Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O meu apelido é Gameiro... e na minha família, que vive em Lisboa há três gerações, sempre pronunciámos o nosso apelido como não sendo uma palavra exdrúxula. Havia apenas dois telefones em Lisboa com este apelido.

Penso que pós-25 de Abril passou a haver mais famílias na cidade... como um cantor... e agora passei a ter o apelido oral de "gàmeiro", o que não é o meu apelido.

Gostava de saber qual a pronúncia correcta.

Com os meus melhores agradecimentos.

[N.E. – A consulente escreve correcta, conforme a antiga ortografia (a do Acordo Ortográfico de 1945). No quadro do Acordo Ortográfico de 1990, grafa-se correta.]

Resposta:

O apelido escreve-se Gameiro, mas há variantes de pronúncia.

É provável que Gameiro tenha origem num derivado de gamo, talvez pelo uso toponímico de gameiro, como alusão a «lugar gameiro», isto é, «lugar onde há gamos» (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, 2003)1. Sendo assim, a pronúncia mais previsível deste nome é com a fechado", tendo em conta que a vogal figura numa sílaba átona.

Note-se, porém, que, em matéria de nomes próprios, há certa margem de tolerância para com pronúncias que não correspondam ao padrão ou às regras de correspondência entre letras e sons. Deste modo, embora gameiro com a fechado pareça a pronúncia recomendável, não se justifica considerar que "gàmeiro"1 com a aberto átono constitui um claro erro.

Esclareça-se também que, em "Gàmeiro", ou seja, na variante com a aberto átono, esta vogal se mantém átona, sem afetar a prosódia do nome. Por outras palavras, mesmo que o nome seja pronunciado com a aberto – talvez por analogia com casos como os de Sameiro ou saveiro , que soam respetivamente "sàmeiro" e "sàveiro –, o nome em questão não passa a palavra exdrúxula. Pelo contrário, "gàmeiro" é sempre palavra grave, tal como a forma recomendada, "gameiro".

 

1 O apelido Gameiro

Pergunta:

A palavra «icástica» define um significado que pode ter dubiedade quando sugere opinião pessoal, ou seja, quando quero defender minha posição? Ou ela refere um significado único que não pode ser contraposto?

Resposta:

O adjetivo icástico (icástica no feminino) significa «que representa ou reproduz com exatidão e fidelidade (uma ideia, um objeto)» e «sem artifícios; natural, simples» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009). Não se confunde, portanto, com dúbio, que dá a base donde deriva o nome dubiedade; pelo contrário, é sinónimo de icónico, «que representa ou reproduz com exatidão e fidelidade» (idem, ibidem). Não se pense, porém, que a possibilidade de classificar alguma representação como icástica impede as ambiguidades ou dubiedades que possam eventualmente fazer parte de uma ideia ou de um objeto.

Acrescente-se que este adjetivo tem origem no grego eikastikós, , ón «relativo à apresentação de objetos, relativo à arte de conjecturar» (idem, ibidem).

Pergunta:

Gostaria de saber se a concordância verbal do verbo fazer, na terceira pessoa do singular, no impessoal, se utiliza para referir estados atmosféricos (ex. «Faz calor»), ou se apenas se utiliza para referir o tempo decorrido (Ex. «Faz dez anos»), tendo em conta as regras do português europeu e a diferença com o português do Brasil.

Obrigada.

Resposta:

O verbo usa-se nos dois casos:

(1) «Faz dez anos.» (construção típica do Brasil)

(2) «No Alentejo, faz muito calor.» (usa-se em ambas as variedades)

Há várias respostas no Ciberdúvidas, umas mais conservadoras e outras mais atualizadas (ver Textos relacionados). O que delas mais ressalta é a ocorrência de faz, a introduzir expressões de tempo cronológico, ser mais previsível nas variedades linguísticas do Brasil do que em Portugal. Com efeito, uma consulta do Corpus do Português (coordenado por Mark Davies) permite detetar essa diferença: o esquema «faz n anos» tem 32 ocorrências em textos brasileiros, em claro contraste com 10 ocorrências provenientes de textos identificáveis com o português de Portugal. Esta pesquisa não exclui, porém, a construção «faz hoje n anos que...» (p. ex., «faz hoje 100 anos que se assinou o armistício»), que parece ter a mesma frequência nas duas variedades.

