Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de ser esclarecido quanto à correcta utilização das expressões «tomar medicação» e «fazer medicação», com apoio nalguns exemplos. São expressões sinonímicas?

Obrigado.

Resposta:

São efetivamente expressões praticamente sinónimas e corretas, que podem ocorrer em contextos como os seguintes:

1 – «Ainda não tinha começado a tomar a medicação que adormente» (Maria Velho da Costa, Missa in Albis, Lisboa, D. Quixote, 1988, pág. 235, citado pelo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).

2 – «Refere que já está assim há 3 anos, embora já tenha feito medicação para o problema em causa» (Manuel Maria Gameiro Dias, Intervenção em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica num Centro de Dia do Concelho de Oeiras, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa/Instituto de Ciências da Saúde, 2011, pág. 200).

Apesar da relação muito estreita entre significados, os exemplos sugerem que «tomar a medicação» é equivalente a «tomar medicamentos», enquanto «fazer a medicação» (ou «fazer medicação», porque é possível omitir o artigo definido, tornando genérico o valor da expressão) é «fazer um tratamento que inclui medicamentos» – a diferença é, portanto, mínima, mas fica aqui assinalada. Cabe observar que, no caso de «fazer a medicação», não é de excluir a analogia com outra expressão, «fazer o/um tratamento», até porque medicação  vem a ser o mesmo que «tratamento terapêutico» (cf. medicação no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

Pergunta:

Gostaria de saber se é correto dizer «autarquia local» ou se a expressão é redundante, pois, em meu entender, autarquia já tem um âmbito geográfico restrito a uma localidade.

Obrigado pelo vosso esclarecimento.

Resposta:

A palavra autarquia está já de tal maneira associada à administração local, que é legítimo pensar-se – como, aliás, o próprio consulente observa – que a expressão «autarquia local» se tornou redundante. Contudo, não se pode afirmar que «autarquia local» seja uma verdadeira redundância e que o seu uso esteja incorreto.

Por exemplo,  o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista «autarquia local», a par de autarquia sem adjetivação, constituindo os dois termos uma subentrada de autarquia, a que se atribui a aceção de «pessoa coletiva territorial, dotada de órgãos próprios e com autonomia, que visam a prossecução dos interesses comuns da população». No Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, autarquia tem vários significados, nem todos conotados com a noção de poder regional, mas, entre eles, conta-se o de «entidade administrativa com órgãos próprios e que actua com autonomia em relação ao poder central», ilustrando-se o respetivo uso com a expressão «autarquia local». Neste dois dicionários, portanto, «autarquia local» vem a ser um tipo de autarquia. Porém, o  dicionário da Porto Editora (em linha na Infopédia) já define autarquia apenas como gestão local, o que permite supor que juntar-lhe local corresponde a um pleonasmo: «1. entidade administrativa que prossegue os interesses de uma circunscrição do território nacional, através de órgãos próprios dotados de autonomia (em relação ao poder central), dentro dos limites da lei; 2. sistema económico de uma região que vive dos próprios recursos».

Não obstante, importa realçar que o uso da palavra autarquia não se reduzia – e ainda não s...

Pergunta:

Estou com algumas dúvidas na identificação de classe de palavras na expressão: «uns pares de centenas de pessoas» – nesta expressão, «centenas» é um quantificador? Ou «uns pares» é quantificador e «centenas» é um nome (coletivo)?!?

Agradeço a vossa atenção.

Resposta:

Os casos que apresenta correspondem a quantificadores numerais, mas de um tipo especial, que se pode denominar «numerais cardinais especiais».

Ambas as palavras – par e centena – são quantificadores numerais, de acordo com o Dicionário Terminológico (DT), que elenca os termos a utilizar no estudo da gramática, no contexto dos ensinos básico e secundário em Portugal. Contudo, trata-se de quantificadores numerais que não são abordados diretamente pelo DT, nem aqui aparecem listados. Várias gramáticas escolares também não os mencionam; não obstante, na Gramática de Português (Porto Editora, 2011), de Vasco Moreira e Hilário Pimenta, faz-se referência a dezena e centena como palavras tradicionalmente classificadas como numerais coletivos, embora seja de notar que esta fonte não abrange par na descrição.

