Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Não tenho dúvidas sobre as posições possíveis do pronome pessoal átono nas construções formadas por auxiliar finito e verbo principal no infinitivo. Há mesmo muitas respostas sobre o assunto.

Contudo, interessa-me saber se é coerente a justificativa para a norma idiossincrásica que sigo. Sei estarem em conformidade com o uso culto corrente as seguintes construções, transcritas da resposta do consultor Carlos Rocha à consulente Ana Magalhães, em 7 de novembro de 2018:

1. Vai/Pode conhecer-se muitos lugares.

2. Vai-se/Pode-se conhecer muitos lugares.

3. Vão/Podem conhecer-se muitos lugares.

4. Vão-se/Podem-se conhecer muitos lugares.

Sei também que se é pronome indeterminado em 1 e 2, mas apassivante em 3 e 4, estas consideradas preferíveis pela norma mais conservadora.

Vem, finalmente, a minha pergunta: a despeito de o uso corrente não fazer distinção entre as construções formadas por um auxiliar modal e as formadas por um não modal, não há alguma diferença entre elas, que tem implicações relevantes? Explico-me com exemplos.

Não se diria, normalmente, «Conhecer muitos lugares pode-se», mas a frase não é agramatical e poderia ser empregada para fins enfáticos, como em «Conhecer muitos lugares pode-se; o que não se pode é usar o desejo de conhecer muitos lugares como pretexto para justificar a falta de compromisso com os estudos». Portanto, «Conhecer muitos lugares» é sujeito, e, como o núcleo do sujeito é um verbo no infinitivo, a forma verbal finita mantém-se no singular: «pode-se». Trata-se, a meu ver, não de construção com sujeito indeterminado, mas sim de construção com sujeito determinado, cujo núcleo é um verbo no infinitivo que obriga à manutenção da forma verbal finita no singular.

Por ser construção com sujeito determinado é que entendo menos aceitável (sempre à luz do m...

Resposta:

O verbo poder, como dever, tem propriedades sintáticas que levam a considerá-lo como um semiauxiliar, e não exatamente como um auxiliar1.

Entre as características de poder como semiauxiliar, conta-se a de o infinitivo associado ter um funcionamento próximo de um domínio oracional. Se assim é, então, talvez se consiga explicar a deslocação e autonomia do domínio sintático do infinitivo, a gramaticalidade do se indeterminado e a impossibilidade da passiva sintética:

(1) Conhecer muitos lugares(,) pode-se.

(2) OK Conhecer muitos lugares, isso pode-se [fazer].

(3) *Conhecer muitos lugares, isso podem-se [fazer]

Em (1), admite-se que, na escrita, é fortemente aconselhável uma vírgula de forma a dar conta da deslocação do infinitivo associado ao modal poder, configurando assim um caso de topicalização.

Além disso, apresentam-se em (2) e (3) duas possibilidade de paráfrase: a primeira aponta, de algum modo, para a retoma globalmente apositiva de «conhecer muitos lugares» e para a ocorrência subentendida de fazer como pró-verbo, evidenciando que o verbo poder seleciona a estrutura de infinitivo ao modo de um oração («conhecer muitos lugares»); a segunda paráfrase é agramatical, a gramaticalidade da paráfrase anterior não é conciliável com a concordância de pode. Por outras palavras, em (1), a ocorrência de «pode-se» é elíptica.

Mesmo assim, aceitando a frase tal como se apresenta na pergunta – «Conhecer muitos lugares pode-se» –, é discutível que «conhecer muitos lugares» seja sujeito e «pode-se» configure um predicado, com se apassivante; portanto, poder não é verbo principal nem verbo transitivo direto que possibilite a leitura de se como partícula apassivadora. A tese de «conhecer muitos lugares» constituir sujeito não...

Pergunta:

Napoleão Mendes de Almeida, no verbete «Em» do seu Dicionário de questões vernáculas, doutrina:

«2. É também do francês formar locuções adverbiais com a preposição em seguida de adjetivo; são espúrias locuções como “em absoluto”, “em definitivo”, “em suspenso”, “em anexo”».

Insiste, portanto, em que digamos «Deixei tudo suspenso», em vez de «Deixei tudo em suspenso».

Duas páginas depois, porém, no verbete «Em duplicado», parece aceitar não só esta expressão, como ainda a análoga «Em separado».

Ora, não consigo enxergar a diferença entre, por exemplo, «em suspenso» e «em separado»!

Acaso não temos, em ambos os casos, particípios usados como adjetivos, precedidos da mesma preposição?

Peço que me esclareçam, por gentileza, qual fundamento teria o ilustre gramático para censurar as construções do primeiro tipo, e aceitar as do segundo. Isto é, quais razões de ordem gramatical distinguiriam um caso do outro.

Desde já, o meu muito obrigado e os meus efusivos cumprimentos pelo sempre ótimo trabalho!

Resposta:

São locuções que, embora tenham origem francesa, se impuseram por força do uso.

