Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

De que região é originária a designação «pica no chão» para referir o arroz de cabidela?

Resposta:

O composto pica-no-chão1 é termo que se aplica à galinha ou ao frango ou ao galo criados no campo, que dão bicadas («pica») no chão para apanhar comida. Sendo assim, a expressão «arroz pica-no-chão», que é outra maneira de designar o arroz de cabidela, é uma forma abreviada desta outra expressão: «arroz de frango pica-no-chão».

Sobre a região da expressão, não foi possível uma identificação segura. Contudo, parece ser uma denominação particularmente frequente no Noroeste de Portugal (distritos de Porto, Braga e Viana do Castelo).

1 Não se trata de uma espécie ornitológica, mas, tendo em conta que denomina um animal, justifica-se o uso de hífenes neste composto constituído por verbo, preposição e nome. Ver Base XVI do Acordo Ortográfico de 1990, sobre locuções que incluem elementos de ligação.

2 Cabidela é geralmente um prato confecionado com «galinha cozida, aos pedaços, em molho preparado com o seu caldo, seu sangue avinagrado e um pouco de farinha de trigo» (Dicionário Houaiss). Em Portugal, é muito popular a versão que inclui arroz, o chamado «arroz de cabidela».

Pergunta:

Qual a origem e o contexto da palavra "Rossiona" ou "Rosseona" no séc. XVI em Portugal?

Resposta:

A forma Rossiona ocorre como topónimo na Colecçam de Documentos e Memórias da Academia Real de História (1725). Nesta obra, na secção intitulada "Catálogo histórico dos summos pontifices, cardeais, arcebispos, e bispos portuguezes que tiverão diocezes, ou titulos de igrejas, fóra de Portugal, e suas conquistas", regista-se Rossiona (pág. 325), com o seguinte comentário:

«ROSSIONA, EM Italiano se chama Rissano ou Resino. He na Esclavonia, e Cidade Episcopal, suffraganea ao Arcebispo de Ragusa, ou Rossia, que foy Arcebispado sogeito ao Patriarca de Constantinopla [...].»*

Esta Risano parece ser a atual Risan no litoral do Montenegro. Encontra-se também Risano como nome de um rio que corre nos arredores de Trieste, na fronteira da Itália com a Eslovénia; contudo, a referência que é feita na fonte indicada acima relaciona Rossiona com Ragusa, a atual Dubrovnik. Sabendo-se que Risano/Risan, com Ragusa, fez parte dos territórios dominados por Veneza entre os séculos XV e XVIII, na Dalmácia e mais a sul, conclui-se que Rossiona é muito provavelmente a atual Risan.

* Esclavónia, território da atual Croácia.

Pergunta:

O correto é «de um dia para outro», ou «de um dia para o outro»?

Resposta:

As fontes consultadas sugerem variação entre o uso brasileiro e o luso-africano.

No Brasil, aceita-se «de um dia para outro», no sentido de «de modo repentino; quando menos se esperar» (Dicionário Houaiss)*. Em Portugal (e supõe-se que em Angola ou Moçambique), diz-se geralmente «de um dia para o outro», nas aceções de «no dia seguinte a outro», «de repente, bruscamente» e «em pouquíssimo tempo, quando menos se espera», conforme regista o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (subentrada a dia).

* N. E. (atualização 4/06/2016) – O Dicionário Houaiss só regista «de um dia para outro» (como subentrada de dia), sem artigo definido. Apesar disso, observa o consultor Luciano Eduardo de Oliveira que, no Córpus do Português (de Mark Davies e Michael Ferreira), se encontram as duas opções para o Brasil, mas a variante com artigo definido tem maior frequência: 10 ocorrências sem o artigo e 22 ocorrências com o artigo. Os textos da Folha de São Paulo (consulta em 3/06/2016) reforçam a mesma tendência: 311 casos sem o artigo e 1066 com.

Pergunta:

Gostaria de saber o significado próprio e talvez o figurado (caso exista) da palavra boi-corneta. Desejaria outrossim saber se se trata de um brasileirismo. Tenho-a encontrado em alguns livros que já li, porém não sei o seu significado e, ao recorrer a dicionários como Aurélio e Houaiss em busca de esclarecimentos, não a achei consignada nesses que são os melhores léxicos da língua portuguesa no Brasil.

Obrigado.

Resposta:

A 1.ª edição (2001) do Dicionário Houaiss consigna boi-corneta como um regionalismo do Sul do Brasil, com os significados de «bovino a que falta um dos chifres ou que tem um deles aleijado» e, em sentido figurado e com uso pejorativo, «indivíduo intruso». Também o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (São Paulo, Editora da Sé, 2004) acolhe a palavra, atribuindo-lhe aceções semelhantes: «boi de um só chifre» e «pessoa indisciplinada e encrenqueira».

Não se julgue que este composto se acha apenas em dicionários elaborados no Brasil. Encontramo-lo num dicionário de autor português – José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa –, sem indicação de que o uso de boi-corneta se restrinja ao português do Brasil ou a algum dos seus dialetos. Já o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa classifica este vocábulo como brasileirismo, mas apenas quando se refere a um tipo de boi; no sentido de «indivíduo indisciplinado, rixoso», não parece constituir brasileirismo. No vocabulário ortográfico do filólogo português Rebelo Gonçalves (Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966), igualmente se regista boi-corneta, com o significado de «indivíduo rixoso»; a este registo junta-se a observação de que «boi corneta», sem hífen, é o animal a que falta um dos chifres ou que é aleijado de um deles.

Em conclusão, não se pode dizer que boi-corneta s...

Pergunta:

«Nem bem tinha recostado a cabeça no travesseiro e apanhado o controle remoto, o telefone toca: 

– Alô... 

– Dr. Cesário, é o senhor?»

Na primeira frase acima, está correto o emprego do verbo no presente do indicativo («toca»)?

Obrigado.

Resposta:

Relativamente à frase em questão, os juízos de aceitabilidade podem ser divergentes, porque os problemas que levanta a frase apresentada são não propriamente gramaticais.

No contexto didático e numa perspetiva muito rígida da congruência entre os tempos verbais, dir-se-á que a sequência está incorreta ou não se recomenda, porque na oração «o telefone toca» o verbo deveria estar no pretérito perfeito do indicativo – «... o telefone tocou» –, para assegurar a concatenação temporal do tempo da oração precedente, no mais-que-perfeito do indicativo. Recorde-se que, quando se define o mais-que-perfeito, se diz que este tempo do indicativo «indica uma ação anterior a outra já passada» (Dicionário Houaiss); p. ex.: em «o pai tinha partido para a guerra, quando ele nasceu» (cf. idem), a forma «nasceu» permite ancorar a referência temporal do mais-que-perfeito do indicativo «tinha nascido» (ou, na forma simples, nascera).

Mas, se, no caso em apreço, a forma toca, no presente do indicativo, é interpretável como um presente histórico em equivalência com o pretérito perfeito do indicativo («toca» = «tocou»), então, a coerência temporal entre as orações constitutivas da frase pode não ficar comprometida. E, se o presente histórico é equivalente ao pretérito perfeito, então é de prever que, numa série de orações, o presente histórico ocorra articulado ao mais-que-perfeito do indicativo, tal como o pretérito perfeito do indicativo. E parece que assim é, porque a (nossa) intuição gramatical não rejeita o exemplo em discussão.

Assinale-se, porém, que, para Celso Cunha e Lindley (Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 449) o presente histórico pode aparecer em orações coordenadas com outras que apresentam o pretérito perfeito do indicativo em situações que «não são de imitar»...