Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Considere-se a frase:

«É chegada a hora da partida.»

Qual a voz verbal desta oração? É possível existir voz passiva com verbo de ligação e intransitivo?

Obrigado

Resposta:

Não se trata da voz passiva, mas sim de uma construção antiga (um arcaísmo) do verbo chegar, equivalente ao pretérito perfeito simples do indicativo:

(i) «É chegada a hora da partida.» = «Chegou a hora da partida.»

O verbo é intransitivo e, portanto, não tem voz passiva.

Sobre este uso, frequente com chegar e outros verbos na Idade Média, dizia a filóloga e linguista brasileira Rosa Vírgínia Mattos e Silva (1940-2012) o seguinte1:

«Com um subconjunto de verbos classificados como intransitivos, ocorriam no período arcaico e até, pelo menos, no século XVI, sequências constituídas de ser + PP [= particípio passado], para expressão do "acto consumado" [...], ou seja, do aspecto concluído ou perfectivo. São verbos tais como: nascer, morrer, falecer, passar (= "morrer"), chegar, ir, correr (= "passar o tempo"). Veja-se, por exemplo, o refrão desta cantiga de Pai Gomes Charinho:

Idas som as frores
d'aqui bem com meus amores!

e o início desta de Pedr'Amigo de Sevilha [...]:

Quand'eu um dia fui em Compostela
em romaria, vi ũa pastor
que, puis fui nado, nunca vi tan bela.

A autora citada apresenta, entre outros exemplos medi...

Pergunta:

Recentemente fui informado que a palavra reconceção e reconceber não se encontram dicionarizadas.

Ora, trata-se, no essencial, de «tornar a conceber». Há alguma razão para que este prefixo não possa ser utilizado, tornando a palavra como portuguesa?

Há muitos exemplos de palavras em que a (possível) utilização do prefixo não se encontra nos dicionários, todavia há palavras constituídas com o re que estão presentes, como por exemplo, o verbo rever («tornar a ver»), reconhecer («voltar a conhecer»).

Agradeço a atenção.

Resposta:

As palavras em questão estão corretas.

O prefixo re- é acessível a qualquer falante para formar derivados, sobretudo de verbos e nomes de evento relacionados com esses verbos. Isto significa que, muitas vezes,o uso de re- é equivalente ao de expressões adverbiais como «outra vez»,«de novo» ou «novamente». É, portanto, legítimo formar reconceber e reconceção.

Como bem observa o consulente, há muitas palavras prefixadas com re- que decorrem de uma necessidade pontual e, não tendo uso sistemático, não se  encontram, por isso, dicionarizadas.

 

1 Lê-se em Graça Rio-Torto et al., Gramática Derivacional do Português (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 49): «O prefixo re- acopla-se preferencialmente a bases verbais, explicitando repetição, iteração do que estas denotam (recobrir, reeditar, reconstruir, reincidir). Em virtude da sua semântica, que implica a repetição de um EVENTO , e não de uma ENTIDADE (*remesa, *retelhado), este prefixo não seleciona bases nominais, a não ser quando eventivas (reeducação, reelaboração). O valor de iteratividade e de recursividade de re- (cf. rematricular ‘matricular de novo, voltar a matricular, matricular pela segunda vez’, retelhar ‘telhar de novo, voltar a telhar’) pode expandir-se para um valor conexo, como o de intensidade, derivado do de iteração: recurvo ‘bastante curvo’, resseco ‘duas vezes seco, muito seco’, revelho ‘muito velho’).»

 

 

Pergunta:

Gostava de conhecer a etimologia da expressão «tens cada uma».

Poderiam explicar-me, por favor, qual é a origem dela e os possíveis usos? Muito obrigada.

Resposta:

Não foi possível dispor aqui de dados factuais sobre a génese e difusão de «ter cada uma», mas trata-se de uma expressão idiomática que, como outras, tira partido do uso de pronomes pessoais de 3.ª pessoa, de outro tipo de pronomes e de adjetivos no género feminino.

Encontram-se, a par do caso em apreço, outros exemplos idiomáticos de uma, em que esta forma parece referir-se vagamente a um elemento omitido (elipse), interpretável como «coisa» ou uma outra palavra do género feminino1:

«tens (com) cada uma» = «tens cada ideia/resposta/reação» (exprimindo surpresa, censura, rejeição; é possível ocorrer a preposição com);

«todos à uma» = «todos ao mesmo tempo» (como se todos tivessem uma mesma vontade);

«não dar uma para a caixa» = «ser incapaz de dar resposta a um assunto ou a uma tarefa» («não acertar nunca»);

«não dizer/responder uma nem duas»: «não ter nenhuma reação, não dar resposta  ou satisfação».

