Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É correto dizer «O homem de que te falei» / «O homem do que te falei», ou devo dizer exclusivamente «o homem do qual te falei»?

De igual maneira, posso usar indiferentemente as suas formas no seguinte caso, ou usar o que com preposição é incorreto/arcaico/extremamente formal?

«A pessoa com a qual trabalho.» / «A pessoa com a que trabalho.»

Agradeço muito a resposta.

Resposta:

Em português, as formas corretas são as seguintes (destacadas a negrito):

(1) «O homem de que falei.»

(2) «O homem do qual te falei.»*

Do mesmo modo, em relação à segunda frase em questão:

(3) «A pessoa com que trabalho.»

(4) «A pessoa com a qual trabalho.»*

Nestas construções não se empregam nem do/da que, nem com o/a que, ou seja, não é possível traduzir literalmente o castelhano «del/ de la que» ou «con el/la que».

Note-se que, em castelhano, existem os chamados relativos complexos formados pelo artigo definido e os relativos cual ou que (cf. Nueva Gramática de la Lengua Española – Manual, Real Academia Espanhola, 2010, pág. 837). Os relativos complexos em que participa cualel cual/la cual/lo cual/los cuales/las cuales – são na maioria facilmente transpostos em português como o qual/a qual/os quais/as quais. Contudo, os pronomes relativos complexos constituídos por queel que/la que/lo que/los que/las que –, em que el, la, lo, los e las são artigos definidos, não pronomes, não encontram correspondente exato em português (idem, ibidem). Com efeito, a língua portuguesa não permite formas como «a que» (em que a seria um artigo definido) depois de preposições e rejeita frases como *«a pessoa com a que trabalho» (o * indica agramaticalidade), cuja configuração correta é ...

Pergunta:

Tenho uma questão relacionada com as seguintes frases-exemplo: «Vê-se bem que o barco está à deriva»; «Isso faz-se muito bem»; «Conduz-se muito bem durante o dia». Qual a origem/lógica do uso do -se nos casos mencionados? Trata-se do uso de verbos reflexos (i.e. ver-se, fazer-se, conduzir-se)?

Confesso que a mim não me parece que seja o caso. Mas também não encontro uma explicação alternativa. Será que me podem elucidar sobre esta questão?

Obrigado.

Resposta:

O desenvolvimento do se reflexo como marca da voz passiva ou da indeterminação do sujeito é uma característica comum às línguas românicas, resultado de uma substituição bastante antiga, a de certas formas da conjugação passiva do verbo latino pelo uso do pronome reflexivo se no latim vulgar.

Assim, no latim, havia tempos que tinham formas sintéticas para a voz passiva. Por exemplo, para o português «sou amado», o latim tinha a forma amor; e para «era amado», havia a forma amabar. Em latim, a voz passiva tinha também formas analíticas para certos tempos: amatus sum significa «fui amado». Esta conjugação passiva foi substancialmente alterado no latim tardio e no latim vulgar; com efeito, toda a conjugação passiva passou a ter apenas forma analíticas: amatus sum passou a significar «sou amado», e amatus fui, «fui amado».

Porquê referir a estrutura da voz passiva em latim? Pela razão de a conjugação sintética permitir o uso da 3.ª pessoa em sentido indeterminado: amatur tanto podia significar «é amado» como «ama-se». Acontece que este uso da passiva sintética foi substituído – por um processo que ainda não está completamente esclarecido1 – por uma construção com o pronome reflexo: lauatur ~ se lauat (= «é lavado», «lava-se»). Nas línguas românicas, veio a prevalecer a construção com o pronome reflexo.

 

1 Leiam-se as primeiras páginas do artigo Construções com se. Mudança e var...

Pergunta:

Contractura muscular e cãibra. Estes dois termos são sinónimos? A contractura é mais abrangente do que cãibra? Sempre pensei que a palavra contractura fosse um termo usado pelo senso comum e não um termo médico/científico. Já fiz algumas pesquisas e não fiquei esclarecida.

Obrigada.

Resposta:

O termo cãibra denomina um tipo de contratura1.

Nos dicionários gerais, as definições das palavras cãibra e contratura abrangem o seu uso na linguagem médica, para denotar contrações dos músculos. Cite-se, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001) da Academia das Ciências de Lisboa (mantém-se a ortografia do original):

«cãibra, cambra [...]. Med[icina] Contracção espasmódica e dolorosa de certos músculos [...].»

«contractura [...] . 1 Med[icina] contracção prolongada e involuntária de um músculo ou de um grupo de músculos, acompanhada de rigidez. [...].»2

Note-se, porém, que, a rigor, a palavra cãibra é definível como «uma contratura brusca,  dolorosa e mais ou menos prolongada de um músculo, consequência de um desequilíbrio no seu metabolismo, por uma diminuição do aporte de oxigénio (por isso se faz "aquecimento" antes de exercício físico, para aumentar a quantidade de sangue que chega ao músculo), ou por alterações na concentração de alguns iões»3. Sublinhe-se ainda que «uma cãibra é uma contratura, mas nem todas as contraturas são cãibras (podem ter outra causas)» e que «contratura não é sinónimo de contracção muscular, pois esta é fisiológica, e aquel...

