Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Corre em Portugal usarem o pronome de caso reto ele como objeto? Por exemplo: «Eu amei "ela".»

Foi uma invenção do Brasil ou teve origens com os portugueses que cá vieram?

Resposta:

É uma tendência que já devia existir na língua à data da independência do Brasil1.

Hoje em dia, no português falado em Portugal, nota-se que é frequente ocorrer ele/ela no lugar de o/a depois de verbos de perceção (ver, ouvir) e verbos causativos (mandar, deixar):

(1) Vi ele maltratar o cão. [em vez do correto «vi-o maltratar o cão]

(2) Deixou ele ir sozinho ao médico. [em vez do correto «deixei-o ir sozinho]

Observe-se, porém, que, mesmo coloquialmente, é rara ou nula a ocorrência de ele/ela com a função de complemento direto em frases simples e orações finitas. Na fala espontânea, diz-se, portanto, «vi-o/a ontem» e «deixei-o/a aqui».

Parece, portanto, que o português coloquial do Brasil generalizou esta tendência a todos os contextos de objeto direto.

 

1 Cf. Gramática do Português, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, p. 2257.

Pergunta:

Ultimamente ouço pessoas (sobretudo adolescentes, em particular o meu filho) usar a expressão “meter graça”.

Não me parece uma alternativa correta à expressão “ter graça” e gostaria de pedir o vosso esclarecimento.

Obrigado.

Resposta:

A forma tradicional e correta da locução em apreço é «ter graça».

Como se sabe, muitos adolescentes costumam empregar termos do calão e da gíria, bem como inovações (deturpações e verdadeiras inovações) lexicais e sintáticas, de maneira a afirmarem-se como indivíduos e como grupo perante as convenções dos adultos – da família à escola e às autoridades.

Em lugar de «ter graça», que continua a ser a forma que a locução tem e deve ter, documenta-se, na verdade, a expressão «meter graça», por exemplo, numa canção rap do cantor Sam, the Kid.

Pergunta:

«Tebaldo – Como! Sacas da espada contra uns pobres corçozinhos sem força? Aqui, Benvólio! Vem encarar a morte!» (SHAKESPEARE, W. Romeu e Julieta e Tito Andronico. trad. de Carlos Alberto Nunes. 14.ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 21. ISBN 85-0040978-9).

Encontrei esta construção – o verbo sacar + a contração da – durante a leitura da edição acima referenciada, mais de uma vez, tanto na primeira quanto na segunda obra shakespeariana.

Minha intuição aceita o seu uso, mutatis mutandis, com o verbo no infinitivo, tal como em «O sacar da espada contra uns pobres corçozinhos sem força», ou mesmo com o substantivo saque", a saber: «O saque da espada contra uns pobres corçozinhos sem força.»

Entretanto, o seu uso como no excerto acima citado me causa estranheza, porque para se sacar da espada seria necessário se sacar algo dela, e não a própria espada. Portanto, eu gostaria que me explicassem – não para desafiar o saudoso tradutor Carlos Alberto Nunes, mas para aprender – se está correta essa construção e porquê.

Desde já, sou-vos muitíssimo grato.

Resposta:

A construção está correta, pois verbo sacar emprega-se com ou sem a preposição de em referência ao objeto da ação de sacar.

No seu Dicionário Prático de Regência Verbal, o gramático brasileiro Celso Pedro Luft (1921-1995) regista os dois usos como gramaticais:

«Sacar revólver (da cinta), a espada (da bainha). Sacar do revólver, da espada. "É bom no gatilho, saca rápido” (Aurélio).»

