Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estou aqui a estudar o Memorial do Convento [de José Saramago] e deparei-me com a expressão «porque pagamos com língua de palmo e a vida palmo a palmo».

Alguém poderia ter a gentileza de me ajudar a descodificar tais palavras?

Resposta:

Como já aqui se disse, «pagar com língua de palmo» é uma expressão popular que significa «saldar uma dívida com grande sacrifício» e «ser castigado com grande severidade e rigor» (ver também António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 2006). Já «palmo a palmo» significa «gradualmente, pouco a pouco, com grande esforço, com persistência» (idem, ibidem).

Como convém contextualizar o uso das expressões idiomáticas, transcreva-se a passagem onde elas figuram e se entendem melhor:

«[...] de mercadores falamos, que nunca mandam vir eles próprios as mercadorias das outras nações, antes se contentam com comprá-las aqui aos  estrangeiros que se forram da nossa simplicidade e forram com ela os cofres, comprando a preços que nem sabemos e vendendo a outros que sabemos bem de mais porque os pagamos com língua de palmo e a vida palmo a palmo.»

Trata-se de uma crítica do narrador de Memorial do Convento (capítulo VI) ao comportamento dos mercadores da Lisboa do século XVIII, que vendiam mercadorias de primeira necessidade a preços proibitivos («... pagamos com língua de palmo...»), a ponto de reduzirem a capacidade de subsistência da  população [«(pagamos com) a vida palmo a palmo»].

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra aquático pertence à família de palavras de água. Se sim, qual o processo de formação?

Obrigada.

Resposta:

Água e aquático pertencem à mesma família de palavras, mas, no contexto do funcionamento do português contemporâneo ou de outra fase anterior, não se considera que o segundo vocábulo seja formado a partir do primeiro.

Não obstante o adjetivo aquático ser da família de palavras de água, é necessário ter em conta que transitou do latim ao português por via erudita: aquatĭcus > aquático. É no âmbito do funcionamento do latim que o adjetivo aquatĭcus pode ser analisado como derivado, com base no  aquat- de aquātus, a, um, particípio passado do verbo aquāri («prover-se de água»); este, por sua vez, deriva de aqua, aquae, ou seja, «água».

Sem se impor o conhecimento da história de cada vocábulo para identificar uma família de palavras, a linguística contemporânea considera que é frequente um radical, um sufixo ou outros morfemas se apresentarem com mais de uma forma; será este, portanto, o caso da família de palavras de água, que inclui alguns membros cujo radical é aqu- (aquático, aquoso), e não agu- (aguadeiro). Chama-se a esta variação alomorfia e aos elementos que estão em variação alomorfes, como...

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem como se pronuncia o nome Lais. É de ressalvar que em Portugal o nome não apresenta qualquer acento (grave ou agudo, a letra i é simples).

Obrigada.

Resposta:

Em Portugal, o nome em questão pronuncia-se com o ditongo ai, conforme a grafia Lais, que é a que consta da lista de vocábulos admitidos e não admitidos como nomes nomes próprios do Instituto dos Registos e do Notariado. É também a forma tradicional, como se pode confirmar, pelo menos, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Academia das Ciências de Lisboa), de 1940, e no Vocabulário da Língua Portuguesa, de 1966 e da autoria de Rebelo Gonçalves. Contudo, no Brasil, a forma Laís e a variante Laiz estão registadas no Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa, que a Academia Brasileira de Letras publicou em 1999.

De acordo com a explicação de José Pedro Machado no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa,  a forma Laís, com acento, constitui adaptação da sua correspondente em francês, Laïs.  Ainda segundo o mesmo autor, este antropónimo feminino tem origem no «grego Lais ("despojo") pelo latim Lāis, nome de duas célebres cortesãs de Corinto».

Pergunta:

«Imaginemos, não o diálogo, que esse já aí ficou, mas os homens que o sustentaram, estão ali frente a frente como se se pudessem ver, que neste caso nem é impossível, basta que a memória de cada um deles faça emergir da deslumbrante brancura do mundo a boca que está articulando as palavras,...» José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, pág. 180

Gostaria muito que me dissessem se o que da proposição «que neste caso nem é impossível» no texto de Saramago faz parte da locução o que, e ipso facto, equivale a isto, e essa mesma construção poderia ser vista como relativa apositiva, ou, se se trata de um que causal segundo pensa o gramático brasileiro Napoleão Mendes de Almeida.

Agradeço-vos, desde já, não só a minha resposta mas também o vosso trabalho monumental.

Muito obrigada!

Resposta:

A sequência «que neste caso nem é impossível» pode ter duas interpretações:

1. Se a palavra que tiver valor causal – isto é, se for interpretada como uma conjunção subordinativa causal, equivalente a porque –, a sequência é uma oração subordinada adverbial causal.

2. Se o pronome que for visto como o que, trata-se de uma oração subordinada adjetiva relativa que funciona como aposto (isto é, como informação extra) da frase precedente: «estão ali frente a frente como se se pudessem ver, (o) que neste caso nem é impossível» = «estão ali frente a frente como se se pudessem ver, e diga-se, aliás, que isso neste caso até nem é impossível».

Acerca da possibilidade referida em 2, convém deixar mais algumas observações acerca dos pronomes relativos o que e que bem como em relação às orações subordinadas adjetivas relativas que funcionam como aposto de frase. O uso destes pronomes tem certas condições de ocorrência, conforme se descreve na Gramática do Português (GP), ed. da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 2085/2086), que, classificando o que como locução pronominal relativa, considera:

«[o seu] uso mais típico é em orações relativas apositivas de frase, ou seja, com um antecedente de natureza oracional, como se ilustra em (45):

(45)  a. Estava a chover, o que nos causou muito ...

Pergunta:

Gostava de saber qual é a origem da palavra cravo (flor).

Muito obrigada pela vossa atenção.

O vosso trabalho é fantástico!

Resposta:

Como designação da flor do craveiro (Dianthus caryophyllus), o vocábulo cravo terá começado a ser usado nos finais do século XVI, em resultado do alargamento do significado de cravo, que até essa época podia ocorrer nos atuais sentidos de prego e cravo-da-índia (ou cravinho). Observe-se, porém, que não está totalmente esclarecida a etimologia exata da palavra em apreço.

Com efeito, José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Lisboa, Livros Horizonte, 1987), regista cravo também como nome de uma flor cuja origem lhe parece controversa, «sem sintomas de se esclarecer brevemente», muito embora se interrogue sobre a hipótese de haver uma relação com cravo, «prego». Tom mais assertivo tem a nota etimológica que o Dicionário Houaiss dedica a cravo (desenvolveram-se todas as abreviaturas):

«ao mesmo vocábulo cravo prendem-se, além dos sentidos metafóricos pelo formato 'calo, espinha, acne sebácea', os sentidos de 'flor/planta', de 'semente aromática da Índia'; cravo 'flor/planta', por sua vez, parece ser posterior a cravo 'especiaria' (inequivocamente documentado em Camões (1572, Lus. II, 4), vindo a fixar-se em forma distintiva como cravo-da-índia, a partir de quando cravo 'flor' se torna popular; Corominas[1], s.v. clavo, refere clavel como de 1555 para a especiaria e de 1582 para a flor, invocando o catalão clavell (1460) 'flor', "llamada así por su olor análogo al del clavell 'clavo de especia', accepción que a su vez procede del catalán antiguo clavell (s. XIII) 'clavo de clavar', por comparación de forma"[2]; n...