Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A expressão inglesa dog-whistle politics («política do apito do cão» – alusão ao som alto emitido por um apito, o qual só um cão consegue ouvir) é sobretudo usada nos EUA quando, na mensagem política, são empregados termos e conceitos aparentemente inócuos, mas potencialmente controversos, e que apenas uma porção (fação) do eleitorado compreende e identifica, deixando a maioria na ignorância ou com uma ideia muito diferente.

Por exemplo, a atual candidata à presidência dos EUA, Hillary Clinton, diz que o seu adversário, Donald Trump, sobrevive à custa dessa prática política, referindo ainda que a dog-whistle politics não é solução para os problemas da América, e muito menos do mundo.

Considerando que política do apito do cão não seria entendível, pois não vigora (ainda) na linguagem corrente (nos países de língua inglesa, quando começou a ser usada há cerca de uma década, careceu de explicação por parte dos meios de comunicação social), pergunto: seria aceitável traduzir-se por «política demagógica», «política da demagogia» ou «demagogice política», ou talvez outra expressão que pudessem sugerir?

Resposta:

As propostas de tradução do consulente parecem compatíveis com o sentido da expressão inglesa, embora percam o pitoresco metafórico associado. Podem com certeza procurar-se outras soluções: por exemplo,  juntar o adjetivo encapotado e criar «demagogia encapotada» ou «política demagógica encapotada». Para o espanhol, há quem proponha política para entendidos, expressão que, em português, não obstante ter a mesma forma e o mesmo significado, acaba por não coincidir com a locução inglesa. Em francês, encontra-se como equivalente «langage politique codé», o que pode sugerir em português «linguagem política codificada» ou «linguagem política em código», que se afiguram como equivalentes adequados de dog-whistle politics.

Cf. 8 palavras  que os ingleses nos roubaram

Pergunta:

Qual é a etimologia do nome Carmona?

Resposta:

O apelido Carmona parece ter origem no topónimo andaluz Carmona (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico, 2003). Segundo o Dicionário das Famílias Portuguesas (Quetzal Editores, 2010), de D. Luiz de Lencastre e Tavora, este apelido terá sido adotado por uma família do ramo dos Andrades (com origens no norte da Galiza). No entanto, J. Leite Vasconcelos, na sua Antroponímia Portuguesa (Lisboa, Imprensa Nacional, 1928, pág. 298), apoiando-se noutro autor (Brancaamp, Armaria...), observa que não há registo deste apelido antes do século XIX. Quanto ao topónimo Carmona, José Pedro Machado refere que tem origem pré-romana (embora nada diga sobre a possibilidade de uma etimologia exata) e que os Romanos o adaptaram ao latim como Carmōna (ou Carmo), para depois os árabes o usarem como qarmōna. Em castelhano, a forma é Carmona, que passou ao português praticamente sem alteração.

Pergunta:

Enquanto estudava História, reparei numa frase curiosa que figurava no manual, mas que não sei se está de acordo com a sintaxe do português europeu. Transcrevo apenas o essencial:

«... confiscação de patentes, como o caso da da aspirina.»

Conforme se pode ver, esta ocorrência da contração da preposição é estranha, embora desconheça o grau de similitude com a seguinte reformulação:

«Confiscação de patentes, entre as quais a da aspirina.»

Se, com efeito, o primeiro segmento for agramatical, gostaria de saber por que motivo, então, se pode censurar a coocorrência da contração, mas não a de «...a (patente) da aspirina» (reformulação).

Obrigado.

Resposta:

A sequência «da da» é gramatical e marca uma elipse, isto é, uma construção em que se subentende uma palavra ou um grupo de palavras:

1. «... confiscação de patentes, como o caso da (patente) da aspirina.»

Em 1, a primeira ocorrência de da, que é a contração da preposição de com o uso pronominal demonstrativo do artigo definido1 a (portanto, no sentido de aquela: «a que é da aspirina» = «aquela que é da aspirina; cf. Textos Relacionados), está associada à omissão (elipse) de patente. A sequência está, portanto, correta gramaticalmente.

