Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o significado da palavra "trapulhar", que encontrei em uma carta de minha bisavó de 1902 na seguinte frase:

«A Deia manda-te dizer que tem sentido muita falta dos noivos para trapulhar.»

Envio a página da carta original onde se pode ver a frase que citei e o verbo misterioso (ver infra).

Santa Maria (da Boca do Monte), onde nasceu e viveu a juventude minha bisavó, é uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul, com maciça colonização alemã, bem como numerosa comunidade afro-brasileira.

Talvez o termo seja um "regionalismo", vá saber...

Agradeço a atenção.

Resposta:

Nas fontes consultadas, não se encontram registos do verbo em questão. No entanto, há pistas que,apesar de vagas, apontam quer para uma amálgama de trafulha e atafulhar quer  para o contacto ou com o castelhano ou com os dialetos aragoneses e catalano-valencianos.

Assim, regista-se em castelhano o nome trápala no sentido «pessoa que fala muito e diz coisas sem substância» (cf.dicionário da Real Academia Espanhola). Poderá conjeturar-se a derivação de uma forma como "trapalear", eventualmente alterada, de tal maneira, que resultou em "trapulhar". Nada disto encontra apoio nos dicionários consultados para esta resposta.

Contudo, documenta-se nos dialetos catalães e valencianos a forma trapulla, «batotice»:

«He sentit tranfullero ‘trompós’ a parlants de Sevilla. Per aquesta via deuen anar també entrampullar ‘v. entrampar’ del DM Gadea (1891) i trapulla ‘fullería’ al Vilar (els Serrans, Llatas 1959). Cf. trapull ‘agitació de persones o de coses en moviment’ (DCVB, Tortosa) i +atrafullat ‘atrafegat, atabalat’ (Moreira, Massip 1991: 300).  (Josep Martines, L'aragonés i el léxic valencià, Caplletra 32 (Primavera 2002), pp. 157-201 p. 183)

[tradução livre: «Ouvi tranfullero 'enganador' a falantes de Sevilha. Por esta via devem andar também entrampullar 'enganar' do DM Gadea (1891) e trapulla 'trapacice" em Vilar (Els Serrans, Llatas 1959). Cf. trafull 'agitação de pessoas ou coisas em movimento' (DCVB Tortosa) e atrafullat 'atarefado, empatado' (Moreira, Massip 1991:300).]'

Ao ler estas linhas, não se resiste a relacionar com "trapulhar" o nome trafulha, «vigarice, aldrabice», do qual não é impossível derivar "trapulhar"...

Pergunta:

Encontro nos dicionários online os verbos irmanar e o seu antónimo desirmanar.

Encontro também a palavra irmanação, mas "desirmanação" já me é dada como inexistente.

Podem esclarecer-me?

Muito obrigado.

Resposta:

Por causa da sua formação, resultante de uma regra que os falantes conhecem e aplicam sem dificuldade, há palavras derivadas como desirmanação, que os dicionários muitas vezes não registam -- um pouco como acontece com os diminutivos que só têm registo quando adquirem algum significado mais especial.

Sendo assim, diga-se que desirmanação é palavra bem formada e correta. O facto de não figurar nos dicionários não é indicativo de ser desaconselhada.

Pergunta:

Qual a grafia correcta da aldeia de Assafora ou Açafora, no concelho de Sintra? E porquê?

Consultei o Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, e os índices de Topónimos e Gentílicos, de Xavier Fernandes, onde não consta.

Obrigado.

 

 O consulente adota a ortografia de 1945.

Resposta:

A forma mais corrente é Assafora, cujo uso parece ter-se generalizado e estabilizado na escrita.

Contudo, a sibilante de nomes comuns originários do árabe, como é o caso, são geralmente escritas em meio de palavra com c antes de e ou i (cf. ceifa, acicate) ou ç antes de a, o ou u (açoteia, açucar, açafate).

Este princípio deveria aplicar-se aos topónimos de origem árabe, e, de facto, há formas que se registaram de acordo com este critério como Açafarge (Coimbra) e Açumar (Monforte, Portalegre); contudo, o uso consagrou as grafias com ss, e hoje, mesmo oficialmente, escreve-se Assafarge e Assumar. Parece ser esta a situação também de Assafora, que deveria escrever-se Açafora, grafia, aliás, registada por José Pedro Machado no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa.

Quanto à génese do topónimo, tudo aponta para a origem ou transmissão árabes, muito embora se discuta a etimologia precisa. Assim, o historiador Oliveira Marques (Nova História de Portugal, vol. II, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 139) prop...

Pergunta:

Toda a vida usei e ouvi as palavras "besnico" e "cutomiço" para indicar uma criança muito pequena. Mas não as encontro em nenhum dicionário.

Agradecia os vossos comentários.

Obrigada

Resposta:

Encontram-se besnico na Infopédia e cotomiço (sempre com o) no Dicionário Priberam.

O vocábulo besnico, que tem origem obscura, é o mesmo que «garoto pequeno, criança» (Dicionário Houaiss e o Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Gulherme Augusto Simões).

Quanto a cotomiço, é termo que denota uma «pessoa pequena, geralmente ativa e esperta» e, por extensão de sentido, uma «criança endiabrada» (ibidem).

Pergunta:

Por que razão catarse se pronuncia "catarZe" e não "catarSe"?

Resposta:

A palavra catarse, «purgação, evacuação» e, atualmente, «libertação de emoções reprimidas», pode pronunciar-se com o [s] surdo de persa ou entorse

Observe-se que, até meados do século passado, os registos dicionarísticos de catarse, que é palavra do registo culto que só há poucas décadas ganhou maior circulação, não sugeriam que o grafema s correspondesse ao [z] que se ouve em casa. Contudo, atualmente, a verdade é que, em relação à pronúncia dos falantes de Portugal1, a transcrição fonética (ou indicação de pronúncia) da palavra apresenta um [z] – cf. o Dicionário Infopédia, o Dicionário Priberam e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.

Não temos explicação fundada, mas é possível que o [z] tenha surgido por influência de outras palavras de origem grega terminadas em -se, como análise ou ênfase (embora nestas o s se encontre entre vogais e, portanto, regularmente, se pronuncie [z]).

Em suma, ambas as pronúncias estão corretas. No entanto, a pronúncia presumivelmente mais antiga foi praticamente suplantada por outra mais moderna, parecendo esta mais enraizada entre quantos proferem a palavra.

 

1 Nos dicionários brasileiros consultados – MichaelisHouaissUNESP