Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a diferença entre troço e trecho (por ex., «trecho de rio» ou «troço de rio»)?

Resposta:

No português corrente, e em relação à realidade em questão, pode dizer-se/escrever-se «trecho do rio» ou «troço do rio», como se atesta a seguir (manteve-se a ortografia original):

1 – «Duas grandes janelas por onde se perspectiva a Baixa e um largo trecho do rio» (Manuel Teixeira-Gomes, Gente Singular 1909, in Corpus do Português de Mike Davies e Michael Ferreira).

2 – «[...] o actual estado do troço da margem esquerda do Douro proporciona um impacte visual negativo [...]» (in Linguateca).

Note-se, porém, que trecho pode ser usado em relação a parte de um livro, possibilidade que está vedada a troço.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem se é correta a utilização do termo utência, no sentido de «contabilização» do número de utentes, por exemplo. Não encontro o significado da palavra em lado nenhum, mas a palavra surge em vários textos.

Muito obrigada.

Resposta:

Não encontro a palavra registada em dicionários gerais. Mas, como termo especializado, é correto no âmbito a que se refere, ou seja, só se aceita a respeito da contagem dos utentes de um certo equipamento:

«A utência ou utilização instantânea de um complexo desportivo é o número de utilizadores que estão num determinado momento nesse complexo desportivo» (definição disponível num documento da Direção Regional de Educação dos Açores).

Pergunta:

Podem dizer-me se a palavra "eco-hidrologia" deve ser escrita com ou sem hífen?

Obrigada.

Resposta:

Ao abrigo do novo acordo ortográfico, a grafia correta da palavra em questão é efetivamente eco-hidrologia. Os radicais de origem grega e latina seguem o critério aplicado aos prefixos antes de um segundo elemento começado por h, ou seja, coloca-se um hífen e mantém-se o h do segundo constutuinte: por exemplo, anti-histamínico (cf. Vocabulário Ortográfico Comum.

Pergunta:

[Pode usar-se] algures, com a preposição para?

Se usasse alhures, em vez de algures, [a frase não teria] preposição: «... levar alguém alhures.» Isto porque alhures já em si significa «para outro lugar», do latim aliorsum.

Concordais?

Resposta:

É correto dizer-se «levar alguém para algures». 

Sobre algures, parece-me relevante transcrever o comentário que Vasco Botelho de Amaral, no seu Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), dedica a este advérbio (mantenho a grafia original):

«Erro: "vi em algures". Correcto: vi algures, porque algures já por si quer dizer: em alguma parte. [...] Algures é ainda muito empregado. Noto, porém, o caso curioso de muita gente não reparar bem no significado deste advérbio. [...] Mas dirá agora algum Leitor que, assim como se antepõem outras preposições a algures (venho de algures, foi para algures), assim poderá empregar em algures. Todavia, convém que se repare que com onde se usam também preposições como de onde, para onde, etc., e, no entanto, onde dispensa o em, visto que todos dizemos onde, e não em onde [...].»

É, portanto, legítimo empregar as preposições depara com algures. Já menos claro se torna dizer «levar alguém a algures»; no entanto, considerando que se diz «levar alguém aonde ninguém foi», afigura-se aceitável uma sequência como «levar alguém a algures», embora, de forma intuitiva, considere que expressões como «levar alguém algures» ou «foi algures»  permitem a supressão da preposição a.

Quanto a alhures («noutro lugar»), usa-se efetivamente sem preposição quer com verbos estativos quer com com verbos de movimento:

1 – «Se não fossem eles, o...

Pergunta:

É possível ou correto conjugar o verbo ver como consta nas orações:

«vê-se-te saudável» ou «vê-se-te fraco!»

Desde já, agradeço.

 

Resposta:

Os usos que nos apresenta não ocorrem na língua portuguesa, porque o se é incompatível com o te que marca o objeto direto, como acontece nos exemplos em questão. Isto explica que também não se possa aceitar a seguinte sequência (o * indica frase incorreta):

1 – *Vê-se-o fraco/saudável.

Em lugar da construção com se, outras construções terão de ser empregadas:

2 – Veem-no fraco/saudável.

Sobre as restrições a construções como as exemplificads em 1, Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (2003, pág. 180), observa o seguinte:

«[...] A língua padrão rejeita combinação se o (e flexões) apesar de uns poucos exemplos na pena de literatos:

"Parece um rio quando se o vê escorrer mansamente por entre as terras próximas..." [LB.2, 49 apud SS. 6, n.º 198, 268].»