Outra coisa é saber se estilisticamente ela se recomenda. Atendendo ao preceito de evitar repetições na mesma frase, sempre que possível, para mais quando as palavras repetidas estão muito próximas, é preferível não haver esse encontro e dar formulação diferente à sequência; por exemplo, a que propõe o consulente («Confiscação de patentes, entre as quais a da aspirina», que não significa exatamente o mesmo)2 ou ainda «... confiscação de patentes, sendo a da aspirina um caso».

1 N. E. (11/10/2016) – A resposta foi corrigida – onde se escrevia «uso demonstrativo do pronome pessoal a» passou a estar «uso pronominal demonstrativo do artigo definido a» – devido a um reparo do consulente João de Brito (Vila Real, Portugal), com o seguinte teor: «Os pronomes não estão associados a omissões. Os pronomes são substituições de pleno direito. Pelo que esse a não passa de um determinante: … como o caso "de a patente de a aspirina".» Reforçamos esta observação, que agradecemos, com uma citação d...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma correta de uso: «tiro ao arco», ou «tiro com arco»?

Obrigada.

Resposta:

«Tiro ao arco» é a expressão mais tradicional, a avaliar pelo seu uso na tradução (cf. Linguee) ou por figurar, por exemplo, como equivalente de archery no Oxford Portuguese Dictionary (de John Whitlam e Lia Raitt). Trata-se, portanto, de um caso em que se usa a preposição a com valor instrumental na denominação de um desporto ou de qualquer atividade física, à semelhança de «saltar à corda»* (donde é legítimo deduzir «salto à corda»).  Noutros casos, porém, a preposição a tem um uso mais convencional, exprimindo a direção do movimento (cf. «tiro ao alvo», «tiro aos pratos» subentradas de tiro, no Dicionário Atual da Língua Portuguesa – Ensino Básico e Secundário, Edições ASA, 2002). A falta de sentido (ou transparência) que tem atualmente a preposição a com valor instrumental talvez explique que, querendo dar maior coerência lógico-semântica à linguagem, se empregue «tiro com arco», expressão consagrada pela respetiva federação desportiva de Portugal e como denominação da modalidade em apreço.

Em suma, a forma com tradição é «tiro ao arco». Contudo, a força institucional de certas entidades está a caminho de impor a expressão «tiro com arco», muito provavelmente por hipercorreção lógico-semântica.

* N. E. (27/09/2016) – No Brasil, «pular corda» (informação do consultor Luciano Eduardo de Oliveira).

Pergunta:

Relativamente a este termo, e uma vez que se encontra consagrada a pronúncia “necrópsia” na comunidade médica e que o Dicionário de Termos Médicos da Porto Editora aceita a grafia com acento, é incorreto grafar “necrópsia” em obras com o intuito de divulgação científica? E não sendo correto, existe alguma razão para se diferenciar de biópsia ou autópsia, ambos aceites com acento pelo Portal da Língua Portuguesa [Vocabulário Ortográfico do Português]?

Resposta:

O uso impôs a forma necrópsia para a palavra em questão.

Embora, entre os normativistas de meados do século XX, se considerasse mais correta necropsia, emprega-se hoje mais frequentemente a forma necrópsia, por analogia com autópsia, a qual, como observa o Dicionário Houaiss, tem motivado a oscilação entre -opsia e -ópsia. Note-se que dois dos vocabulários ortográficos atualizados – o Vocabulário Ortográfico do Português (no Portal da Língua) e o vocabulário ortográfico da Porto Editora – elaborados em Portugal registam só necropsia, muito embora neles figure biópsia e biopsia. Contudo, deve assinalar-se que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras apresenta duas formas: necropsia e necrópsia. O Dicionário de Termos Médicos da Porto Editora (em contradição com o vocabulário desta mesma editora) mais não faz, portanto, do que consagrar um uso frequente, pelo que é legítimo considerar que necrópsia é hoje uma forma aceitável. Mesmo convém realçar que esta conclusão pode ter de ser revista se alguma entidade a que se reconheça capacidade de intervenção normativa decidir fixar, por exemplo, a forma mais conservadora do ponto ...