Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Diz-se «página trinta e um», ou «página trinta e uma»?

Resposta:

Com o numeral cardinal, não se faz concordância e deve dizer-se «página trinta e um», considerando-se que a expressão é elipse de «página (número) trinta e um». É isto que diz Celso Cunha na sua Gramática do Português Contemporâneo (Belo Horizonte, Editora Bernardo Alves, 1970, p. 197; mantém-se a grafia original):

«4.º Na enumeração de páginas e de fôlhas de um livro, assim como na de casas, apartamentos, quartos de hotel, cabines de navio, poltronas de casas de diversões e equivalentes empregam-se os CARDINAIS. Nestes casos sente-se a omissão da palavra número:

Página 3 (três)
[...]
Cabine 2 (dois)
[...]
Casa 31 (trinta e um) [...]

Se o numeral vier anteposto, usa-se o ordinal:

Terceira página
Oitava fôlha
Segunda cabine
Trigésima primeira casa [...].»

Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (37.ª edição, de 2009), entende que também é assim, embora apresente argumentação ligeiramente diferente:

«Na referência a páginas ou capítulos de livro, usam-se as preposições em ou a. Com em emprega-se a palavra página, folha ou capítulo no singular seguida do cardinal, se for superior a dez, podendo até aí usar-se o ordinal, anteposto ou posposto:

Na página 32 há um erro de revisão / na folha 32 / no capítulo 32
Na página dois faltou uma vírgula / na folha 2 / no capítulo dois
Na página segunda ou na segunda página / na folha segunda / no capítulo segundo

Com a preposição a, usa-se o substantivo no plural:

A páginas 12/A folhas 12

Note-se que se pode dizer "à página dois", "a páginas duas", "a páginas vinte e uma", "a páginas tantas", "na página dois", "na página vinte e um", "na página vigésima primeira". Em resumo: com página, no singular, o cardinal fica invariá...

Pergunta:

O termo "triliões" existe? E quanto vale, de facto, 1 trilião?

Como vejo escrito com sentidos diferentes  em Angola,  no Brasil e em Portugal...

Agradeço a ajuda.

Resposta:

A palavra trilião está registada nos dicionários e nos vocabulários ortográficos (por exemplo, no de Rebelo Gonçalves, de 1966 ou, mais recentemente, Vocabulário Ortográfico do Português). Contudo, o seu significado nem sempre é o mesmo nos diferentes países de língua portuguesa. No Brasil, tendo em conta que bilião ou a variante bilhão são empregadas no sentido de «mil milhões», um trilião (ou trilhão, na variante aí mais corrente)  é o mesmo que «mil biliões» – de forma mais clara, corresponde a 1012, isto é, um 1 seguido de 12 zeros. Em Portugal, em Angola e noutros países, um bilião é «um milhão de milhões», e, portanto, «um trilião» deve ser interpretado como «um milhão de biliões» – ou seja, 1018 (1 seguido de 18 zeros; ver Norma Portuguesa 18: 2006, sobre nomenclatura dos grandes números).

Historicamente, o contraste existente entre o uso brasileiro e o dos outros países de língua portuguesa — escala curta e escala longa, respetivamente — tem que ver com o facto de a chamada "regra dos 6N" não ter sido seguida pelo Brasil, como regista o Dicionário Houaiss, 2001:

«regra 6 regra, unanimemente adotada pelos Estados-membros para o Sistema Internacional de Pesos e Medidas na IX Conferência Internacional de Pesos e Medidas em Paris (1949), de que o Brasil faz parte, se...

Pergunta:

Na zona centro do país, o verbo ir é regido pela preposição a – ex.: «vamos a ver se consigo finalizar a tarefa», ou «meninos, vamos a comer!» , em vez de «vamos ver se consigo...»  e «meninos, vamos comer!».

Está  correto?

Agradecia um esclarecimento.

Resposta:

A construção em apreço está correta, mas não é específica de um falar regional. Na verdade, pertence ao português em geral e não significa exatamente o mesmo que «ir» + infinitivo.

«Ir a» + infinitivo pode ter os seguintes valores:

a) «vamos a...»: usa-se «para incitar uma ação ou uma mudança de ação» (ver ir no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa); exemplos: «vamos ao que interessa», «vamos a isso», «vamos ao trabalho» – e podemos aqui juntar o uso com infinitivo, ou seja, «vamos a ver»;

b) «ia a» + infinitivo: «a criança ia a dormir ao colo da mãe».

O uso descrito em b), com o verbo no pretérito imperfeito do indicativo, é também referido no Dicionário de Verbos e Regimes (1947), do gramático brasileiro Francisco Fernandes, que observa: «Às vezes costuma-se introduzir a preposição a entre o verbo ir e o infinitivo: "Ia a sair, quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que lhe escrevesse duas linhas".»

Pergunta:

Como devemos escrever em português o nome dos mercados cobertos tipicamente árabes: "souk", "souq", ou "suque"? E como pluralizar a palavra?

[...] [E]ncontrei no dicionário da Porto Editora o substantivo soco, com a seguinte definição: «Moçambique: mercado; feira; centro comercial», e com etimologia apontada ao suaíli soko. Será possível que estejam relacionados?

Um muito obrigado.

Resposta:

Tendo em conta a forma francesa souk e as inglesas souk, suk, sukh e suq, todas elas grafias estranhas ao português, pode criar-se suque, cujo plural será suques. Quanto a soco (homónima de soco, «murro»), confirmo que a palavra se regista como o mesmo que «mercado; feira; centro comercial», em relação ao português de Moçambique. Deve, porém, ficar a ressalva de que as formas portuguesas aqui mencionadas ou são neológicas ou têm uso apenas numa variedade do português, sem tradição lexicográfica noutras variedades. O que aqui se apresenta são, portanto, formas legítimas sem uso efetivo que as enraíze de algum modo na língua.

É também de sublinhar que, em português, o árabe suq deu origem a açougue, cuja evolução semântica lhe impede a possibilidade de servir como equivalente das formas estrangeiras já mencionadas: açougue significa hoje «estabelecimento onde se vende carne», e, sendo assim, a palavra é usada no Brasil como o mesmo que talho.

Pergunta:

Uma vez que a palavra pixel entrou já no vocabulário português por via da informática e da digitalização e electrónica, é legítimo criar a palavra "pixelar" como verbo e conjugá-lo pelo menos nalgumas pessoas e no infinitivo – a acção de transformar em píxeis?

Resposta:

É possivel formar o verbo que se refere na pergunta, mas os dicionários já registam pixelizar, o que, por se tratar de forma legítima, dá primazia sobre pixelar.

O dicionário da Porto Editora regista pixelizar, que poderia ser sinónimo, mas que o dicionário define de outro modo: «tornar difícil perceber (parte de uma imagem), ampliando-a muito de forma a causar a sua distorção.» O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa também regista pixelizar e pixelização, atribuindo a este substantivo a seguinte aceção: «Visualização de quadrados numa imagem digital, para criar determinado efeito visual ou por causa de um aumento excessivo da imagem relativamente à sua resolução.» Dir-se-ia, portanto, que o Dicionário Priberam legitima pixelizar como o verbo que a consulente procura. Refira-se que pixelar pode eventualmente ocorrer em português por influência do espanhol, língua em que também existe forma verbal igual, pixelar (igualmente se regista pixelear). Apesar do estreito parentesco entre o português e o espanhol, até é plausível que o pixelar português se tenha formado autonomamente. Mesmo assim, se já temos pixelizar, que está bem formada e é, portanto, legítima, parece necessário tomar em atenção o facto, dando prioridade à forma já registada.