Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pelo novo acordo ortográfico, os meses passam a escrever-se com a inicial minúscula. O que pergunto é se a mesma regra se aplica no caso de datas comemorativas, como sejam os casos do 25 de Abril e o 1 de Maio.

Resposta:

Tendo em conta a Base XIX, 2.º e) do Acordo Ortográfico de 1990, dir-se-ia que nos casos apresentados os meses se escrevem com maiúscula, tal como acontece com os dias da semana (Quarta-Feira de Cinzas; Sexta-Feira Santa):

«e) Nos nomes de festas e festividades: Natal, Páscoa, Ramadão, Todos os Santos.»

Mas reconheça-se a utilidade de as entidades que monitorizam a aplicação do AO deixarem claro se alargam ou não o critério acima apresentado às designações das festividades que incluam datas.

Pergunta:

Existe esta locução: «À eterna memória...»? Eu pergunto porque não achei esta locução com crase em minhas consultas. O correto seria dizer: «Em memória de...»?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

A expressão «à memória de...» não é propriamente um locução, é antes uma fórmula de um tipo de texto geralmente breve, a que se chama dedicatória. Trata-se de uma fórmula correta. Já a expressão «em memória de...» é uma expressão fixa que ocorre em frases e textos de tipos diversos; p. ex.: «fazei isto em memória de mim»; «fez-se um minuto de silêncio em memória dos soldados caídos no último conflito».

Pergunta:

Na frase: «Ficámos satisfeitos com o resultado», pedindo para indicar a classe de cada uma das palavras da frase, a palavra satisfeitos é um adjetivo, ou é o particípio passado de satisfazer?

Resposta:

Pode dizer-se que, no contexto apresentado, satisfeito é ainda o particípio passado do verbo satisfazer, mas esta é uma uma classificação pouco consensual. Com efeito, no contexto do ensino básico e secundário, embora me pareça aproveitável para uma atividade formativa, o caso em questão é capaz de levantar dificuldades a corretores de exames e provas sumativas.

Há autores que consideram tratar-se de um particípio passado, numa construção passiva que exprime estado resultante. Trata-se de uma passiva resultativa, conforme descrição e terminologia da Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 440). No entanto, a mesma gramática adverte (idem, p. 1478):

«A função predicativa em orações com os verbos ficar e estar é, sem dúvida, o contexto em que os particípios se aproximam mais dos adjetivos, sobretudo do ponto de vista semântico e lexical. Esse esbatimento de diferenças entre as duas classes reflete-se na oscilação das gramáticas relativamente ao estatuto de algumas dessas formas, bem como à terminologia usada para a descrever: nalguns casos, a sua origem participial é praticamente ignorada, sendo considerados adjetivos simples; quando são reconhecidos como particípios, são por vezes chamados "particípios adjetivais", outras vezes de "adjetivos de particípio" (ou "participiais"). [...]

«Do que ficou dito, podemos concluir que não existe uma separação nítida e estanque entre a classe dos adjetivos e a dos particípios passados. Antes, os particípios, dependendo do contexto em que ocorrem e também do seu sentido mais ou menos previsível a partir do verbo com que se relacionam, podem ocupar um determinado número de posições numa escala gradativa na qual um dos extremos corresponde ...

Pergunta:

É errado o uso de «por vez» no lugar de «de cada vez» na expressão «carregue um tijolo por vez»?

Resposta:

Parece mais corrente a locução «de cada vez», mas em textos brasileiros também ocorre «por vez» como expressão sinónima: «geralmente figuras conhecidas do grande público, apontavam, uma por vez, o personagem que lhes parecia ser o criminoso» (Marcos Rey, Os Crimes do Olho-de-Boi, 1995, in Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira).

Pergunta:

Gostaria de saber a etimologia da palavra gene. Vem de «nascer», mas também pode ser «raça», «geração»?

Obrigada.

Resposta:

A palavra gene não tem uma relação direta com o verbo nascer, nem mesmo por via do latim. Na verdade, foi criada em alemão, segundo o Dicionário Houaiss:

«al[emão] Gen (1909) ["unidade fundamental, física e funcional da hereditariedade, constituída pelo segmento de uma cadeia de ADN responsável por determinar a síntese de uma proteína"], voc[ábulo] criado [em alemão] por W. L. Johannsen (1857-1927, biólogo dinamarquês), com base no rad[ical] i[indo]-e[uropeu] *gen-/gne- "nascer, gerar", pelo fr[ancês] gène (1935) "idem"».

Ou seja, a palavra gene não significa «raça» nem «geração», mas, pelo referido radical indo-europeu *gen-/gne-, «nascer, gerar», relaciona-se com palavras que podem aludir a esses significados; por exemplo: género, «conjunto de seres ou objetos que possuem a mesma origem ou que se acham ligados pela similitude de uma ou mais particularidades» (Hoauiss), do latim genus, -eris, «nascimento, descendência, origem; raça, tronco; descendente, rebento, filho», derivado do grego génos, -eos, com o mesmo significado; geração, «ato de gerar», «descendência», «pessoas que têm a mesma idade», do «lat[im] generatio, onis, "geração, reprodução (das espécies); raça, família, genealogia, linhagem"» (idem). Não tendo derivado do radical de nascer, gene tem, no entanto, uma relação etimológica indireta com o étimo do verbo português, isto é, como o verbo latino nascor, que teria uma forma mais antiga, *gnascor (não atestado), cujo radical remonta à raiz indo-europeia *gen/gne- (idem, s. v. gen-).