Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em que circunstância devo usar as frases: «pelo respeito que eu lhe mereço» ou «pelo respeito que ele me merece»?

Resposta:

O verbo merecer pode ter, além de um complemento direto, um complemento indireto que marca a pessoa que reconhece o merecimento. O Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa (Livraria Chardron e Lello e Irmão, Lda., 1983), de Énio Ramalho, atesta este uso: «merecer alguma coisa a: aquele livro mereceu ao crítico alguns comentários rigorosos.»

Sendo assim, as frases apresentadas podem ser interpretadas como:

1. «pelo respeito que eu lhe mereço» = «pelo respeito que eu mereço da parte dele/da sua parte [também relativo a um interlocutor tratado por você]»;

2. «pelo respeito que ele me merece» = «pelo respeito que ele merece da minha parte».

Pergunta:

Diante a expansão de lojas que vendem brigadeiros no mercado, qual a grafia correta, "brigaderia", ou "brigadeiria"?

Obrigada.

Resposta:

Não há uma resposta direta quanto à palavra que pretende, dado tratar-se de um vocábulo recente, que ainda não estabilizou. Mesmo assim, as formas brigadeiraria e brigadeiria apresentam características que as recomendam como opções mais coerentes.

Em princípio, para derivar de brigadeiro, deveria ter a forma brigadeiraria (cf. caldeira > caldeiraria) ou, para usar um sufixo comum no Brasil, brigadeireria. Com efeito, há quem use brigadeiraria, conforme se pode confirmar numa página em linha. Uma consulta nas páginas da Internet mostra, porém, que no uso existem também formas que não seguem este modelo: "brigaderia" e "brigadeiria". A segunda forma é melhor do que a primeira porque mantém o ditongo de brigadeiro, embora ambas pareçam incluir não o sufixo -aria, que denota lugar de venda, loja (cf. cervejaria, pastelaria, peixaria), mas, sim, o sufixo -ia, de significado mais vago (como acontece no caso de freire/freiria, «convento de freires ou de freiras», Dicionário Houaiss). Uma análise alternativa permite encarar brigadeiria de maneira mais favorável: nesta forma haveria um fenómeno de simplificação, ou seja, uma haplologia, que consiste na perda de uma sílaba num par de duas contíguas, iguais ou semelhantes (cf. "idololatria" > idolatria, cf. Dicionário Houaiss).*

Mesmo assim, brigadeiraria ou brigadeireria parecem ser as palavras de morfologia mais consistente –...

Pergunta:

Li em tempos, julgo que aqui nas Ciberdúvidas, que o som /x/, em palavras provenientes de línguas que não usam o alfabeto latino, se deve grafar x, e não ch. Assim, a palavra que em inglês se escreve shisha, que provém do persa (designação de um tipo de tabaco e, por extensão, do cachimbo de água com que é fumado), não deverá em português escrever-se "xixa", e não "chicha", como encontro em algumas páginas da Internet?

Gostava ainda, caso a primeira asserção esteja correcta, que me indicassem bibliografia para o mencionado preceito de transcrição.

Muito grato pela atenção.

Resposta:

Considera-se efetivamente que a letra x será mais adequada para representar o som [ʃ] (fricativa pré-palatal surda), representado por esse grafema em baixo, porque ch era o dígrafo usado para representar o som africado – [tʃ] –, que ainda hoje se conserva em certos falares setentrionais em Portugal. Contudo, a convergência dos dois sons em [ʃ] no português-padrão, pelo menos, desde o século XVIII, e a eventual influência da ortografia francesa levaram a que atualmente se registem oscilações na representação do [ʃ] que ocorre em palavras de línguas estrangeiras que têm escritas não latinas; e tanto é assim, que muitas vezes se prefere usar ch.

O princípio para a distribuição de x e ch encontra-se no texto da Reforma Ortográfica de 1911 (secção XII), cujos critérios, a respeito deste assunto, se mantiveram nos acordos de 1945 (Base V) e 1991 (Base III, 1.º).

Como a transcrição inglesa e internacional apresenta o dígrafo, seria de supor que fosse o grafema correspondente em português. No entanto, pode haver tanta relutância em propor "xixa" como "chicha", porque não existem neste momento normas estáveis para a  transcrição de línguas que se escrevam com sistemas de escrita não latinos. A solução provisória será usar a grafia internacional shisha em itálico.

Pergunta:

Sendo a maçazeira a árvore que dá maçãs, o que é a macieira? A árvore que dá "macias"?

Resposta:

A forma macieira é a palavra usada no português culto para referir «árvore que dá maçãs». A conjetura que é feita, certamente com espírito brincalhão, não tem fundamento algum, porque a palavra macieira deve a sua configuração a razões históricas, sem deixar de estar relacionada com maçã; cf. Dicionário Houaiss: «[macieira, de] maçã + -eira, por assimilação, através de *maçãeira > *maçaeira > maceeira e, por dissimilação, macieira [...]». São possíveis, mas de uso mais regional, as palavras maceira, maçãzeira e mançaneira (ou maçaneira), conforme se pode confirmar pelo Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, pelo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e pelo dicionário de Cândido Figueiredo (versão em linha).

Pergunta:

Hoje o meu filho perguntou-me se existia a palavra "mantelar". Eu sei que não existe, mas qual a razão de, não existindo "mantelar", existir desmantelar, que é uma palavra tão usual?

Obrigada.

Resposta:

O verbo desmantelar parece efetivamente pressupor um verbo que não se atesta – "mantelar". Contudo, a verdade é que a palavra é uma adaptação do francês démanteler, conforme explica o Dicionário Houaiss:

«fr. démanteler (1563), prov[avelmente] formado como ant[ónimo] de emmanteler (1265) "cobrir com capa ou capote", (1565) [termo] mil[ilitar] "proteger com um cinto de fortificação", do fr[ancês] ant[igo] mantel (atual manteau), do lat. mantēllum, í, ´manto, cobertura; [...] f[ormas] hist[óricas] 1648 desmantelado, 1660 desmantellar.»