Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao apresentar uma lista de palavras formadas pelo sufixo -ança (abastança, chegança, chibança, chupança, cobrança, etc), Houaiss (2009) cita "constança". Ao buscar esta entrada tanto em Houaiss (2009) como também no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (2009), não encontrei nenhum resultado. Em ambos, apenas a forma constância. Assim, uma pergunta advém: a forma "constança" é inexistente no léxico comum da língua portuguesa?

Resposta:

A forma Constança é, no português contemporâneo, um nome próprio de pessoa e um topónimo (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico, Livros Horizonte, 2003), e não um nome comum sinónimo ou variante de constância, «qualidade do que é constante» (cf. Dicionário Houaiss e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Pode, no entanto, encontrar-se essa forma, em correspondência com a forma latina constantia, numa obra do século XVIII – Indiculo (1716), de António Franco (1662-1732)*. É, portanto, legítimo concluir que constança é variante arcaica de constância.

* Na fonte aparece constanciae, ae, e não a forma correta em latim clássico, constantia, ae.

Pergunta:

Qual a origem da palavra jangada? Ameríndia (tupi), ou asiática (malaiala)?

Resposta:

Sobre o nome comum jangada, parece consensual a atribuição da sua origem ao malaiala, língua do grupo dravídico (ao qual pertence o tâmil), que se encontra especialmente concentrado no Sul da Índia. Transcreva-se, portanto, a nota etimológica que o Dicionário Houaiss (edição brasileira de 2001) dedica a este vocábulo:

«[do] malaiala cʰanggāᵈam, "balsa, dois barcos ligados para passagem nos rios", filiada ao sânscrito sánggaᵈ, "junção de dois objetos iguais; justaposição; contraposição"; segundo [Sebastião Rodolfo] Dalgado, a acepção "naire que guia ou guarda com o empenho da própria vida" explica-se por extensão de sentido "a ligação moral e indissolúvel de um indivíduo nobre, que empenha nisso a sua honra, a sua vida e até a sua família, e se faz amouco, se é necessário".»*

Outras fontes que apresentam etimologia igual ou semelhante: António Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (2.ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986); José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 4.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1987); Antenor Nascentes, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1955).

* Segundo a mesma fonte, nai...

Pergunta:

Gostaria de saber qual das duas frases está correta: «faz sentido», ou «tem sentido»? Será que me poderia esclarecer esta dúvida?

Muito obrigada desde já.

Resposta:

As duas expressões estão corretas e são sinónimas:

«fazer sentido»: «ter significado; ser compreensível, lógico» (Dicionário Houaiss)

«ter sentido»: «não ser descabido; ser aceitável, concebível» (idem).

Acrescente-se que a expressão «não faz sentido» ocorre muitas vezes no discurso argumentativo, embora como simples bordão que acaba por não ter nenhuma força argumentativa (ver Textos Relacionados).

Pergunta:

A palavra leitura é considerada palavra simples, ou complexa? Qual o seu processo de formação e a sua forma de base?

Resposta:

A palavra leitura é uma palavra complexa, analisável do seguinte modo: leit- + -ura. Note-se que o radical é semierudito, mantendo o t  do radical do particípio passado latino (lectu-) que lhe serve de base de derivação. Trata-se, portanto, de uma palavra complexa, cuja análise inclui aspetos diacrónicos, isto é, relacionados com a história da própria palavra, e, portanto, não faz parte dos casos mais típicos de derivação no português atual. No contexto do ensino não universitário, não constitui o melhor exemplo para quem se inicia no estudo da derivação (ver Textos Relacionados).

Pergunta:

Aquando da conclusão de um exercício de palavras cruzadas deparei-me com a entrada concubina. Qual o meu espanto, quando a resposta era amélia. Após uma breve pesquisa, não encontrei nenhuma referência a essa definição. Existe efectivamente o uso do substantivo amélia significando «concubina»?

Resposta:

Nas fontes a que tive acesso, não encontrei amélia com o mesmo significado que concubina, «mulher que vive maritalmente com homem, sem estar com ele casada» (Dicionário Houaiss), mas regista-se a palavra como brasileirismo do registo informal, com o significado de «mulher amorosa, passiva e serviçal» (idem; ver também Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Talvez esta aceção possa estender-se a situações de vida marital que a moral de antigamente reprovava, levando a identificá-las até com a prostituição. O certo é que não encontro atestações de tal uso.

Não obstante, não excluo a possibilidade de, no caso em questão, se identificar concubina com a personagem de Amélia, que faz parte do Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós (1845-1900), e que aparece associada a essa palavra, em referência ao estigma social da relação amorosa com um padre:

«Mas Amélia, agora, já não tinha aquela necessidade amorosa de contentar em tudo o senhor pároco. Acordara quase inteiramente daquele adormecimento estúpido da alma e do corpo, em que a lançara o primeiro abraço de Amaro. Vinha-lhe aparecendo distintamente a consciência pungente da sua culpa. Naqueles negrumes dum espírito beato e escravo, fazia-se um amanhecimento de razão. – O que era ela no fim? A concubina do senhor pároco» (in Corpus do Português).

P.S. (15/06/2016): Faltou dizer que amélia, como nome comum usado na aceção acima mencionada, terá origem no antropónimo Amélia, ou melh...