Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sou brasileiro e fascinado por idiomas, e o português não fica longe desse fascínio apenas por ser minha língua materna. Muito pelo contrário! Adoro ouvir e aprender as diferenças entre as variantes da nossa língua: o dialeto europeu, os dialetos africanos, assim como os mil e um sotaques do dialeto brasileiro.

Mas enfim, sendo mais direto, ao ouvir o português de Portugal, tenho um pouco de dificuldade em entender exatamente como é pronunciado o ditongo EI (como em manteiga, beira, eira, maneira, feira, etc.), soando na maioria das vezes como /éi/, porém as vezes também me soando como /ai/ (como o ei é pronunciado no alemão, por exemplo). Eu já tinha essa dúvida há um tempo, mas decidi finalmente perguntar algo sobre após ouvir várias vezes a voz sintética do iPhone (em português de Portugal) pronunciar os dias da semana, onde a palavra feira me soa perfeitamente como “faira”.

Fato inegável é que, de maneira ou outra, é bem diferente do dialeto brasileiro, onde EI se pronuncia /êi/ ou em alguns casos, /ê/.

Mas, assim, o que devo concluir sobre a pronúncia portuguesa?

Resposta:

No português de Portugal padrão, o ditongo grafado ei soa aproximadamente como "âi", ou seja, o a é fechado, mais próximo do -a final de missa ou leva. Não se confunde com os sons associados a ai, pois é perfeitamente audível a diferença entre pares como sei  e sai, ou ceia e saia. Não se trata, portanto, do ditongo [aj], que em alemão, como bem diz o consulente, se representa por ei, como em frei («livre»), que se pronuncia "frai". Assim, feira, maneira e deixei soam, respetivamente, como "fâirâ", "mânâirâ" e "dâixâi" – em transcrição fonética, [fˈɐjɾɐ ], [mɐnˈɐjɾɐ], [dɐjʃˈɐj] (cf. Portal da Língua Portuguesa ou Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, disponível na Infopédia). Sugere-se a audição de palavras em que ei ocorra, por exemplo, nas páginas do sítio eletrónico Forvo.

Pergunta:

Eu era um dos muitos que pronunciavam a palavra Antioquia como "Antióquia": aliás, eu até colocava o acento.

Recentemente percebi que a sílaba tónica era o qui e não o o, mas no entanto uma dúvida persistiu:

Lê-se "AntiuQUÍa" [ɐ̃tiu'kiɐ], ou "AntióQUÍa" [ɐ̃tiɔ'kiɐ]? A segunda sílaba tónica é ti?

Muito obrigado!

Resposta:

O nome próprio Antioquia tem motivado o envio de algumas perguntas (ver Textos Relacionados) ao Ciberdúvidas, mas a agora feita aborda um tópico ainda não tratado aqui.

Como já aqui foi dito, em português, o nome da cidade turca é Antioquia, cuja sílaba tónica é qui, como em maquia. Quanto ao timbre da vogal correspondente ao grafema o, é ele o de um [u] átono, em consequência da regra do vocalismo átono do português europeu. O nome tem, portanto, a seguinte pronúncia: [ɐ̃tiu'kiɐ], no discurso pausado, ou, num registo de débito normal ou rápido, [ɐ̃tju'kiɐ], com formação de ditongo crescente – [ju] – em posição pré-tónica.

No português do Brasil, a referida vogal átona corresponderá geralmente a um o fechado: [ɐ̃tio'kiɐ] ou, com palatalização de [t] antes de [i] ou [j], [ɐ̃tʃio'kiɐ].

Pergunta:

Poder-se-ão considerar corretos estes dois termos (que são usados como referências ao conceito de bem-estar): "eudaimónico" e "eudemónico"?

Por exemplo, na Infopédia, não se encontra o termo "eudaimónico", mas apenas o termo "eudemónico".  Já uma pesquisa no Google pelo termo "eudaimónico" devolve 14100 resultados, ao passo que a pesquisa do termo "eudemónico" devolve menos 2800 resultados (i.e., 11300).

