Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ouvia, por vezes, o meu avô Alcino dizer que estava "esgalfo". Pensei sempre que quisesse dizer que estava esfomeado.

A verdade é que agora não encontro o significado da palavra "esgalfo", como se não existisse...

Será que de facto não existe e eu ouvia-a sendo outra a palavra proferida pelo meu avô? Será que me podem esclarecer?

Bem hajam.

Resposta:

Regista-se esgalfado, com o sentido de «faminto», na região de Mogadouro (ver A. M. Pires Cabral, Língua Charra. Regionalismos de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2013). Pode, portanto, supor-se que esgalfo se relacione com o regionalismo transmontano, até porque é seu sinónimo.

Quanto ao uso da palavra esgalfo, exatamente com esta forma, não foi possível achar registo nas fontes impressas disponíveis, mas encontram-se ocorrências em páginas da Internet, por exemplo, em blogues que aludem precisamente à região de Aveiro:

(1) «Era tal o movimento de pessoas e animais, e incertos os horários, que desde logo se percebeu da necessidade de abrir balcão, ali no final da estrada, nas imediações da mota da barca da passagem, para dessedentar os viandantes e lhes aconchegar os estômagos mais esgalfos com um caldo de conduto, ou com um escabeche, em reparo urgente.» ("200 anos da Costa-Nova", 11/05/2008)

Também se encontra esgalfo, ainda que não exatamente com o mesmo significado, em páginas relacionadas com outros pontos da geografia da língua portuguesa:

(2) «Esgalfo – ESGALFO (adj.) – guloso; insaciável (Não há de comer que chegue para esse menino esgalfo).» (...

Pergunta:

Na região do Minho, é comum dizer-se «falar à taxi» (penso ser assim que se escreve) como sinónimo de «falar à toa».

Gostaria de saber qual a origem desta expressão e se se trata, efetivamente, de um regionalismo.

Resposta:

Não foi possível encontrar fontes impressas que refiram o uso mencionado pelo consulente. Na Internet, as ocorrências são praticamente nulas; no entanto, merece registo um caso talvez ilustrativo da locução em apreço, no contexto de uma discussão à volta do Vitória Sport Clube de Guimarães:

(1) «Aqui também assume que fala “à táxi”. Não conhece, mas a nossa é melhor. É como o nosso centro histórico [Guimarães]. É o mais bonito do mundo, ainda que não se conheça outro.» (comentário do blogue D. Afonso Henriques, 25/08/2010)

Da leitura da frase (1) pode inferir-se que quem fala «à táxi» fala do que «não conhece», ou seja, «falar à táxi» será o mesmo que «falar à toa» ou «dizer o (lhe) que apetece». Como o blogue que faculta o exemplo reúne textos de pessoas que manifestam reiteradamente o seu vínculo à cidade de Guimarães, igualmente é lícito supor que a locução seja efetivamente característica do português que se fala no norte de Portugal. Ainda assim, um único exemplo constitui prova escassa, e o mais prudente será considerar que a frase (1) atesta apenas o uso da locução «falar à táxi» no português de Portugal, sem haver certezas quanto a uma distribuição geográfica mais precisa.

Pergunta:

Esta questão já foi aqui apresentada por outro consulente e a vossa resposta foi «Penso que deve dar preferência ao uso da expressão "tudo o resto"».

Eu mantenho as minhas dúvidas, até porque quem respondeu não o fez com convicção ao usar o «penso que». Pois eu penso que deve ser «todo o resto», entendido como a totalidade da parte restante. Por exemplo, hoje, na capa de A Bola, lê-se que Fernando Santos fala «sobre a Liga das Nações e sobre tudo o resto».

No meu ver, estes dois conceitos são contraditórios: se fala sobre tudo, não sobra resto para acrescentar ao que fala. Ela fala, com certeza sobre a Liga das Nações e sobre a totalidade da parte restante (de matérias de futebol, certamente) que vão além do assunto principal.

Agradeço a vossa atenção.

Resposta:

A dúvida apresentada diz respeito a uma expressão que o uso fixou e que os dicionários registam.

