Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Quarta-feira, 27/Mar/2019, RTP1, programa Joker. A dada altura surge a pergunta e as quatro hipóteses a considerar: «Ao que é relativo a S. Pedro do Sul chamamos… A- sulense B- sulano C- sulês D- sulino // E a resposta certa é… a B - sulano.»

No Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora) apuro que os vocábulos "sulense” e “sulês” não existem e sulino nos remete para sulista. Quanto a sulano: «adj. 1 relativo ou pertencente a S. Pedro do Sul, no distrito de Viseu, ou que é seu natural ou habitante; 2 designativo de uma raça bovina da região portuguesa de Lafões (Beira Alta) s.m. 1 vento que sopra do sul; 2 natural ou habitante de S. Pedro do Sul (De Sul, topónimo+ano).»

O Dicionário de Topónimos e Gentílicos de I. Xavier Fernandes e o Dicionário de Gentílicos e Topónimos do ILTEC, consultado no Portal da Língua Portuguesa, não mencionam o(s) gentílico(s) de S. Pedro do Sul. Encontrei sete obras/sítios que só consideram sulano como gentílico de S. Pedro do Sul, quatro que só consideram são-pedrense (entre os quais o Ciberdúvidas) e só um que considera os dois gentílicos (Infopédia – Porto Editora). Perante isto, recorro à vossa prestimosa ajuda.

Posso considerar com...

Resposta:

Além de sulano, o vocábulo são-pedrense é outra forma legítima do gentílico correspondente a São Pedro do Sul. O mesmo não se pode dizer da grafia "sampedrense", que, apesar de enraizada no uso, deveria ser substituída por sã-pedrense, mais coerente com os princípios das normas ortográficas dos últimos cem anos. 

A respeito de gentílicos derivados de topónimos que incluem nomes de santos (hagiotopónimos), o Tratado da Ortografia da Língua Portuguesa (1947, págs. 130-131), do filólogo português Rebelo Gonçalves (1907-1982)1, atribuía a São Brás (de Alportel) o gentílico são-brasense, e à variante toponímica Sã Brás, a forma mais popular sã-braseiro, cuja grafia se devia preferir a "sambraseiro". Tomando este caso por modelo, infere-se que a grafia "sampedrense" também não se recomenda e que sã-pedrense constitui a grafia mais adequada ao gentílico derivado de Sã Pedro, esta, por sua vez, variante de São Pedro, donde provém a forma são-pedrense. Este raciocínio encontra apoio no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), também de Rebelo Gonçalves, que regista sã-pedrense como variante de são-pedrense, deixando entender que estas duas palavras são os gentílicos relativos aos t...

Pergunta:

Em certas zonas do país usa-se em linguagem corrente expressões como «esqueceu-se-me», ou «fugiu-se-me», como por exemplo: «Esqueceu-se-me de comprar pão», em vez de «Esqueci-me de comprar pão». Em que conjugação / outra classificação gramatical é que estas formas se inserem, se nalguma?

Penso que uma conjugação reflexa seria  «Esqueci-me, esqueceste-te, esqueceu-se, ...». Se assim é, qual é a função do me no exemplo acima?

Obrigado!

Resposta:

As construções em causa têm uso, conforme o consulente atesta, mas, tal como se apresentam, dificilmente se aceitam no contexto da norma-padrão. Procuremos justificar este juízo:

1. É possível que certos falantes produzam  uma sequência «esqueceu-se-me de fazer alguma coisa», mas as formas tidas como corretas são «esqueceu-me comprar o pão» e «esqueceu-me de comprar o pão», embora esta última pareça menos apreciada pela escrita literária, conforme descreve a Nova Gramática do Português Contemporâneo (p. 522) de Celso Cunha e Lindley Cintra. A construção «alguma coisa esquecer a alguém » é uma construção alternativa a «alguém esquecer alguma coisa» e «alguém esquecer-se de alguma coisa» (no Brasil, também é possível «alguém esquecer de alguma coisa», apesar da censura normativa – cf. ibidem). Consiste em tratar o verbo esquecer como o verbo agradar, que se usa de acordo com o esquema «alguma coisa agradar a alguém»: deste modo, assim como se afirma «agradou-me comprar pão», também se diz «esqueceu-me comprar pão», sem criar problemas à análise gramatical convencional.

Note-se, porém, que a construção com preposição – «esquecer a alguém de alguma coisa» –, que parece impessoal, já é de aceitabilidade mais discutível, pela dificuldade de a analisar de maneira coerente, de acordo com as regras sintáticas da língua padronizada. É ainda mais difícil aceitar a construção em que esquecer  ocorre não só impessoalmente mas também como verbo reflexo, segundo o esquema «esquecer-se a alguém de...