Observe-se que, fora do âmbito do DT, a gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 368) inclui centena entre os numerais coletivos. Mesmo assim, é preciso recorrer a uma descrição mais exaustiva, como o da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 934/935), para verificar que é possível integrar par e centena num tipo de numerais que esta gramática denomina «numerais cardinais especiais», ao mesmo tempo que menciona outras classificações conhecidas – «numerais coletivos» e «nomes quantificacionais». A mesma fonte sublinha ainda que «alguns destes numerais funcionam como expressões alternativas dos nomes comuns correspondentes, denotando simplesmente um número, independentemente das entidades que fazem parte do domínio de quantificação: par (2) [...]»; e acrescenta que este ...

Pergunta:

Em que contexto e com que modo e tempo se introduz a locução «mesmo se»?

Resposta:

A locução «mesmo se» introduz orações adverbiais concessivas em construções com valor hipotético cujos verbos podem ocorrer nos seguintes tempos e modos:*

– na oração principal: presente («saímos») ou futuro do indicativo («sairemos») ou, ainda, auxiliar ir no presente do indicativo + infinitivo («vamos sair»); na oração concessiva: futuro do conjuntivo («chover»).

Exemplo: «Mesmo se chover, nós saímos/sairemos/vamos sair.»

A mesma locução figura igualmente em construções com valor contrafactual, isto é, em que o conteúdo da oração concessiva contraria a situação efetivamente verificada; em tal construção, os verbos ocorrem:

– na oração principal: o condicional composto («teria visto») ou mais-que-perfeito composto do indicativo («tinha visto»); na oração concessiva: o mais-que-perfeito do conjuntivo («tivesse chegado»).

Exemplo: «Ele não teria visto/tinha visto o espetáculo, mesmo se tivesse chegado a tempo.»

Fonte da informação e dos exemplos: M.ª Helena Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, 719/720).

Acrescente-se que o imperfeito do conjuntivo («chegasse«) é possível na oração subordinada, tal como acontece nas orações condicionais: «Ele não veria/via o espetáculo, mesmo se chegasse a tempo» (cf. construção condicional: «Ele não veria/via o espetáculo, se chegasse a tempo»).

* O caráter híbrido da construção com «mesmo se» permite incluí-la igualmente entre as orações concessivas. Na Gramática de Usos do Português (São Paulo,...

Pergunta:

Pergunto-vos se é correto e adequado elidir a conjunção se em períodos com o verbo no pretérito imperfeito do subjuntivo, como no exemplo em seguida:

«Tivéssemos acertado o relógio, não teríamos perdido o voo.»

Agradeço-vos antecipadamente vossa atenção.

Resposta:

No exemplo em questão, a primeira oração é uma oração adverbial condicional sem conjunção, estrutura que é correta e que está descrita tanto em gramáticas portuguesas como em gramáticas brasileiras.

Por exemplo, Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 507), referindo este tipo de construção como «orações justapostas de valor contextual adverbial», observa o seguinte (itálico no original):

«A justaposição pode, no nível do texto, apresentar [...] interpretações [...] condicionais: tenho o verbo no tempo passado (mais-que-perfeito do indicativo ou imperfeito do subjuntivo) anteposto ao sujeito:

Tivesse eu dinheiro, conheceria o mundo. [...].

Em tais casos, a segunda oração pode começar pela conjunção e:

Vencesse eu, e não me dariam o prêmio. [...].»

A frase em questão, que apresenta o mais-que-perfeito do conjuntivo na primeira oração justaposta, é portanto legítima, como legítimo é o condicional composto (futuro do pretérito composto) que ocorre na segunda oração justaposta.

Deve, no entanto, assinalar-se que, neste tipo de construção condicional, a oração que marca a condição costuma ter sujeito realizado («tivesse eu dinheiro...»), com inversão, isto é, com o sujeito a figurar depois do verbo. Mesmo assim, não é impossível atestar usos em que se omite o sujeito, como acontece num exemplo recolhido na Gramática da Língua Portuguesa (Editorial Caminho, 2003, pág. 730): «Trabalhasses pouco na Faculdade e terias/tinhas logo problemas.»