Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Com o novo acordo ortográfico (1990), «América do Norte» e «América do Sul» devem ter norte e sul em caixa alta ou baixa? Não encontro resposta nas referências à grafia de pontos cardeais no novo acordo.

Obrigada!

Resposta:

Trata-se de nomes próprios compostos, pelo que os elementos norte e sul se escrevem com maiúscula inicial, tal como acontece com os adjetivos que entram na formação de outros nomes próprios compostos: América do Norte e América do Sul – cf. Costa Rica, Arábia Saudita.

Os nomes próprios compostos (ou seja, nomes próprios formados por mais de uma palavra), quando correspondem a nomes de países, estados federados, regiões ou povoações, podem incluir os nomes dos pontos cardeais, neste caso, sempre com maiúscula inicial: Coreia do Norte, África do Sul, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Amadora Este* (nome de uma estação da rede de metro de Lisboa).

Trata-se, portanto, de um caso que não tem que ver com as regras de uso de maiúsculas e minúsculas iniciais que o acordo ortográfico em vigor aplica2 à escrita dos nomes dos pontos cardeais.

1 Geralmente, em topónimos em que se associa as coordenadas oeste e este, usa-se ocidental e oriental: Virgínia Ocidental (correspondente ao inglês West Virginia),

Pergunta:

Fundilhar é um verbo da família de fundura (nome)?

Obrigado.

Resposta:

Pela derivação e pela história, pode-se dizer que fundilho e o verbo derivado fundilhar são da mesma família de palavras de fundura. A estas palavras é comum o radical fund-, também constitutivo de fundo; com efeito, segundo o Dicionário Houaiss (2001):

fundilhar, «pôr fundilho em», resulta da conversão verbal de fundilho ou, como é mais usado, fundilhos, «parte das calças, ceroulas e cuecas que corresponde ao assento», nome formado por derivação, do radical fund- e do sufixo -ilho – embora não se exclua a hipótese de ter origem num empréstimo do castelhano, fondillos, com significado semelhante;

fundura, sinónimo de profundidade, deriva igualmente por sufixação: fund- + -ura.

No artigo que o Dicionário Houaiss dedica ao radical fund- pode ainda ler-se:

«antepositivo, do latim fundus, i (também fundus, us e fundus, eris) "fundo (solo, rio, mar, vaso, armário); fundo (da terra)", em contraste com sedes "construção, edifício; termo de direito, sinônimo de auctor (o que dá base, o que confirma ou ratifica)"; dos derivados ou cognatos latinos, com os vocábulos portugueses correlatos, ressaltam-se o verbo latino fundo, as, avi, atum, are "construir, fundar com fortaleza, assentar solidamente", fundamentum "base, fundamento", fundator, oris "fundador", fundatio, oni...

Pergunta:

[...] ]A]lgumas pessoas afirmam que a língua falada pelos habitantes da Índia é o hindi (e não indiano). Tanto quanto sei, o hindi é falado por cerca de 70% da população da Índia, mas tenho dúvidas se será mesmo este o nome que devemos referir à língua falada pelos Indianos.

Poderiam s.f.f.esclarecer-me?

Resposta:

O nome e adjetivo pátrio da República da Índia é indiano. Mas não se pode confundir indiano, termo identificador da nacionalidade, com o referente a uma língua generalizada a toda a Índia, porque neste país há várias línguas com estatuto oficial, tanto a nível nacional, quer para cada estado federado. Sendo assim, a língua com mais falantes é efetivamente a que se chama hindi, e é este idioma utilizado pelo governo federal, a par do inglês. Outras línguas com estatuto oficial são, por exemplo, o tâmil ou o marata, no sul e centro-oeste, respetivamente.

Em suma, a situação linguística da Índia não é como a portuguesa, em que português é o vocábulo que se aplica tanto à nacionalidade como à língua oficial. No caso da Índia, o nome pátrio é indiano, mas a principal língua oficial chama-se hindi, e não "indiano".

Pergunta:

Compreende-se que o verbo chover tenha as suas limitações com referência às conjugações nas diferentes pessoas. Todavia não o compreendo para o verbo aprazer. Quer o Priberam, quer a Porto Editora, registam apenas as terceiras pessoas do singular e do plural. Não estará correto, portanto, referir "apraz-me"? Qual a denominação para este tipo de verbos? Não é este verbo sempre reflexivo?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de um verbo defetivo (mais precisamente um verbo unipessoal), e o exemplo apresentado na pergunta está correto, pois confirma a defetividade do verbo, a qual tem fatores históricos.

Sendo apraz uma forma da 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo aprazer deve observar-se que a sequência «apraz-me», embora inclua um pronome átono, não configura a ocorrência de um verbo reflexivo. Na verdade, o verbo aprazer é transitivo indireto, isto é, seleciona um complemento indireto:

1. «Este casaco não apraz ao príncipe.»

A frase 1 pode ser alterada pelo processo de pronominalização do complemento indireto:

2. «Este casaco não lhe apraz.»

A frase 2 evidencia a possibilidade de o verbo em apreço ter um complemento indireto pronominalizável como lhe. Se o complemento se referir ao sujeito do enunciado, o pronome é me:

3. «Este casaco não me apraz.»

Nos exemplos 2 e 3, os pronomes átonos sublinhados não podem ser reflexos ( também se diz reflexivos), porque não têm a mesma referência que o sujeito das frases, ou seja, «o casaco».

Acrescente-se que nas frases acima o verbo aprazer pode passar ao plural, desde que se mantenha a 3.ª pessoa (não se aceitam, portanto, formas como "aprazo", "aprazes", "aprazemos", ou "aprazeis":

4. «Este casaco e aqueles sapatos não...

Pergunta:

Desde que me conheço que ouço os meus avós utilizar a expressão "insertado" ou "incertado" (nem sei bem qual a grafia correcta) quando se querem referir a um pacote que já foi aberto. Por exemplo: "Este pacote de bolachas está insertado". Não faço ideia se esta expressão é válida e qual a sua origem. Será que me podem ajudar?

Obrigada.

Resposta:

Os dicionários elaborados em Portugal registam encertar como um regionalismo, principalmente identificado com as regiões de Trás-os-Montes e das Beiras. Será sinónimo ou variante de encetar, cujo sentido genérico é «dar início a; principiar, começar». Mesmo que a variante seja historicamente uma deturpação, observa-se que encertar se especializou com significado de «partir ou separar uma parte de» e «comer ou gastar um pedaço de: encertar um pão» (cf. dicionário de Cândido de Figueiredo), muito embora encetar também possa ocorrer nesta aceção.

Encertar (ou encetar, em certos contextos) significa, portanto, «iniciar o consumo de qualquer coisa» (cf. A. M. Pires Cabral, Língua Charra. Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Âncora Editora, 2013). Sendo assim, um «pacote de bolachas encertado» designa um pacote que já foi aberto para começar o consumo do seu conteúdo, as bolachas.