Pergunta:

Na explicação sobre os apelidos portugueses [resposta n.º 33455], li a invocação de uma tradição portuguesa que não vi fundamentada em sitio algum que, argumenta o articulista, manda colocar primeiro o(s) apelido(s) maternos e depois os paterno(s), no final. De facto, lá pelos anos 30 do século passado, houve uma lei que, contrariando, precisamente algumas tradições lusas impunha essa regra. Mas foi lei de curta duração.

Quem se dedicar, mesmo como amador, à genealogia verifica que tradicionalmente a utilização de apelidos em Portugal foi sempre muito arbitrária. Há irmãos que possuem apelidos diferentes: uns ficam com o apelido da mãe, outros com o apelido do pai (não raro as filhas ficavam com o apelido da mãe e os filhos com o do pai, mas não era imperativo e as excepções são muitas, o que até faz supor que são regras nalgumas famílias). Não raro se veem apelidos que se "suspendem" por algumas gerações e que depois vêm a ser "recuperados", bem como se transmitirem por via feminina e depois se transmitem por via masculina.

Também é de referir, pelo menos nalgumas zonas da Beira Baixa, a concordância de género entre o apelido e a pessoa que o utiliza. Assim, por exemplo, Leitão-Leitoa, Silveiro-Silveira, Carrasco-Carrasca, Lourenço-Lourença, etc. Registo, para ilustrar, um caso de uma pessoa, do sexo masculino, natural de Caria, Belmonte, que é Silveira, nascido no final do séc. XVII, a filha casa-se numa localidade onde se faz essa concordância de género, sendo, pois, natural que a filha e a neta, sejam Silveira, mas o trisneto passa a ser Silveiro e aí nasce esse apelido Silveiro. Porém, esta concordância de género terá já caído em desuso no século XX.

Há tradições que não "traditam", perdem-se, vão progressivamente caindo em desuso...

Resposta:

Agradeço o reparo e as observações feitas pelo consulente, a quais me permitiram juntar uma retificação e um comentário em nota à resposta em causa.

Gostaria, no entanto, de juntar algumas observações ao que já foi dito sobre este assunto:

– A obrigatoriedade de aos apelidos se seguirem os apelidos paternos ficou consignada, em Portugal, no Código do Registo Civil de 10 de abril de 1928 (art.º 213) e na versão deste código de 1932 (art.º 242) – cf. Nuno Gonçalo Monteiro, "Os nomes de família em Portugal: uma breve perspectiva histórica", Etnográfica, n.º 12(2), 2008, pp. 46. Esta norma não existia nem no Código Civil de 1867 nem no Código do Registo Civil de 1911; e, nas versões que se seguiram aos códigos de 1928 e 1932, desapareceu igualmente tal disposição.

– Se por tradição e tradicional se entende a existência de uma prática muito antiga de colocação dos apelidos maternos e paternos no nome completo, é verdade que não se pode dizer que tal ordem é tradicional. No entanto, não parece descabido falar no enraizamento desta ordem no registo dos nomes completos, pelo menos a partir dos anos 30 do século passado. A atestar que essa ordem ainda hoje é aceite – que, se quisermos, se "naturalizou" e se tornou tradição – é o que se lê na Gramática do Português, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2013 (pág. 1004; sublinhado meu): «[O nome completo] consiste de duas partes: o nome de batismo (também chamado

Pergunta:

Gostaria de saber se poderei considerar as palavras garagem e manada como sendo derivadas por sufixação?

Muito obrigada.

Resposta:

As palavras em questão não são derivadas. Para falar de derivação a propósito das palavras garagem e manada, seria preciso identificar as palavras que estão na base de derivação. Acontece que tal não é possível, porque se trata de empréstimos – garagem, do francês garage, e manada talvez do castelhano (cf. Dicionário Houaiss) – e, portanto, são unidades lexicais autónomas que não foram formadas em português.

Poderia objetar-se que nas palavras em questão são reconhecíveis sufixos,– -agem em garagem e -ada em manada –, pelo que seria legítimo considerá-las vocábulos derivados. Mesmo assim, os radicais isolados pela análise encontrariam dificuldades para encontrar as formas autónomas correspondentes: *gara não é uma palavra do português, e man- , de manada, não parece ter o mesmo significado que man- em manejar ou em manar. Diz-se, então que palavras como garagem e manada são palavras complexas não derivadas (ou não construídas), isto é, trata-se de palavras que «[...] não apresentam uma relação de derivadas com um lexema do português» (M. Graça Rio-Torto et al., Gramática Derivacional do Português, 2016, pág.  75).