Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber a subclasse do nome grupo. Tratando-se de um conjunto indiferenciado, é, na minha opinião, um nome comum. Contudo, algumas pessoas consideram-no um nome comum coletivo.

Obrigada.

Resposta:

Não é descabido classificar grupo como nome coletivo, apesar de a sua aplicação referencial ser suscetível de ser pouco ou nada diferenciada.

O substantivo grupo é classificado como substantivo coletivo pelo Dicionário Houaiss. A palavra é também assim classificada noutras fontes, a saber:

– Fernanda Carrilho, Dicionário de Nomes Coletivos (Lisboa, Publicações Europa-América, 2006): «pessoas ou coisas que constituem um todo»;

– Luiz Autuori Oswaldo Proença Gomes, Nos Garimpos da Linguagem, Livraria São José, 1959, pág. 142: «grupo – conjunto de objetos, de pessoas.»

Noutra perspetiva, também João Andrade Peres e Telmo Móia, em Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 1995, págs. 476/477), se referem a grupo, integrando a palavra na discussão da concordância com estruturas de quantificação complexa (mantenho a ortografia usada na fonte consultada):

«[...] [F]ormas como grupo e conjunto [...] funcionam de modo subsidiário na definição de entidades grupais. Trata-se de expressões que por si só não referem objectos, mas que, em combinação com nomes – como em grupo de estudantes ou conjunto de quadros – permitem referir colecções de objectos, sem as quantificarem. [...] [D]esigná-las-emos nomes de referência dependente

Esta passagem, não declarando que grupo é um nome (ou substantivo) coletivo, deixa, pelo menos, entender que o vocábulo se aplica a «coleções de objetos» e, sendo assim, pode ser visto como coletivo.

Pergunta:

Agradecendo uma vez mais o vosso incansável e meritório trabalho, pergunto se se deve escrever «assestar a luz na cara» ou «assestar a luz para a cara». Isto porque o verbo assestar pode significar apontar (apontar para...), mas a primeira expressão ouve-se com mais frequência. É um erro? Muito obrigado.

Resposta:

A regência de assestar – verbo transitivo direto e indireto, isto é, usado com complemento direto e complemento indireto ou oblíquo – pode ser construída com as duas preposições em questão e mesmo com outras:

a) «assestar alguma coisa para...»: «Os olhos, que à força de se assestarem para o céu, só cansados se podem baixar à terra» (Aquilino Ribeiro, Por Obra e Graça, 1939, citado pelo dicionário da Academia das Ciências de Lisboa – ACL);

b) «assestar em...:»: «Assestar a calúnia seus tiros contra alguém, ou em alguém» (dicionário de Morais, citado por Dicionário de Verbos e Regimes, de Francisco Fernandes);

c) «assestar alguma coisa contra...»: «Mandou assestar a artilharia contra as três companhias formadas em frente do forte» (Camilo Castelo Branco, Luta de Gigantes, citado pelo dicionário da ACL);

d) «assestar alguma coisa a...»: «Assesta o óculo de longa mira às brumas do horizonte» (Camilo Castelo Branco, Boémia do Espírito, citado pelo dicionário da ACL).

O verbo assestar pode ainda ser usado apenas como verbo transitivo direto: «assestar a luneta» (Francisco Fernandes, Dicionário de Verbos e Regimes).

Pergunta:

[Transcrevo uma frase]  de uma página do sítio Jogos da Santa Casa da Misericórdia:

«Sem si não seria possível. estamos de parabéns!»

Não me soa bem o uso daquele «SEM SI..»

Eu nunca nunca escreveria isso. Independentemente da correcção gramatical, é escrita pouco elegante. Sei que o pronome não se usa no Brasil nesta acepção.

O Ciberdúvidas tem alguma coisa sobre isso?

Obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista exclusivamente gramatical, a sequência «sem si» está correta no português de Portugal.

