Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pergunto-vos se é correto e adequado elidir a conjunção se em períodos com o verbo no pretérito imperfeito do subjuntivo, como no exemplo em seguida:

«Tivéssemos acertado o relógio, não teríamos perdido o voo.»

Agradeço-vos antecipadamente vossa atenção.

Resposta:

No exemplo em questão, a primeira oração é uma oração adverbial condicional sem conjunção, estrutura que é correta e que está descrita tanto em gramáticas portuguesas como em gramáticas brasileiras.

Por exemplo, Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2002, pág. 507), referindo este tipo de construção como «orações justapostas de valor contextual adverbial», observa o seguinte (itálico no original):

«A justaposição pode, no nível do texto, apresentar [...] interpretações [...] condicionais: tenho o verbo no tempo passado (mais-que-perfeito do indicativo ou imperfeito do subjuntivo) anteposto ao sujeito:

Tivesse eu dinheiro, conheceria o mundo. [...].

Em tais casos, a segunda oração pode começar pela conjunção e:

Vencesse eu, e não me dariam o prêmio. [...].»

A frase em questão, que apresenta o mais-que-perfeito do conjuntivo na primeira oração justaposta, é portanto legítima, como legítimo é o condicional composto (futuro do pretérito composto) que ocorre na segunda oração justaposta.

Deve, no entanto, assinalar-se que, neste tipo de construção condicional, a oração que marca a condição costuma ter sujeito realizado («tivesse eu dinheiro...»), com inversão, isto é, com o sujeito a figurar depois do verbo. Mesmo assim, não é impossível atestar usos em que se omite o sujeito, como acontece num exemplo recolhido na Gramática da Língua Portuguesa (Editorial Caminho, 2003, pág. 730): «Trabalhasses pouco na Faculdade e terias/tinhas logo problemas.»

Pergunta:

Como saber que um nome é derivado de um verbo? Há alguma regra específica? Há nomes deverbais que selecionam complemento do nome. Por exemplo, na frase «a construção da ponte foi rápida», está presente um complemento do nome, «da ponte» , selecionado pelo nome construção. E na expressão «a morte do estrangeiro foi injusta», o segmento «do estrangeiro» é complemento do nome? Se sim, porquê? Morte é um nome deverbal? Ou trata-se de um modificador de nome restritivo?

Resposta:

Na expressão a «morte do estrangeiro», o sintagma «do estrangeiro» é complemento do nome morte. Neste caso, a formação da palavra e a sua relação morfológica com o verbo morrer podem explicar-se sobretudo numa perspetiva histórica, remontando ao latim ou até antes. Mesmo assim, numa perspetiva do funcionamento sincrónico do português contemporâneo, é legítimo considerar que ao nome morte se associa um grupo preposicional («morte do estrangeiro») cujo papel semântico é muito semelhante ao da expressão (argumento) que é sujeito do verbo correspondente, morrero estrangeiro morreu»).

A Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 1048/1049) assinala que se chamam «nomes eventivos» a todos os nomes que «representam situações que se localizam no espaço e no tempo», que "ocorrem" ou "acontecem"»; ou seja, existe um conjunto de verbos que tem como elementos mais típicos os nomes deverbais (os nomes que derivam de temas verbais), mas que pode integrar outros nomes, como observa a referida fonte:

«Para além dos nomes deverbais, há outros nomes que representam situações ou eventos localizados temporal e espacialmente; pense-se em substantivos como bodas (cf. o deverbal casamento), concerto, cortejo, doença, espetáculo, evento, férias, tempestade e até noite e dia. Alguns destes nomes podem ocorrer com expressões que correspondem semanticamente a argumentos (a adjuntos adverbiais): cf. as bodas do Pedro e da Lídia (comparar com o Pedro e a Lídia casaram-se) ou um ...

Pergunta:

Um aluno me perguntou o que significava «bicos de rouxinol» no texto de Vinicius de Morais «deram-me bicos de rouxinol para jantar».

Eu não sei o que significa.

Muito obrigada.