Pergunta:

Seria o adjetivo "horizontino" aceitável (embora não esteja dicionarizado com o sentido proposto) para referir o que é próprio ou se relaciona com o horizonte («céu horizontino», «sol horizontino», «luz horizontina»)?

Agradeço desde já a resposta.

Resposta:

Atendendo aos casos de cristalino («de cristal»), nordestino («do nordeste»), levantino («do levante») ou ultramarino, («do ultramar») – todos adjetivos relacionais deivados de nomes (denominais)1 – torna-se legítima a formação de horizontino, «relativo ao horizonte». Esta forma já ocorre como gentílico de Horizonte (Ceará) e formante de outro gentílico, belo-horizontino, correspondente a Belo Horizonte (Minas Gerais). No entanto, como -ino é sufixo tido por erudito2 e pouco produtivo, muitas palavras com ele derivadas são mais itens que se fixaram pelo uso do que lexemas que existam em latência, acessíveis a qualquer falante (como acontece por exemplo com os diminutivos formados por -inho e os advérbios em -mente).

Em suma, pode empregar-se horizontino, mas este é um vocábulo que tem, por enquanto, uso episódico para não dizer nulo.

 

Obs.: Já depois de formulada esta resposta, dou conta3 da atestação em algumas páginas da Internet do adjetivo horizôntico, que poderá ser uma alternativa a horizontino. Assinale-se, porém, que horizôntico parece ocorrer em textos especializados, de cariz ensaístico ou filosófico (área da hermenêutica), com um sentido quer semelhante ao que se presume de horizontino (embora mais abstrato), quer próxim...

Pergunta:

Referindo-se à região [do Brasil], escreve-se: "Centro Serra", "Centro-serra" ou "Centrosserra"?

Conforme a regra, quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento/palavra começa com uma consoante diferente de R ou S, não se utiliza o hífen. Nos casos em que o prefixo termina com vogal e a segunda palavra/elemento começa com R ou S, essas letras são duplicadas e não se utiliza o hífen. Por exemplo, a palavra antissocial é formada pelo prefixo anti e o elemento/palavra social, mas como o prefixo termina em vogal (i) e o segundo elemento começa com S, o S é duplicado, formando assim a palavra antiSSocial. Portanto, seguindo esse raciocínio, deveria ser escrito "Centrosserra".

Mas não é o que encontramos na maioria dos textos – ou a palavra aparece escrita com hífen, "Centro-serra", ou sem hífen, "Centro serra". Entretanto, existe a regra dos encadeamentos vocálicos que poderia ser utilizada para explicar a grafia de centro-serra. Essa regra não fala sobre a utilização de prefixos. Ela estabeleceu que se deve utilizar o hífen para ligar duas ou mais palavras que ocasionalmente se combinam para formar encadeamentos vocálicos. Ex: Rio-Niterói, Rio-São Paulo, Sampa-Sul. Portanto, quando as palavras aglutinadas não formarem um vocábulo, ou seja, uma nova palavra, deve-se utilizar o hífen.

Gostaria muito de tirar essa dúvida.

Resposta:

O caso apresentado é o de um nome próprio que constitui um composto, e não uma palavra prefixada. A hifenização dos compostos não se confunde com as regras enunciadas para os prefixos1.

Se com a denominação em questão se pretende referir uma região que é simultaneamente de serra e se encontra no centro de um território, então, a expressão adequada é Centro-Serra, à semelhança dos casos enumerados no fim da pergunta, os quais, no entanto, são exemplos não de compostos, mas de encadeamentos vocabulares ocasionais (p. ex. «a estrada Rio de Janeiro-Petrópolis»)2. Mesmo assim, atendendo a que Centro-Serra é um nome próprio que parece ter origem num encadeamento vocabular que se cristalizou, um pouco como combinação histórica  Áustria-Hungria, não é descabido apor-lhe um hífen3.

Observe-se que há efetivamente oscilações gráficas na escrita do nome em questão, como se observa nas páginas do sítio eletrónico da Secretaria de Desenvolvimento Económico e Turismo do Estado do Rio Grande do Sul. Contudo, considerando casos de outros geónimos brasileiros formados por composição como Centro-Oeste, a grafia Centro-Serra salienta-se, entre outras variantes, como boa solução, até

 

1 A hifenização de compostos é definida pela Base XV do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AO 90). Note-se que a norma brasileira anterior, a do Formulário Ortográfico de 1943...