena Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, págs. 352/353). Observe-se ainda que, apesar de incluírem grupos preposicionais iguais ou semelhantes a complementos nominais (ibidem), estas expressões quantitativas têm um comportamento próprio, porque o significado global da expressão é sempre dado pela expressão quantificada (ibidem): «uma tira de veludo» não deixa de ser "veludo", ao contrário das estruturas que incluem verdadeiros complementos nominais («a invasão do Iraque» não significa «Iraque» nem «parte do Iraque»).

Pergunta:

Atentemos neste excerto do tratado monumental de Vitrúvio que colige saberes arquitectónicos – « […] si autem natura loci impedierit […].» Traduzi-lo-ia por «mas se a natureza do lugar [o] tiver impedido», substituindo o futuro perfeito do indicativo latino através do futuro perfeito do conjuntivo português. Ora, ao fazê-lo, garanto, por um lado, que a nuance semântica apologética da tentativa se mantém e, por outro, que se respeita o sistema hipotético do português. Devido a este mesmo último entrave, o francês, cioso da dita nuance semântica, poderia traduzi-lo por «mais si la nature du lieu [l’]a empêché», visto que não se pode fazer seguir um futuro a um «si» hipotético. Agora, a tradução bastante recorrente por presente é absolutamente despropositada em português e em francês (a saber: «mas se a natureza do lugar [o] impede»/«mais si la nature du lieu [l’]empêche»).

Pedia um comentário aos meus escritos, com especial enfoque sobre a importância de se salvaguardar a dita nuance semântica.

Resposta:

O tempo verbal em questão, no caso deste passo do famoso tratado de Vitrúvio, não será propriamente o futuro perfeito do indicativo latino, mas, sim, o perfeito do conjuntivo. Se é verdade que o futuro perfeito do indicativo e o perfeito do conjuntivo apresentam formas comuns em todas as pessoas e números, exceto na primeira pessoa do singular, importa não esquecer que o primeiro se utiliza em orações temporais, enquanto o segundo tem maior cabimento em orações condicionais.

Em latim, existem basicamente três tipos de orações condicionais: as de período real (em que a condição é enunciada como real), as de período potencial (em que a condição se considera possível) e as de período irreal (em que a condição se exprime como irreal). No segundo tipo, ou seja, nos casos em que se considera a condição como possível, emprega-se em ambas as orações (ou seja, tanto na principal como na subordinada) o conjuntivo presente ou o perfeito do conjuntivo, embora se possa usar igualmente o futuro do indicativo na oração principal.

Nestas orações condicionais de período potencial, a utilização do perfeito do conjuntivo em vez do conjuntivo presente comporta, de facto, pelo menos em termos teóricos, certo matiz semântico, pois o perfeito do conjuntivo, além de enunciar a condição como possível, indica que se trata de um facto que alguma vez há de ser passado. No entanto, em ambos os casos, ou seja, quer se empregue o conjuntivo presente ou o perfeito do conjuntivo em latim, a tradução usual e recomendada em português socorre-se do futuro imperfeito do conjuntivo. Sendo assim, a tradução correta de «si autem natura loci impedierit» será «mas se a natureza do local (o) impedir». A tradução manter-se-ia, caso Vitrúvio tivesse usado o conjuntivo presente («si autem natura loci impediat»).

Poderia eventualmente pensar-se no recurso à conjugação per...

Pergunta:

Estou com uma dúvida acerca desta frase:

«O rapaz elegeu-se presidente.»

O verbo eleger-se neste caso é pronominal, a frase está na voz passiva, ou é uma voz reflexiva? De mais a mais gostaria de saber como distinguir essas três classificações em casos como esse.

Obrigado.

Resposta:

No caso apresentado, o verbo tem forma reflexiva e pode enquadrar-se naquilo que E. Bechara designa como «voz reflexiva» (Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, p. 222); o verbo assim usado chama-se pronominal (ibidem e p. 262), porque se se refere ao sujeito da forma verbal e, em certos casos, pode ser reforçado por «a si mesmo»; «ele elegeu-se presidente a si mesmo». Contudo, há verbos que são pronominais, muito embora o pronome átono associado não seja, a rigor, reflexivo: «ele esforçou-se muito». Quer isto dizer que a conjugação pronominal nem sempre é reflexiva (ver Bechara, p. 222, observação 3.ª).

Na passiva de se, que Bechara inclui na voz passiva, não é possível o reforço com «a si mesmo», e o agente da ação fica indeterminado: «na reunião, elegeram-se dois secretários» (não se sabe quem exatamente os elegeu, a não ser que o contexto permita depreendê-lo). Esta situação é um uso especial da conjugação pronominal, e, de facto, Bechara (ibidem e p. 563) fala em «passiva pronominal», quando ocorre com verbos transitivos: «elegeram-se dois secretários». Neste caso, considera-se (ibidem) que se deve distinguir a voz passiva («foram eleitos») da voz reflexiva passiva («elegeram-se»).