Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Existe em português alguma maneira para saber quando os substantivos acabam em -ença ou em -ência? Para mim, como falante de espanhol, é um pouco complicado, porquanto em espanhol apenas existe o sufixo: -encia.

Obrigado.

Resposta:

Não há uma regra que permita prever com toda a segurança a ocorrência de -ença (ou -ança), de origem popular, em lugar de -ência (ou -ância), de origem erudita. Contudo, verifica-se que, geralmente, a adjetivos acabados pela sequência -ente correspondem nomes terminados em -ência (são muito menos os casos a que correspondem nomes com o outro sufixo: convalescente/convalescença; crente/crença; diferente/diferença; doente/doença; nascente/nascença; presente/presença)1. Além disso, nota-se que, na fase mais recente de evolução do idioma, -ência (com-ância) é mais produtivo na formação de palavras e, portanto, mais frequente, conforme se comenta no Dicionário Houaiss (desenvolveram-se as abreviaturas de uso menos generalizado):

«[-ência, sufixo] formador de substantivos abstratos oriundos de verbos outros que da 1.ª conjugação; como no caso de -ância e -ança, este é a forma culta paralela de -ença, que, a partir do Renascimento, se difunde de tal arte que de certo modo estanca a fecundidade de -ença: abnuência, abrangência, absorvência, abstergência, abstinência, acedência, acrescência, aderência etc.; numa relação de 455 palavras com esse -ência (já em explícita relação com verbos da língua, já em relação a formas latinas em que essa relação está obliterada, caso, p.ex., de excelência, magnificência, reverência), há sempre esse sufixo [...].»

Existem, assim, menos palavras formadas com o sufixo -ença do ...

A propósito de dicção, norma-padrão e regionalismos

Acerca de boa dicção e da pronúncia que esta pressupõe, recebeu o Ciberdúvidas um comentário de um consulente (ver resposta de José Mário Costa, no Correio de 20/11/2015), o qual considera que, por respeito ao público e credibilidade, o português usado na televisão e na rádio deve ser neutro e sem regionalismos; e acrescenta: «Este português neutro é artificial, ou seja, não pertence a nenhuma região, nem sequer à própria Lisboa nem a Coimbra.» (...)

Pergunta:

Como explicar de forma clara e inequívoca que alguns grupos adjetivais são complementos de nome e outros modificadores restritivos do nome? Por exemplo, na frase «a pesca baleeira está em declínio», o grupo adjetival é dado pela gramáticas como sendo um complemento do nome, e, na frase «os escritores portugueses são excelentes», o grupo adjetival tem função de modificador.

Porquê? São ambos adjetivos relacionais...

Obrigada

Resposta:

Um adjetivo relacional só marca um complemento do nome, se o nome a que se associa selecionar um complemento do nome.

Por exemplo, o nome pesca, como nome que se forma por derivação regressiva de pescar, mantém ("herda" do verbo, por assim dizer) um complemento que corresponde ao complemento direto de pescar («pescar baleias»). Sendo assim, o adjetivo relacional apresenta-se em condições de marcar o complemento do nome, conforme a seguinte equivalência: «pesca de/da baleia» = «pesca baleeira».

Pergunta:

Esta pergunta é mera curiosidade: por que razão histórica/linguística é que o e, como em «eu e tu», é pronunciado "i"?

Resposta:

É provável que, na língua da Idade Média, a conjunção e tenha correspondido a uma vogal menos fechada do que [i], como o é de ou o ê de . Era essa a hipótese defendida pelo filólogo português José Leite de Vasconcelos (1858-1841), conforme a seguir se transcreve (citado por José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, s. v. e; mantém-se a ortografia do original)1:

«[...] [A] conjunção portuguesa e soa hoje i, mas deve, em português antigo, ter tido o som de é ou ê;: cfr. ê em galego, é em espanhol antes de palavras que comecem por i, et em francês, e (et, ez, es, etc.) em provençal, e e ed em italiano. Suponho que temos um vestígio da antiga pronúncia portuguesa na familiar locução beirã "um tudenada entre dois pratos", que corresponde à espanhola "nada entre dos platos", que querem dizer "pouca cousa". Quanto a mim, "tudenada" corresponde a tud'e nada onde o e devia soar ê, pois só por ele se explica o e surdo de tudenada. A conjunção portuguesa outrora soava i sòmente antes de vogal (cfr. di ontem, por de ontem), mantendo-se a primitiva pronúncia (é, ê) antes de consoante (cfr. de ti); depois a pronúncia i generalizou-se a todos os casos, isto é: quer antes de vogal, quer também antes de consoante. Em tudenada perdera-se a consciência de que o era conjunção, porque esta expressão apareceu no espírito como se fosse palavra simples, em que o e tinha o valor de qualquer e interior, sem que houvesse motivo espacial para se mudar em i2

Pergunta:

Tenho algumas dúvidas sobre a formação do feminino do nome tigre. Já consultei algumas gramáticas e dicionários que apontam para «tigre fêmea» como sendo a forma correta (como é o caso da Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha). No entanto, em alguns casos, também se verifica a forma tigresa como sendo o feminino de tigre. Devo aceitar tigresa como feminino de tigre?

Resposta:

Pode aceitar-se a forma tigresa, mas deve ter-se em atenção que, até agora, ela é sobretudo registada pela lexicografia do Brasil – o que não quer dizer que o vocábulo tenha uso generalizado entre falantes brasileiros. Com efeito, há vários dicionários elaborados no Brasil (cf. Dicionário Houaiss, dicionário Aurélio XXI, Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, Dicionário Aulete Digital)2 que acolhem tigresa como feminino de tigre.  Porém, nos dicionários e vocabulários ortográficos3 elaborados em Portugal, a palavra nem sempre aparece; quando é registada, pode não ser acompanhada de qualquer marca de uso (caso do Vocabulário Ortográfico do Português e do dicionário Priberam) ou acontece ser classificada como brasileirismo (dicionário da Porto Editora e dicionário de José Pedro Machado). Tudo isto leva a crer que, em Portugal – e, depreende-se, nos outros países de língua portuguesa que, até aqui, se baseiam na norma lusitana contemporânea –, não se emprega tigresa4  como feminino de tigre e que, querendo especificar género, tigre-fêmea é a palavra que ocorre.

1 Observe-se que, no Dicionário de Usos do Português do Brasil (São Paulo, Ática, 2002), cujas atestações são retiradas de textos contemporâneos brasileiros, muitas vezes não literários, não consta a entrada tigresa, nem esta é forma contemplada no verbete correspondente a tigre. A ausência...