Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Enquanto recitava Os Lusíadas, dei-me conta de que em alguns versos a sexta e décima silabas poéticas nem sempre são mais fortes, há versos em que a quarta, a sétima ou oitava, e a décima é que são mais fortes.

Mas há versos d'Os Lusíadas em que parecem ter métrica irregular.

Eu aprendi sobre metro sozinho lendo gramáticas (minha escola passou longe de poesia e fonética), e quando leio poesia, faço a coisa mais de ouvido e lembrando alguns conselhos gerais das gramáticas. Ex: «De Áfrico e de Noto a força, mais se atreve» Canto I, verso 212 o No também é pronunciado com certa intensidade, mas ficaria estranho: 5.ª, 6.ª e 10.ª.

Há alguma recomendação para o estudo correto de métrica e recitação (principalmente d'Os Lusíadas)?

Resposta:

Há um erro no verso transcrito, que corretamente é como a seguir se apresenta:

(1) De Áfrico e Noto a força, mais se atreve

Este verso é regular.

No entanto, é conhecido o facto de vários versos divergirem deste modelo, conforme se assinala e comenta no Dicionário de Camões (Lisboa, Editorial Caminho, 2011):

«[...] indicaremos a presença, além dos versos decassílabos acentuados normal e predominantemente na 6.ª e 10.ª sílabas, como na estrofe acima, de versos considerados, por alguns autores, fora da norma: Acentuação na 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas: "De África as terras e do Oriente os mares" (Os Lusíadas, I.15). Ritmo do chamado decassílabo sáfico, mais usado na poesia lírica. Outro exemplo: «De consciência e de virtude interna» (Os Lusíadas, VIII.54). Acentuação na 3.ª, 8.ª e 10.ª sílabas. Ex.: "Sacras aras e sacerdote sancto" (Os Lusíadas, II.15). Forma variante do decassílabo sáfico. Acentuação na 5.ª e 10.ª sílabas: «Dizem que, por naus que em grandeza igualam» (Os Lusíadas, V.77). Aqui se trata do chamado verso decassílabo de arte maior, com acentuação na 5.ª e 10.ª sílabas. Os chamados versos de arte maior, normalmente, são acentuados na 5.ª e na 11.ª sílabas. Mas aparecem ao lado de versos com acentuação na 5.ª e na 10.ª sílabas, resultantes da soma de dois versos de cinco sílabas, chamados de versos de redondilha menor, na tradição rítmica do idioma. Acentuação na 4.ª, 7.ª e 10.ª sílabas: "De vossos Reinos, será certamente" (Os Lusíadas, VII.62). Trata-se do chamado verso decassílabo de gaita galega, de origem trovadoresca: as populares muiñeras [sic] (cantigas de moinho). Acentuação na 4.ª e 10.ª sílabas. Aqui se trata do decassílabo a minori, encontrado na épica: "...

Pergunta:

Ando pela rua e depois oiço a juventude a dizer  «ó guna, como é que estás?».

Fico intrigado com o que eles dizem e gostava que me esclarecessem a minha dúvida.

Obrigado.

Resposta:

Encontra-se uma descrição bastante esclarecedora no Dicionário Priberam, onde se define guna como o mesmo que «Jovem urbano, geralmente associado às camadas sociais mais desfavorecidas, de comportamento ruidoso, desrespeitoso, ameaçador ou violento e que tem gostos considerados vulgares (ex.: usava o boné de lado, como os gunas)». A mesma fonte também regista a expressão «andar à guna», que se dá como típica do Porto e que significa «andar pendurado do lado de fora da porta de um transporte público, sobretudo nos eléctricos, sem pagar bilhete». Tanto o dicionário consultado como o Dicionário Infopédia filiam guna no inglês goon, «rufia, valentão»1.

Pode ler-se a propósito (e relacionando curiosamente a expressão ao uso da máscara durante a pandemia de covid-19) o texto "Hoje, vi um gajo a “andar à guna" num carro elétrico", de Gustavo Carona e saído no jornal Público em 16/11/2020.

1 Em sentido equivalente a «rufia, bandido», o Lexico.com regista goon como uso norte-americano.

Pergunta:

Estava perguntando-me aqui o motivo de não haverem traduzido o título do livro de Gustave Flaubert Madame Bovary para "Dona Bovary". Vamos por partes.

No Brasil podemos referir-nos a uma mulher desconhecida de X maneiras:

1) Senhora – tanto para velhas como novas.

«A senhora irá à festa de Carlos.»

«Que horas são, senhora?»

Pode-se acrescentar o pronome possessivo minha para suavizar o solenidade. Se a mulher for casada ou a sogra, às vezes prefere-se usar dona.

2) Dona – sempre acompanhado do nome.

«A dona Ivete morreu ontem, sabia?»

«Dona Cleide, a senhor pode me fazer um favor?»

3) Madame, senhorita e senhorinha – de maneira mordaz, sarcástica.

«Então quer dizer que a madame não gosta do que faço?»

«Eu aqui trabalhando. E a senhorita aonde? A senhorita só na gandaia.»

«E a senhorita quer tudo de mão beijada? Quer que lhe lave as roupas, que faça o café, o almoço, a janta?»

Parece-me, de acordo com o uso no Brasil, o melhor seria "Dona Bovary".

Resposta:

Não sendo impossível, o parecer do consulente confronta-se com alguns problemas de uso do termo dona, quer no Brasil, quer em Portugal, quer, ainda, noutro país ou região de língua portuguesa.