Resposta:

«Bicos de rouxinol» significa «comida ou prato delicado» e, em sentido mais lato, «mimos». São estas as aceções que se depreendem de uma ocorrência da expressão no livro O Homem (1887), do escritor brasileiro Aluísio Azevedo (1857-1913):

«Ele que lhe compre jóias; que se encarregue de vesti-la, de sustentá-la e de consolá-la. Tem obrigação disso; e, se não dispõe de meios, invente-os – trabalhe! Se não puder tratá-la a bicos de rouxinol, comam feijão com carne seca, que a senhora tem obrigação de contentar-se com o que ele lhe der!» (Aluísio de Azevedo, O Homem in Corpus do Português, coordenado por Mark Davies e Michael Ferreira)

No poema "Falso mendigo", de Vinicius de Moraes, a expressão contribui para a construção hiperbólica do sujeito poético como uma personagem caprichosa e centrada em si, em contraste com o âmbito doméstico e banal que é sugerido:

«[...] Liga para vovó Neném,
pede a ela uma idéia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar
tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir, pelo amor de Deus,me acordem
Não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme da vida. [...]»

Note-se, porém, que, no Brasil, a expressão, se teve alguma vez uso mais extenso, ...

Pergunta:

Na frase «independentemente de quem o escreveu, aprecio este livro», a expressão «de quem o escreveu» é complemento de advérbio?

Obrigado.

Resposta:

A sequência «de quem o escreveu» é efetivamente um complemento do advérbio. Os advérbios também podem ter complementos, o que traz o problema de, nessa eventualidade, poderem não ser claramente distinguíveis das preposições. Este aspeto é referido pela Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 1584):

«[...] [E]xiste uma afinidade estreita entre preposições e advérbios. Tipicamente, os advérbios distinguem-se das preposições pelo facto de não selecionarem um complemento, contrariamente às preposições, que precisam de uma expressão que lhes complete o sentido. [...] Existem, no entanto, alguns advérbios que, tal como as preposições, se podem combinar com complementos. [Contam-se] [...] cinco subclasses de advérbios que selecionam complementos (nos exemplos a seguir, sublinham-se os complementos): (i) alguns advérbios em -mente que preservam o complemento selecionado pelos adjetivos de que derivam (cf. paralelamente à avenida); (ii) advérbios como dentro, fora, perto, chamados advérbios relacionais, que se combinam com uma preposição, formando uma locução prepositiva (cf. fora da estação [...]); os advérbios mais, menos e tão/tanto, em construções comparativas (cf. o Pedro é mais alto do que a Maria); alguns advérbios avaliativos que podem ocorrer como predicadores selecionando um complemento oracional (cf. felizmente que a Maria já voltou); (v) alguns advérbios que funcionam como conjunções subordinativas adverbiais i. e., que selecionam complementos oracionais e formam juntamente com esses complementos uma oração subordinada adverbial (cf. [sempre...

Pergunta:

Qual o significado da expressão «flagrante delitro»?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se da dedicatória escrita por Fernando Pessoa (1888-1935) no verso de uma fotografia que ele ofereceu à namorada, Ofélia Queirós (1900-1991) – cf. "'Em Flagrante de Litro', ou uma Segunda História de Amor", no blogue O meu Pessoa, de Ricardo Belo de Morais. Na imagem, aparece o próprio poeta a beber álcool, no ambiente popular do depósito da casa Abel Pereira da Fonseca, situação não propriamente prestigiante, que inspira um trocadilho entre jocoso e irónico com uma expressão mais convencional, «flagrante delito», termo jurídico que significa «facto punível que é descoberto no próprio momento em que é cometido» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa). O substantivo delito surge assim deturpado como "delitro", forma que não existe a não ser como jogo verbal que permite incluir litro e ativar a associação desta palavra ao seu campo lexical, ou seja, aos vocábulos ligados ao consumo de bebidas alcoólicas, como aguardente, vinho, garrafa ou copo.

Cf.: Fernando Pessoa: 10 da...