Resposta:

Recomendam-se as formas eudemonia, «sensação de bem-estar ou felicidade»1, e eudemónico, «relativo a eudemonia ou a eudemonismo»2, vocábulos registados quer no Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, quer no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras3. São palavras que encerram o mesmo radical que dois termos há mais tempo registados em dicionário – eudemonismo, « doutrina filosófica segundo a qual a moralidade consiste na procura da felicidade, tida como o bem supremo» (Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia), e eudemonista, «relativo ao eudemonismo ou seu partidário» (cf. idem).

O radical eudemon- tem a seguinte história, segundo o Dicionário Houaiss (2001):

«antepositivo, do grego eudaimonía,as 'felicidade', derivado de eudaímón 'de destino feliz'; ocorre já em vocábulos originalmente gregos, como eudemonia e eudemonismo (eudaimonismós), já em cultismos cunhados no século XX: eudêmone, eudemônico, eudemonista, eudemonística, eudemonístico, eudemonologia, eudemonológico, eudemonólogo

É de realçar que o ditongo grego ai passa a e em português, de acordo com o que constitui...

Pergunta:

Antes de mais, deixo o meu elogio a toda a equipa do Ciberdúvidas pelo brilhante trabalho que tem vindo a desenvolver. Seguidamente, o meu pedido de esclarecimento.

Na frase «O cavalo que andava costumado às escaramuças (....)» [ retirada de Contos Tradicionais do Povo Português, Teófilo Braga], qual é a função sintática do constituinte «às escaramuças»?

Agradeço antecipadamente a vossa resposta.

Resposta:

Agradecemos as suas palavras de apreço.

O constituinte «às escaramuças» é um complemento do adjetivo costumado, variante de acostumado e sinónimo de habituado. Tal como acostumado e habituado, pode ocorrer frequentemente como predicativo do sujeito, a construir regência com a preposição a:

(1) «Está tão costumado ao café que já nem lhe tira o sono!» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, 2001, s. v. costumado).

Assim como em  (1) «ao café» é complemento de «costumado», também «às escaramuças» é complemento do adjetivo na frase em questão.

Costumado pode também aparece como modificador do nome, também como variante de acostumado ou sinónimo de habitual:

(2) «No costumado dia do mês há de ter lugar a assembleia de sócios.» (idem, ibidem)

E, ainda à semelhança de acostumado, ocorre como nome, na aceção de «aquilo que é costume, usual»:

(3) «O costumado nas reuniões desta casa é ninguém se sentar à frente e preferirem os lugares lá para trás.» (idem, ibidem)

Pergunta:

Aqui na região onde vivo, Pernambuco, é muito comum as pessoas, principalmente do interior do Estado, pronunciarem as palavras vassoura, varrer, travesseiro, vestido, alavanca, etc. trocando-se a letra v pelo b. É notório também uso de arcaísmos como ''treição'' (traição), ''baladeira'' (estilingue), ''fruita'' [fruta], ''luita'' (luta), etc. É triste, pois muitas dessas pessoas, que são doutra geração, são tidas como ''arcaicas'' e sofrem algum preconceito.

Minha pergunta é a seguinte: em Portugal é corriqueira tal mudança na pronúncia ou uso de arcaísmos por parte da população? Sei que os daqui não têm esse sotaque à toa, creio que há uma raiz no outro lado do Atlântico.

Grato!

Resposta:

Os casos mencionados na pergunta encontram todos paralelo nos arcaísmos das grandes áreas dialetais de Portugal, em especial, nos chamados dialetos setentrionais portugueses. Trata-se de traços fonéticos e usos conhecidos e tolerados, mas alheios à norma-padrão, cuja constituição se deve em grande parte ao falar das chamadas classes cultas do eixo Lisboa-Coimbra (hoje, considera-se que o contributo lisboeta predomina). Assim:

– A realização da consoante grafada v como o som representado por b é típica do terço norte de Portugal.

– Treição, não sendo a forma padrão, encontra-se hoje esporadicamente nos dialetos portugueses, de norte a sul.

– Já baladeira (= estilingue, isto é, fisga em Portugal), no entanto, não parece ser típica dos dialetos portugueses.

– O ditongo ui em palavras como luita e fruita, variantes de luta e fruta, respetivamente, conserva-se sobretudo nos dialetos setentrionais.