Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Podiam-me esclarecer como se deu a evolução da palavra ilha? Evoluiu, simplesmente de insŭla-, ou houve versões intermediárias? Por que o N latino se perdeu normalmente, mas o L não? E como foi parar lá o dígrafo lh?

Obrigado.

Resposta:

A palavra ilha não é resultado direto da evolução do latim ĪNSŬLA para o português.

Com efeito, os dicionários referem que o vocábulo terá origem noutro, de origem catalã – illa – o qual terá alcançado esta forma a partir do latim ĪNSŬLA. Diz o Dicionário Houaiss:

«[Do] laim insŭla, ae 'ilha, quarteirão cercado de ruas que o isolam do resto da cidade como o mar isola a ilha do resto das terras', por extensão [semântica] 'casa para alugar, ger[almente] uma pequena ilha pertencente a um mesmo proprietário que residia em seu centro', pelo catalão illa [...]

A mesma fonte acrescenta:

«[H]á a forma divergente "ínsua" (sXIII) mais consentânea com o étimo e documentada um século antes de ilha, mas o elemento inicial in-/i- faz supor que se trate de semicultismo; atribui-se à influência do espanhol e do catalão sobre o português a fixação da forma ilha e, nos derivados, uma equiparação dos radicais espanhol isl(a)- e português ilh(a)-.»

Sobre a palavra ilha, importa também saber o que se diz sobre a palavra correspondente no galego, no qual se escreve geralmente illa (há também quem escreva à portuguesa, ilha). Um linguista galego (Manuel Ferreiro, Gramática Histórica Galega, Edicións Laiovento, 1996, p. 165, n. 186), confirma a etimologia atribuída no Dicionário Houaiss:

«A forma illa (<ĪNSŬLA), seguramente importada do catalán, está especializada semanticamente ('do mar') fronte a insua ('do río').»

Quer isto dizer que a palavra chegou ao português (e ao galego) já com uma configuração...

Pergunta:

Começo por vos dar os parabéns pelo vosso trabalho!

Na frase «[o cão] aninhava-se a seu lado», qual a função sintática desempenhada pelo grupo preposicional «a seu lado»?

Resposta:

Agradecemos as suas palavras de apreço.

Trata-se de um complemento oblíquo. O verbo aninhar, usado pronominalmente (aninhar-se) e a significar «acomodar-se» e «esconder-se», seleciona um complemento oblíquo, conforme a descrição e classificação de Malaca Casteleiro, que, no seu Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007), apresenta os seguintes exemplos:

1 – Após, o jantar, o tio gosta de se aninhar no sofá.

2 – A casa aninha-se entre o arvoredo.

O facto de aninhar-se ter muitas vezes regência construída com a preposição em não impede que se usem outras preposições – como acontece em 2 – ou locuções prepositivas, como se verifica com «ao lado de» no caso em questão.

Pergunta:

Será que me sabem explicar de onde vem a expressão «mereces tudo e um par de botas»?

Um muito obrigada de antemão.

Resposta:

Conhecemos a expressão, mas desconhecemos as circunstâncias que lhe deram origem.

Nas fontes a que temos acesso, não encontramos a expressão «merecer tudo e um par de botas». Contudo, regista-se a expressão «par de botas» com o significado de «problema complicado» quer como entrada (ver Orlando Neves, Dicionário de Expressões Correntes, e Afonso Praça, Novo Dicionário de Calão; neste último, dá-se um exemplo: «não sei como hei de descalçar este par de botas»), quer como subentrada (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Além disso, «tudo e um par de botas» costuma ser locução interpretada como o mesmo que «tudo e o seu contrário», como se deixa explícito na seguinte passagem de um artigo de opinião:

1 – «[...] querem ter todos os direitos e privilégios dos funcionários públicos, mas ao mesmo tempo todas as prerrogativas de quem integra um órgão de soberania. E isso, ter tudo e o seu contrário (ou, usando a linguagem popular, "tudo e um par de botas"), é que não é admissível» (José Miguel Júdice, "Tudo e um par de botas", Público, 17/09/2005).

Contudo, há quem atribua outra intenção, como propõe o consultor Paulo J. S. Barata (comunicação pessoal), que assinala a variante «merecer tudo e mais um par de botas» e considera que a expressão significa  «tudo e mais alguma coisa» ou «tudo e o mais que for»/«tudo e mais que seja», funcionando «como uma espécie de nonsense hiperbólico, já que tudo não admite mais nada – é o tudo e mais algo de "irreal"». De certo modo ao encontro desta interpretação, o consultor Gonçalo Neves (comunicação pessoal) também dá o seu contributo e interroga-se sobre a possibi...

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da expressa popular «isso é boca para (pra) barulho».

Obrigado.

Resposta:

A expressão «boca para barulho» não parece ser muito antiga – pelo menos, os dicionários de expressões populares e gíria de que dispomos não a registam. Mas verifica-se que ocorre em comentários a blogues e em redes sociais - ao que parece, apenas usada por falantes de Portugal – no sentido de «provocação», como se depreende dos seguinte exemplo:

(i) «Esta é boca para barulho... mas se calhar mais vale ser dragão do que leão.»

Note-se que boca, tal como ocorre na expressão «mandar uma boca» – «comentar em voz alta; opinião foleira; aparte brejeiro» (definição de Afonso Praça, Novo Dicionário do Calão, Lisboa, Casa das Letras, 2005) –, significa «observação ou comentário». Deste modo, «(uma) boca para barulho» será «um comentário provocador com o qual se pretende gerar uma grande discussão».

Pergunta:

Gostava de saber se, na frase «não conseguiu fazer aquela revolta», em que a palavra revolta toma por significado «curva», é usada corretamente ou é apenas um regionalismo.

Resposta:

A palavra está correta e é um regionalismo. Note-se que, embora se trate de um regionalismo, não contraria ele a possibilidade de ser considerado correto. Pelo contrário, tal apenas significa que tem uso de âmbito regional, sem fazer parte do conhecimento lexical de todos os falantes do português.

Três dicionários – o de Cândido Figueiredo, na sua edição de 1913; o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, na edição de 1991, pelo Círculo de Leitores; e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001 – dizem ser proveniente do Minho. Nestas três fontes, a palavra é definida como o mesmo que volta ou «curva do rio».

É de assinalar que revolta, com este significado, faz parte do chamado património lexical comum ao português e ao galego, visto que o portal Tesouro do Léxico Patrimonial Galego e Português ilustra o emprego dessa forma na referida aceção ou em aceções afins com exemplos provenientes quer da Galiza quer de Portugal. O Dicionário da Real Academia Galega também acolhe revolta em aceção semelhante: «Cambio moi pronunciado na dirección dun camiño, estrada etc.». Finalmente, o Dicionário Estraviz define revolta de modo similar: «Volta ou curva de um rio ou caminho».