Em observação, o mesmo autor acrescenta, citando o gramático e lexicógrafo Antenor Nascentes (1886-1972): «"O posvérbio de traz idéia de utilização do instrumento sacado” (Nascentes, 1960: 186).»1

Observe-se que a diferença entre uso transitivo direto e uso preposicional é mínima, como se infere da primeira abonação de uma das aceções deste verbo no Dicionário Houaiss: «transitivo direto, transitivo indireto e intransitivo 1.1 tirar para fora, bruscamente e com violência; arrancar, puxar em ameaça. Ex.: sacar (d)o sabre; pistoleiro que saca com muita agilidade

Note-se, por último, que a possibilidade de o objeto de sacar se realizar como constituinte sintático preposicionado não se deve confundir com outra possibilidade entre os usos de sacar – a de este verbo, na aceção de «tirar para fora bruscamente», selecionar um objeto direto e um objeto indireto que marca o lugar donde se retira alguma coisa com brusquidão: «Sacar a carteira do bolso» (Luft, op. cit.).

 

1

Pergunta:

Qual a origem da palavra papa (no sentido do Sumo Pontífice do Vaticano)?

Creio que existem várias teorias:

1. Acrónimo de Petrus Apostolus Princeps Apostolorum («Pedro Apóstolo, Príncipe dos Apóstolos»);

2. Acrónimo de Petri Apostoli Potestatem Accipiens («do Apóstolo Pedro tomou o poder»);

3. Do latim, "papa" (termo carinhoso para "Pai").

Resposta:

Nas fontes consultadas para elaboração desta resposta, não se encontra confirmação de papa1, «chefe supremo da Igreja Católica ou de qualquer outra igreja»(Infopédia), ter origem nos acrónimos apresentados na pergunta ou noutros.

Com efeito, as mais antigas atestações da palavra em (galego-)português, do século XIII (cf. Dicionário Houaiss), não indiciam nenhum tipo de abreviação. Além disso, procurando noutras línguas cognatos de papa, observa-se que o alemão Pfaffe vem do latim pappa ou do gótico papa, com origem no grego pappás), tratando-se de um empréstimo alto-medieval, sem sugestão  de estas formas surgirem de acrónimos. Estes, se têm uso (também não foi aqui possível confirmar), serão posteriores ao uso do latim papas e das formas que este termo depois assumiu noutras línguas.

Sendo assim, uma etimologia plausível é a registada no Dicionário Houaiss:

«latim pa (pas) ou pāppa (pāppas), ae "pai, governador (de crianças), amo, pedagogo; padre, papa, título honorífico atribuído aos dignitários da igreja" < grego páppas,ou 'palavra expressiva infantil, dirigida ao pai ou ao avô; termo de respeito dirigido a...

Pergunta:

Na frase «Ele tinha o cabelo incrivelmente crespo», a que subclasse pertence o advérbio incrivelmente?

Será um advérbio de modo?

Cordialmente.

Resposta:

Pode classificar-se incrivelmente como advérbio de grau, pelo menos, no atual contexto escolar de Portugal.

Atendendo à sua quase sinonímia com muito em associação com adjetivos, na construção analítica do grau superlativo absoluto, tem cabimento a classificação de incrivelmente como advérbio de grau, conforme a definição do Dicionário Terminológico, recurso destinado a apoiar o estudo do funcionamento da língua nos ensinos básico e secundário de Portugal1. Exemplos:

(1) Ele tinha o cabelo muito crespo.

(2) Ele tinha o cabelo incrivelmente crespo.

Os exemplos (1) e (2) mostram que tanto muito como incrivelmente marcam o alto grau da propriedade denotada pelo adjetivo crespo.

Contudo, noutra perspetiva, incrivelmente é classificado como advérbio avaliativo de situação2, que ocorre quer como modificador de frase («Incrivelmente, o deputado não participou no debate»), quer como modificador do grupo adjetival, na construção do grau superlativo absoluto («o discurso foi incrivelmente longo» = «... muito longo»)3.

 

1 Numa perspetiva tradicional, aceitava-se que os advérbios em -mente, como é o caso de extremamente – como incrivelmente, também empregado na construção analítica do grau superlativo absoluto–, eram advérbios de modo, muito embora outros assim sufixados figurassem noutras subclasses – por exemplo, somente e unicamente, entre os advérbios de exclusão. Cf. J.M. Nunes de Figueiredo e A. Gomes Ferreira,