Assim:

– Em relação ao uso de senhora, descrito em 1), ocorre aproximadamente o mesmo em Portugal, embora aqui,como vocativo, se tenda a dizer «minha senhora», e nunca ou raramente «dona».

– O título de dona, como indicado em 2, no comentário, tem sempre associado o primeiro nome, e nunca o sobrenome (em Portugal, apelido): uma pessoa que se chame Ivete Silva será sempre «a Dona Ivete» ou «a Senhora Dona Ivete», mas não *«Dona Silva» nem *«Senhora Dona Silva» (o * indica que é uso não aceite).

– Sobre 3, madame pode efetivamente ser usado em tom sarcástico, e até se regista a forma vulgar madama que reforça essa intenção. Sobre senhorita, nada a acrescentar, a não ser o facto de não se empregar em Portugal.

Acontece que, de acordo com 2,  "Dona Bovary" é impossível, porque é sobrenome; o mais que se poderá fazer é adaptar como «Dona Emma» (ou «Dona Ema»), uma vez que o primeiro nome da personagem é Emma (Ema em português"). Esta solução não será a mais satisfatória, porque, entre outros motivos, no romance de Flaubert a personagem  do marido, Charles Bovary, é de enorme importância, como se pode supor num romance que aborda o adultério.

Em alternativa, seguindo modelo de «senhora Thatcher» ou «senhora Merkel», que é frequente nos textos mediáticos, poderia propor-se «Senhora Bovary», uma solução preferível à anterior e muito semelhante ao que se faz em várias línguas eslavas (por exemplo, em polaco,

Pergunta:

Não encontro a palavra "aclaratória" no dicionário de Português Priberam.

Ela não existe?

Resposta:

A palavra em questão existe, tem registos dicionarísticos, mas é pouco usada.

O adjetivo aclaratório não figura no Dicionário Priberam nem no Dicionário Infopédia, mas encontra-se noutras fontes. Por exemplo, na versão eletrónica do dicionário de Caldas Aulete e no Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado; além disso, também consta dos vocabulários ortográficos1. É um adjetivo que, como aclarador (este um pouco mais presente nos registos lexicográficos2), deriva do tema do verbo aclarar, sinónimo de clarificar e esclarecer.

Acontece que aclaratório se usa pouco, em comparação com os mais correntes clarificador e esclarecedor, adjetivos sinónimos também derivados dos temas dos verbos acima mencionados. Com efeito, uma consulta do Corpus do Português , de Mark Davies, permite observar que aclaratório não se deteta na secção história e, na secção dialetal, só ocorre (25 ocorrências) em textos recentes, em algumas passagens de natureza jurídica e alguns textos jornalísticos.

 

1 Aclaratório está registado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1940) da Academia das Ciências de Lisboa e no Vocabulá...

Pergunta:

Acerca das várias respostas dadas pelo Ciberdúvidas sobre «ir ao encontro» vs «ir de encontro», gostava de vos expor este meu raciocínio de mera intuição linguística.

Eu ir de encontro a alguém na rua é dar-lhe um encontrão, é ir contra ele. Não há qualquer dúvida quanto a isso. Agora «ir de encontro» ao que o alguém pensa ser «ir contra» o que essa pessoa pensa já me parece ser uma transposição demasiado literalista de uma expressão usada no plano físico, transposta abusivamente e com o mesmo sentido para o plano das ideias. Até porque as ideias não andam aos encontrões umas às outras...

Sinto o «ir ao encontro» e o «ir de encontro» ao que alguém pensa como expressões de valor equivalente. O «ir ao encontro» implica um percurso, um caminho, algo mais lento, o «ir de encontro» ao que alguém pensa como algo mais imediato e forte, uma espécie de: Bingo. É isso mesmo!

É o que me diz a minha sensibilidade linguística, admito que numa interpretação bastante própria. Sei que o Ciberdúvidas não concorda com ela, mas gostava, mesmo assim, de saber, se a acham demasiado abstrusa...

Eu, francamente, acho algo sui generis considerar «ir de encontro» ao que o alguém pensa como «ir contra aquilo que essa pessoa pensa»...

Resposta:

O que é dito pelo consulente parece coincidir com um tipo de exercício de intuição linguística praticado em modelos que pressupõem uma gramática interna – por exemplo, a das propostas generativistas no mundo anglo-saxão, embora também haja algo metodologicamente parecido na investigação francófona.

Quanto à transposição metafórica, ou seja, no domínio da metáfora linguística, há muita criação que acaba por se tornar corrente e ser permitida, a ponto de se fixar lexicalmente e figurar nos dicionários. Também é frequente que a transposição metafórica acarrete alterações semânticas de modo a acomodar o conteúdo transposto ao cenário que, no léxico mental, o acolhe e enquadra.

Numa perspetiva mais empírica, de identificação dos padrões de uso, acontece que, consultando a secção histórica do Corpus do Português (Mark Davies), a primeira impressão é de que as ideias de choque e pressão, em referência ao mundo físico, parecem ter associação (surpreendentemente?) estável com «de encontro a». É em textos mais recentes que se detetam os «de encontro a» não "confrontacionais"; mas, a supor que a confusão é recente, pode ela dever-se a um viés da constituição do corpus consultado:

(1) «Uma vez que parte da obra de Abel Salazar permanece ainda em parte incerta, ampliar e perpetuar o conhecimento acerca do seu patrono é o objectivo da Casa-Museu. Tal objectivo vai de encontro ao desiderato subjacente a toda a acção, cultural ou científica, do próprio Abel Salazar[...].» (Um espírito renas...