Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Podiam dizer-me o significado da expressão sublinhada na segunda frase no diálogo?

– Eram dois ladrões. Foram presos na sexta-feira.

Já não era sem tempo, mas, se calhar, daqui a três ou quatro meses já estão cá fora outra vez e voltam a fazer o mesmo.

Resposta:

A expressão «já não era sem tempo» (ou, como o verbo no presente, «já não é sem tempo») significa «finalmente», «já estava a demorar», «já tardava».

O Dicionário Houaiss regista como subentrada de tempo a locução «já não ser sem tempo» com o significado de «já tardar, já vir fora de hora» e abonada pelo frase «finalmente saiu o pagamento, e já não foi sem tempo». António Nogueira Santos, em Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 2006) consigna como uso familiar a expressão «já não é sem tempo» com significado próximo do atribuído pela fonte brasileira: «já é um tanto tarde; deveria ter sido antes».

Pergunta:

Se existem os termos sulista, nortista e nordestino para designar os habitantes das regiões correspondentes do Brasil – SulNorteNordeste –, não seria de bom uso haver também "sudestino" e "centro-oestino" para se referir aos habitantes das outras duas regiões desse país – Sudeste e Centro-Oeste?

Já vi ambos os termos em trabalhos acadêmicos, mas não achei no vocabulário da Academia Brasileira de Letras nem em outro dicionário de referência. Atenciosamente, Luiza Beirão

Resposta:

O facto de uma forma vocabular não encontrar registo dicionarístico não significa que essa palavra esteja errada.

Assinale-se, porém, que o Dicionário Priberam regista sudestino exatamente na aceção de «habitante da região brasileira do Sudeste».

Quanto a centro-oestino, na pesquisa feita, não foi possível achar entrada de dicionário, mas é vocábulo bem formado, que ocorre esporadicamente em textos académicos ou emanados de entidades oficiais – ver aqui.

Pergunta:

Aqui onde moro, temos o hábito de dizer: «Que que é isso?»

Gostaria de perguntar se isso está correto, a repetição do que, se há algum sentido.

(Não sei se ajudaria, mas o primeiro que é pronunciado com e fechado, já o outro como qui.)

Resposta:

É uma forma popular brasileira de dizer «que é que isso» (ou «o que é que isso»).

No Dicionário Houaiss (s. v. que) observa-se em nota de uso que «[a sequência o que que,] como expletivo, é corrente no Brasil em frases interrogativas informais, tanto diretas (o que que você pretende fazer?) quanto indiretas (não entendiam o que que ele tinha na cabeça)».

Pergunta:

No uso de formas verbais, tenho dúvidas sobre o uso dos verbos ter e haver como auxiliares.

– Em expressões como «Tinha-me preparado para a docência»/ «havia-me preparado para a docência», gostaria de saber se são equivalentes, se se pode usar um verbo ou o outro indistintamente. Neste caso coincidiria com o tempo verbal chamado em espanhol pretérito pluscuamperfecto: «Me había preparado para la docencia».

E também [queria saber] se é equivalente à expressão: «preparara-me para a docência.» Acho que neste caso a forma verbal em português é o pretérito-mais-que-perfeito, e coincidiria com o que dizemos em galego: «Preparárame para a docencia.»

Outros exemplos similares: «Ele disse que havia tido uma espécie de alergia na pele.»/«Ele disse que tinha tido uma espécie de alergia na pele.»/«A moça entrou e disse que tivera um sonho terrível

– Em espanhol: «Él dijo que había tenido una especie de alergia en la piel.»/ «La chica entró y dijo que había tenido un sueño terrible.»

–  Em galego: «El dixo que tivera unha especie de alergia na pel.»/ «A rapaza entrou e dixo que tivera un soño terrible.»

Resposta:

Os dois auxiliares – ter e haver – são geralmente equivalentes no pretérito mais-que-perfeito, mas há diferenças de uso.

Em Portugal, só muito raramente – geralmente, em textos muito formais ou literários – se usa hoje o auxiliar haver, pois ter é o auxiliar claramente predominante no mais-que-perfeito1:

(1) Tinha-me preparado para a docência, mas de repente tive outra proposta profissional.

Também possível, mas raro e até um tanto forçado:

(2) Havia-me preparado...

Note-se, porém, que no Brasil este uso de haver parece mais frequente, pelo menos, na escrita. Assinale-se também que, no pretérito perfeito do indicativo, com valor habitual ou iterativo, é sempre ter que se usa:

(3) Ultimamente, tenho preparado muitas aulas. (e não «hei preparado...»)

Quanto à relação entre o pretérito mais-que.perfeito composto – «tinha-me preparado» – e o pretérito mais-que-perfeito simples – «preparara-me» –, diga-se que, ao contrário do galego, na atualidade esta forma simples só ocorre esporadicamente no discurso mais cuidado, tanto em Portugal como no Brasil ou outros países de língua portuguesa: «preparara-me para a docência» é, portanto, um uso correto, mas hoje sobretudo literário e formal (cf. Textos Relacionados).

Sendo assim, em relação às últimas frases apresentadas pelo docente, as formas equivalente em português de Portugal, correntes e corretas, são:

(4) Ele disse que tinha tido uma espécie de alergia na pele.

(5) A rapariga entrou e disse que tinha tido um sonho terrível.2

Como se disse, não é que em (4) e (v) sejam impossíveis o auxiliar haver e o pretérito-mais-que-perfeito simples. O que acontece, não obstante, é que estes usos são menos frequentes e dão ao discurso um toque de elaboração alheio ao auxiliar

Pergunta:

Relativamente à palavra floresta, gostaria de confirmar se se trata de uma palavra simples ou pode ser considerada complexa. Tendo em conta que não deriva de flor, eu consideraria simples.

Qual a opinião mais generalizada?

Resposta:

Do ponto de vista dos atuais padrões de formação de palavras em português, não há unanimidade sobre a formação de floresta.

Com efeito, do ponto de vista histórico, este vocábulo aparece inicialmente como palavra simples (foresta), mas este é um aspeto do passado da língua, a que os falantes só acedem por conhecimento extralinguístico. Sendo assim, do ponto de vista sincrónico, parece um derivado de flor. Contudo, uma classificação ajustada será considerá-la uma palavra complexa não derivada1, isto é, não se trata de um vocábulo suscetível de ter sido integralmente construído em português, visto que a terminação -esta não configura um sufixo ativo no atual uso da língua portuguesa.

Em Portugal, este tipo de formações vocabulares não é abrangido pelos conteúdos programáticos do ensino básico e secundário. É, portanto, um caso que pode ser mencionado em contexto pedagógico, por exemplo, quando se aborda a família de palavras, mas sem constituir exemplo que se deva selecionar para exercícios estruturais com vista a uma avaliação.

 

1 Cf. Graça Rio-Torto et al. Gramática Derivacional do Português, Coimbra,2016, p. 262).