Terá  origem no galicismo tout le reste, pelo menos, como tradução literal convergente com a locução «tudo o mais»: da sinonímia de «o mais» com «o resto» terá resultado «tudo o resto», expressão que é ou foi discutível1, mas que ocorre há bastante tempo no nosso idioma, como abonam exemplos de uso até por escritores portugueses:

(1) «O amor-próprio já eu o tinha perdido há muito tempo. E o orgulho, a vergonha, tudo o resto! » (David Mourão-Ferreira, Tal e Qual o que Era, 1963)

(2) «Venho a parte principal de minha família e bagagens em Londres tudo o resto disperso e sem ordem.» (Almeida Garrett, Cartas, 1835)

São de notar, porém, que, também, entre escritores, ocorre a expressão «todo o resto» como variante de «tudo o resto»:

(3) «O meu Deus enche o mundo. Só o meu Deus existe, e todo o resto no universo é tão pequeno e tão fútil, que reclamo mais dor, mais sofrimento, mais fome.» (Raul Brandão, Húmu...

Pergunta:

O termo inglês gig, introduzido no meio musical, em português é considerado um nome do género masculino ou feminino?

Se traduzirmos como «concerto/ espetáculo musical» dizemos «o gig»?

E se traduzirmos como «atuação/ apresentação musical», dizemos «a gig»?

Será indiferente usarmos o masculino ou feminino?

Resposta:

A palavra gig – pronuncia-se aproximadamente como "guigue" – é um nome que constitui um empréstimo proveniente do inglês (anglicismo), e significa «atuação ao vivo de um músico ou de um grupo musical que tocam música pop ou jazz

Trata-se de um termo que ainda não tem uso estável no português, não estando sequer dicionarizado como estrangeirismo, o que significa que o género a atribuir-lhe depende da tradução que os falantes subentenderem. Sendo assim, a palavra gig pode ser usada nos dois géneros – por enquanto – e mantém a ortografia original, pelo que se recomenda que figure em itálico ou entre aspas em textos escritos em português.

Acrescente-se que, em inglês, gig, «concerto», terá origem desconhecida (ver Online Etymology Dictionary). Existe também nessa língua um vocábulo homónimo que merece referência, gig, que significa «carruagem de duas rodas puxada a cavalo» e «barco pequeno», cuja origem se relacionará com o antigo norueguês geiga, «virar de lado» (idem). Daqui provém o português guiga, «barco a remos, estreito e comprido, usado em regatas» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa; ver também Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

Observe-se, por último, que gig é facilmente substituível por concerto ou atuação.

Pergunta:

Estive a rever o Acordo Ortográfico devido a uma dúvida de tradução e fiquei com a sensação de que «príncipe-consorte» deveria estar unido com um hífen, mas a verdade é que na imprensa portuguesa encontro a expressão sobretudo sem ele.

Podem esclarecer-me, por favor?

Muito obrigado!

Resposta:

As associações de nome e adjetivo não são necessariamente escritas com hífen.  A hifenização destes casos não é imposta por uma regra ortográfica, mas, sim, pela tradição de registo dicionarístico1. Por outras palavras, uma sequência de nome+adjetivo terá hífen se for considerado um composto; se não, então não se hifeniza. Existe, portanto, uma tarefa classificatória cujos critérios formais e semânticos são anteriores às regras ortográficas.

No caso de «príncipe consorte», não há lugar a hífen, tal como não se usa este sinal em «príncipe regente», «príncipe real» ou «príncipe imperial». Deste uso, é possível inferir que se tem considerado que estas sequências de nome+adjetivo são associações livres (ou quase) que ainda não têm significado verdadeiramente autónomo – por muito subjetivo que seja este juízo. Acrescente-se que consorte é um adjetivo dos dois géneros, equivalente a sócio, parceiro, cônjuge

1 A Base XV do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, assim como a norma de 1945, refere compostos de nome+adjetivo, mas não deixa explícitos os critérios que permitem distinguir estes compostos das associações livres de nome+adjetivo. 

FontesDicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2002),