Pergunta:

Devemos escrever «este nome é propício para esta criança», ou «este nome é propício a esta criança»? Qual a regência de propício, numa palavra?

Muito obrigado.

Resposta:

O adjetivo propício, que tem o significado geral de «que tem as características adequadas e necessárias para; bom, favorável» (Dicionário Houaiss), constrói regência com ambas as preposições, a e para.

O uso destas preposições parece ter distribuição complementar: a ocorre antes de nomes ou expressões nominais, e para introduz orações reduzidas de infinitivo – se considerarmos o exame das abonações recolhidos por Francisco Fernandes, para o seu Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos (São Paulo, Globo, 1995; sublinhado nosso):

(1) «Em matéria lexicográfica, de índole tão delicada e sobretudo tão propícia a controvérsias, errar é facílimo.» (Mário Barreto, Através do Dicionário e da Gramática)

(2) «Rui era o orador,e a oportunidade foi propícia para iniciar o ataque contra Saraiva.» (Luiz Viana Filho, A Vida de Rui Barbosa)

Nota-se, contudo, que a preposição para ocorre também antes de expressão nominal, associação q...

Pergunta:

No texto do Acordo Ortográfico de 1990, na sua Base I, ponto 2., especifica-se: "[a]s letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais: (...) b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados: Kwanza, Kuwait, kuwaitiano; Malawi, malawiano".

No entanto, na mesma Base I, mas no ponto 6. recomenda o Acordo "que os topónimos/topônimos de línguas estrangeiras se substituam, tanto quanto possível, por formas vernáculas, quando estas sejam antigas e ainda vivas em português ou quando entrem, ou possam entrar, no uso corrente. Exemplo: Anvers, substituído por Antuérpia; Cherbourg, por Cherburgo; Garonne, por Garona; Genève, por Genebra; Jutland, por Jutlândia; Milano, por Milão; München, por Muniche; Torino, por Turim; Zürich, por Zurique, etc."

Consultando o Vocabulário Toponímico do Vocabulário Ortográfico Comum, que vem aplicar as normas do novo acordo, encontramos nele única e exclusivamente a grafia Maláui.

Devemos interpretar que, por altura da preparação do acordo, esta forma (Maláui) não tinha entrado ainda no uso corrente e que é por isso que a mesma surge como exemplo no ponto 2. para um uso legítimo do "w"? Quão autoritária deve ser esta menção a "Malawi" como topónimo não adaptável (mas que na prática já o foi)? E como proceder com as seguintes formas normalizadas pelo VOC: Botsuana, Zimbábue, Burquina Fasso ou Seicheles, ou mesmo com o recente, Essuatíni?

Muito obrigado.

Resposta:

O texto do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) não impede que nomes como Kwanza, Kuwait, Malawi possam ser aportuguesados.

Da Base I, ponto 2 do AO 90 infere-se que, na época em que este texto normativo foi redigido, se usavam nomes de países com origem em ortografias estrangeiras, por exemplo, Malawi, cujo gentílico, malawaiano, mantinha o w, apesar de ser um derivado no contexto do português. Mas isto não parece significar que a menção de Malawi seja o mesmo que estipular que se trata de forma não adaptável.

Sendo assim, as formas Maláui, Botsuana, Zimbábue, Burquina Fasso, Seicheles ou Essuatíni (o novo nome do país que se chamava Suazilândia) são interpretáveis como a fixação de aportuguesamentos ao encontro da recomendação feita no ponto 6 da Base 1 do AO 90. Não podendo dizer-se que atualmente são de uso obrigatório, deve, no entanto, observar-se que são aportuguesamentos disponíveis e aconselhados, de tal maneira que foram adotados pelo Código de Redação do português para as instituições europeias. Esta fonte indica igualmente os gentílicos respetivos, derivados da base já aportuguesada: malauiano, botsuano,

Pergunta:

Deambulando no Dicionário Houaiss (2009), deparei com a fraseologia «ser burro de Vicente» com acepção de «ir de mal a pior».

Por acaso, vocês saberiam dizer alguma coisa de sua etimologia ou motivação idiomática?

Resposta:

Só conseguimos saber que a expressão já era conhecida no séc. XVI, como atesta a sua ocorrência na Comédia Eufrósina (1560), de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515/1525?–1585). Uma versão mais antiga é «cada feira val menos, como burro de Vicente», a qual talvez aluda a algum episódio da vida aldeã, conforme sugere Jean Lauand, no artigo "500 provérbios portugueses antigos – Educação moral, mentalidade e linguagem".