Estas locuções entraram facilmente na língua, porque já existia o mesmo padrão locucional – em + adjetivo/particípio passado –, como bem ilustram os casos de «em duplicado», «em separado» e até «em duas cores», que, aliás, também como assinala na sua questão, ocorrem sem censura no referido dicionário de Napoleão Mendes de Almeida.

Pergunta:

Qual a etimologia (origem) da palavra biruta?

A dúvida é sobre qual dos significados veio primeiro?

O meteorológico, «saco cônico, com a abertura mais larga presa a um aro e fixa a um mastro, e a outra, mais estreita, solta, que se enfuna quando o vento sopra, indicando, assim, a direção deste»?

Ou o sentido informal utilizado no Brasil, «relativo a ou indivíduo sem norte, sem opinião ou vontade firme, ou que se deixa influenciar; que é inquieto, de comportamento variável; amalucado»?

Antecipadamente agradecemos.

Resposta:

Não é clara a origem da palavra biruta, quer esta signifique «manga cónica que indica a direção do vento», quer seja sinónimo de maluco.

No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, considera-se que o vocábulo biruta, que recobre os dois significados atrás referidos, tem etimologia obscura, embora se indique a possibilidade de ter sido motivado como expressão de sonoridade expressiva. Contudo, em dicionários elaborados em Portugal1, atribui-se biruta ao francês biroute, que pode aplicar a uma manga cónica usada para indicar a direção do vento.

Independentemente da origem, é possível considerar que o uso de biruta na aceção de maluco se deva ao alargamento de significado de biruta, «manga cónica». Com efeito a irrequietude de quem é visto como maluco pode ser vista como o movimento de uma biruta, que se agita ao sabor do vento.

Regista-se também a forma homónima biruta, cujo significado, «apara de madeira», e origem – talvez do espanhol viruta, usado na mesma aceção – não terão nada que ver com biruta, «maluco».

1 Consultaram-se a Infopédia, o Dicionário Priberam e o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

A palavra de origem moçambicana maningue tem como sinónimo a palavra muito.

Procurei saber de que forma a palavra maningue pode ser utilizada, olhando para tal para a classe de palavras a que pertence. Nos dois dicionários que consultei, o da Infopédia e o da Academia, pude ver que se está perante um advérbio.

Para além de ser um indiscutivelmente um advérbio, maningue também pode ser utilizado, segundo o dicionário da Infopédia, como pronome indefinido. Já o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, considera, pelo contrário, que a outra classe de palavras a que pertence maningue é a dos determinantes indefinidos.

Posto isto, maningue é um pronome indefinido ou um determinante indefinido? Ou os dois? Será que podiam dar alguns exemplos?

Muito obrigado.

Resposta:

Nos dicionários aqui consultados, não há coincidência exata na informação relativa às classes de palavras a que maningue pertence, mas existe complementaridade.

Há consenso quanto a classificar este vocábulo como advérbio, com o significado de «muito»:

(1) maningue caro; faltar maningue (Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa)

Maningue também pode ocorrer como determinante indefinido, associado a um nome, no sentido de «muito(s), muita(s)» (ibidem):

(2) Beberam maningues cervejas.

Contudo, na Infopédia, maningue é também classificado como pronome indefinido.

Considerando conjuntamente os dois dicionários, conclui-se, portanto, que maningue pode ocorrer como advérbio, determinante indefinido e pronome indefinido.

Sobre um dicionário classificar maningue como determinante e outro o apresentar como pronome, diga-se também que não se deteta uma verdadeira divergência. Com efeito, em Portugal, numa terminologia gramatical mais antiga, sistematizada em 1967 (Nomenclatura Gramatical Portuguesa) e ainda na terminologia gramatical do Brasil, de 1959, não se fala em determinante, mas, sim, em pronome, quer apareça sozinho (pronome absoluto), quer surja associado a um nome (pronome adjunto).

Pergunta:

Tinha «a cisma» ou «o cisma»?

Resposta:

No sentido de «ato, processo de cismar (pensar insistentemente)», é nome do género feminino: «a cisma» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). É palavra que não deve ser confundida com cisma, um homónimo que significa «separação» e é nome do género masculino (ver resposta anterior aqui).

Cisma, no feminino, e cisma, no masculino, são, portanto, palavras diferentes, mas com a curiosidade de estarem relacionadas etimologicamente. Com efeito,  a palavra cisma, no género feminino, é um derivado não afixal do verbo cismar, que, por sua vez, vem da conversão de cisma, «separação», no género masculino. Na conversão deste último nome em verbo, operou-se uma mudança semântica que levou da noção de «separação» à de «pensar com preocupação». O nome do género masculino cisma é adaptação do latim eclesiástico schisma, um empréstimo do grego que nesta língua tinha a forma skhísma «separação, divisão», derivada do verbo também grego skhízō «separar, dividir, fender» (donde se desenvolveu o termo que deu origem ao vocábulo esquizofrenia).