Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual o termo correto (ou mais correto), fresco (português europeu) ou afresco (português brasileiro)?

Resposta:

Ambas as formas estão corretas e atestadas em dicionários portugueses e brasileiros. No entanto, nota-se que fresco se usa mais em Portugal, enquanto afresco conhece maior implantação no Brasil.

O termo afresco/fresco significa «género de pintura feita sobre reboco fresco e húmido, com tinta diluída em água de cal» (Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia). Trata-se de um empréstimo do italiano fresco, na aceção já mencionada, pelo que é de supor que fresco constitui um aportuguesamento direto do termo italiano, enquanto afresco parece resultar da análise como uma única palavra da locução italiana a fresco em expressões como dipingere a fresco ou da locução portuguesa homóloga na respetiva tradução «pintar a fresco» (cf. Dicionário de Italiano da Porto Editora, na Infopédia).

Quanto à história do uso destas formas, a consulta da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1935-1957), publicada em Portugal, sugere que por volta de meados do séc. XX afresco e fresco eram s...

Pergunta:

Qual a origem da expressão «ter um badagaio»?

Resposta:

São vários os dicionários que coincidem ao considerar que a palavra badagaio tem origem obscura. No entanto, o Dicionário Houaiss é um pouco mais eloquente: «origem controversa; pode ser criação fônica com fim expressivo ou alteração fônica ligada a vágado». Vágado, palavra pouco usada, que significa «vertigem», parece ter origem no castelhano antigo váguido, talvez um derivado de vago, no sentido de «vazio» (cf. Dicionário Houaiss) ou de vaguear (cf. Dicionário da Real Academia Espanhola).

Como se indica na pergunta, badagaio ocorre na expressão da gíria «ter um badagaio», mas é muito frequente em associação com dar («deu-lhe o badagaio»), num caso e noutro com o significado de «desmaiar» e «morrer». São expressões equivalentes «ter um chilique» e «ter um fanico» (cf. António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 2006).

Pergunta:

Agradeço o trabalho de vocês, com o qual ajudam a propagar o conhecimento.

Gostaria de perguntar a origem da palavra guardião. Pesquisei que ela teria origem do termo latino guardianus, do frâncico wardianus, latinização de wardon, «guardar, vigiar».

Procede esta informação?

Resposta:

A etimologia de guardião que parece ter mais aceitação na dicionarística é devedora do Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, de Joan Coromines e José Antonio Pascual, e encontra-se exposta no Dicionário Houaiss:

«latim medieval guardianus < *wardianus, romanização do acusativo gótico wardjan < warda "sentinela"; cp. italiano guardiano "que tem o encargo de vigiar" e espanhol guardián "idem", de mesma origem [...].»

No entanto, não é de excluir outra hipótese, a de a palavra portuguesa (e os seus cognatos noutras línguas românicas, entre elas, o castelhano) ter origem em guardianus, forma que o latim medieval deu a um empréstimo não do gótico (uma língua germânica), mas, sim, do frâncico (outra língua germânica), uma palavra que teria a forma *warding-. Este vocábulo faria parte da família do verbo frâncico *wardon, que de algum modo manteria a forma *wardon, «guardar», do protogermânico (cf. Online Etymology Dictionary). A palavra portuguesa (com a sua homóloga castelhana) poderá, portanto, remontar a uma palavra latina introduzida pela influência francesa e

Pergunta:

O Expresso de [3/09/2018] usa a expressão «regressa o forrobodó».

Eu contestei: «Lastimo mas diz-se FARROBODÓ. Vem de Joaquim Pedro Quintela, 1.º Conde de Farrobo. Era o nome dado às festas sumptuosas da sua Quinta das Laranjeiras, actual Zoo de Lisboa e palacete onde está o Teatro Thalia por ele construído.» Um amigo comentou: «Mas nos dicionários Diciopédia, Michaelis, Priberam e Linguee, assim como no Portal da Língua Portuguesa (ILTEC), está "forrobodó"...»

Provavelmente, digo eu, uma expressão do Brasil.

Qual será a correcta (admitindo serem ambas)?

Obrigado.

 

[N. E. – A pergunta mantém a ortografia anterior à norma atualmente em vigor, a do Acordo Ortográfico de 1990.]

Resposta:

A história dos registos da palavra em dicionários e vocabulários ortográficos parece favorecer a forma forrobodó, mas igualmente se acham entradas para farrobodó e farrabadó, por exemplo, na 10.ª edição do dicionário de Morais.1 É duvidoso que a forma farrobodó, como farrabadó, seja anterior a forrobodó, mas muito mais duvidoso é que qualquer uma destas formas se relacione com Farrobo, como pretendem quantos argumentam com uma história veiculada mais recentemente pelos media portugueses com certos contornos de lenda urbana.

Com efeito, a partir da consulta de uma muito útil cronologia disponibilizada pelo sítio DicionárioeGramática – na qual se arrolam os vários dicionários monolingues publicados desde o séc. XVIII –, é possível concluir que só na 1.ª edição, de 1899, do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo se acolhe a palavra em questão, escrita forrobodó e identificada como brasileirismo que significa «baile reles». Anos mais tarde, é também forrobodó a entrada que figura na 1.ª edição (1909) do Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa, de Gonçalves Viana.

É certo que a atestação é posterior à época em que se diz ter sido criado o vocábulo, com a forma farrabodó, em alusão a Joaquim Pedro Quintela (1801-1869), 1.º conde de Farrobo, conforme a tese aceite num ...

Pergunta:

Queria saber se na língua portuguesa existe a dupla pronominalização.

Eu sou hispanofalante e surgiu a dúvida porque em espanhol podemos dizer cómetelo (come=verbo; te=pronome; lo=pronome) e eu quis fazer a tradução mas não consegui.

Obrigada!

Resposta:

A estrutura espanhola em causa traduz-se em português muito simplesmente por um único pronome: «come-o» ou «come».

Em português, existe dupla pronominalização, mas geralmente em relação ao objeto direto e indireto:

(1) «Dei um livro ao João.» → «Dei-lho [lhe+o]»

Pode também ocorrer com verbos pronominais:

(2) «As portas abriram-se para mim.». = «Abriram-se-me as portas.»

No entanto, a dupla pronominalização com verbos transitivos que é característica do espanhol, em que ao pronome de objeto direto (-lo) se soma um pronome reflexo (te), não ocorre em português. Com efeito, enquanto em espanhol, a uma frase como «me bebí el zumo» corresponde «me lo bebí», em português nada disto acontece, a não que se junte um quantificador a marcar a noção de culminação que está associada ao pronome reflexo no caso espanhol: «bebi o vinho (todo)» → «bebi-o (todo)».

A este tipo de pronominalização típica do espanhol, a Nueva Gramática de la Lengua Española (Asociación de Academias de la Lengua Española, 2010) chama dativo aspetual, que define assim (idem, p. 683/684; tradução minha):

«O chamado DATIVO ASPETUAL parece-se com o dativo ético no seu valor fundamentalmente afetivo, mas diferencia-se dele pelo facto de, como os pronome reflexos, concordar em número e pessoa com o sujeito, DATIVO CONCORDADO: Ya me [1.ª pessoa do singular] leí [1.ª pessoa do singular] toda la prensa.1 Nos [1.ª pessoa plural] fumábamo...