Trata-se do uso preposicionado do pronome pessoal correspondente ao tratamento formal ou distanciado do interlocutor, como se ilustra a seguir:

1 – Ernesto, sem si, isto não era possível.

Historicamente e ainda hoje, é uma forma reflexa de 3.ª pessoa que se usa com preposições, tal como acontece com as formas pronominais mim e ti:

«sem mim»
«sem ti»
«sem si»

A série continua nas restantes pessoas gramaticais, mas sem se distinguirem das formas usadas como sujeito:

«sem nós»
«sem vós»
«sem ele(s)/ sem ela(s)»

Apesar de, nas fontes consultadas para esta resposta, não se encontrarem comentários da tradição normativa que sejam desfavoráveis ao emprego de «sem si», pode admitir-se que haja quem considere que a aliteração não intencional, destituída de função estilística, do s – «sem si – é de evitar. Nesta perspetiva, existem construções em alternativa, cuja seleção se fará em função do contexto:

sem a sua participação, não seria possível
sem o seu interesse, não seria possível
sem contar consigo, não seria possível

No Ciberdúvidas, não se encontram respostas que foquem a expressão «sem si». Contudo, uma resposta de F. V. Peixoto da Fonseca atesta «sem ti», que, como acima se apontou, permite legitimar «sem si» do ponto de vista gramatical.

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma mais correta: «raça garrana», ou «raça garrano»?

Grata pela atenção.

Resposta:

A palavra garrano está dicionarizada como substantivo do género masculino, nas aceções de «cavalo robusto, de marca pequena» e «velhaco, patife» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Também se regista garrana, como substantivo do género feminino, com o significado de «égua robusta, pequena» (idem). No caso de «raça garrana», a palavra ocorre como adjetivo, emprego que não está previsto pelos dicionários consultados; contudo, é legítimo que assim aconteça, porque não é infrequente a conversão de substantivos em adjetivos, como mostra o exemplo de alazão, «que ou o que tem o pêlo cor de canela, com uma tonalidade simultaneamente castanha e avermelhada» (Dicionário Houaiss), que, em referência a cavalos, aparece nas duas situações: «o alazão» (substantivo); «o cavalo alazão» (adjetivo). Esta possibilidade é igualmente ilustrada por um título jornalístico: "Ajudas garantem sobrevivência da raça garrana até 2013". Pode, portanto, dizer-se «raça garrana», operando a necessária concordância de garrano com raça.

Pergunta:

Fiquei surpreendida por não encontrar no dicionário a palavra amola-tesouras. Neste caso, deve ser escrita sem hífen, tratando-se, não de uma palavra, mas de uma expressão?

Resposta:

A palavra amola-tesouras é correta e escreve-se com hífen.

É de facto surpreendente não encontrar o vocábulo amola-tesouras registado nos dicionários consultados – a saber: o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado; o dicionário da Porto Editora; o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; e o Dicionário Houaiss (edição brasileira de 2001). Saliente-se, porém, que algumas destas fontes acolhem amolador na aceção de «homem que, por ofício, geralmente ambulante, afia no rebolo [pequena mó que amola objetos cortantes] navalhas, tesouras, facas e instrumentos semelhantes» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). Mas a falta de registo dicionarístico de amola-tesouras, que tem o mesmo significado que amolador, não quer dizer que se trate de palavra incorreta; pelo contrário, estamos a falar de um vocábulo legítimo, conhecido por muitos portugueses, que ainda chamam assim os indivíduos que têm esta atividade.

Curiosamente, é preciso consultar o Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958), de Vasco Botelho de Amaral, para encontrar o registo de amolador, a par de uma variante mais extensa de amola-tesouras, com o seguinte comentário: «Amolador e amola-tesouras e navalhas [são] um dos casos de diversidade de nomeação de profissões [...].» Note-se que amola-tesouras se deve grafar com hífen, à semelhança de outros compostos de verbo e substantivo (guarda-redes, porta-luvas). No caso da expressão registada por Vasco Botelho...