Também figura na expressão «de/das duas, uma», em referência a duas opções ou duas condições: «das duas, uma: ou comes a sopa, ou não tens sobremesa.»

Igualmente se fixou na locução descontínua «à uma...  à outra», que equivale a «por um lado... por outro...»: «Ele foi duramente criticado: à uma, porque não fez o que devia; depois, porque ocupa um lugar de responsabilidade na empresa.»

Como foi dito no começo da resposta, outras formas pronominais e adjetivais no género feminino são recorrentes na linguagem idiomática:

«Agora é são/vão ser elas!» (quando se fala das consequências de uma alguma imprudência ou de algum erro);

«(andar, viver, estar) na boa vai ela» («ter uma vida despreocupada, divertida e até irresponsável; expressão geralmente depreciativa);

Pergunta:

Gostaria de saber se existe alguma regra que obrigue a escrever todos os números por extenso numa ata?

Resposta:

Em Portugal, no âmbito da legislação em vigor, não existe disposição que obrigue a escrever por extenso os números que ocorram no texto de uma ata.

Com efeito, se, em várias áreas de atividade ou administração, os números continuam a escrever-se por extenso, é porque tal prática parece decorrer de normas internas decorrentes de razões já identificadas em 2002 no Ciberdúvidas por Rui Pinto Duarte: por um lado, a maior segurança que dá a escrita por extenso e, por outro, a tradição notarial.

A publicação do novo Código do Procedimento Administrativo em 2015, conforme o Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, não trouxe alterações ao art.º 34.º, que, relativo às atas de reunião, não inclui nenhuma indicação quanto à necessidade de escrever os números por extenso.

Pergunta:

Na minha profissão, sendo hispanofalantes a maioria dos meus alunos, deparo-me sistematicamente com o que me parece ser um uso indevido da preposição por (e as suas contrações), mas não tenho a certeza de como lhes explicar esta questão.

Vejo muitas vezes formações como:

O jogo foi cancelado pela tempestade. (devia ser «por causa da tempestade»)

Estamos confinados pela Covid. (devia ser «por causa da Covid»)

Não posso sair pela porta, visto que não tenho a chave. (pretende-se dizer «tenho de ficar em casa por causa da porta»)

A lei foi escrita pelo presidente, que cometeu um crime. (pretende-se dizer «por causa do crime do presidente»)

Os erros nas duas últimas frases parecem-me particularmente graves; gera-se confusão com as preposições de movimento e com os agentes da passiva. No entanto, há outras situações em que, aparentemente, podemos usar tanto por como «por causa de»:

A caravela, pelas suas características, era a embarcação ideal para navegar naquelas condições. (ou "por causa das suas características")

O livro, pela sua dificuldade, tem de ser lido por partes. (ou "por causa da sua dificuldade")

O empregado, pela sua experiência, devia ser promovido. (ou "por causa da sua experiência")

Como posso explicar em que casos posso ou não usar ambas as alternativas?

Muito obrigado desde já.

Resposta:

Como em espanhol o agente da passiva e a construção causal são muitas vezes homónimas, consistindo num grupo preposicional introduzido pela preposição por, é necessário recorrer à interpretação, operação que pode não dar o resultado esperado. É, pois, de prever que haja sempre deslizes dos hispanofalantes.

Mesmo assim, depois de um verbo na passiva («foi cancelado») ou verbos de movimento como sair ou entrar, compatíveis com um complemento preposicionado por no sentido de «através» («saí/entrei pela porta»), uma estratégia1 será a de o estudante hispanófono pensar na sua língua materna e substituir a construção de por causativo pelas locuções espanholas a causa de ou por causa de, conforme se pode concluir da leitura da Nueva Gramática de la Lengua Española (Real Academia Espanhola, 2010. p. 750; tradução livre):

«Os grupos preposicionais introduzidos pela preposição por são os que expressam de maneira mais característica a noção de CAUSA. O termo regido pode ser nominal (por simple curiosidad «por simples curiosidade»; por verdadero placer, «por verdadeiro prazer») ou oracional (por haber mejorado,«por ter melhorado»; porque le interesa, «porque lhe interesa»)[...] Se bem que as CAUSAS se distingam dos AGENTES (em geral,pessoas ou animais), pode haver uma sobreposição entre ambas as noções quando lhes é atribuída certa capacidade de atuação e decisão, como em Yo no grito , yo quedo anulado por las sombras (Donoso, Pájaro)[2]. A possibilidade de alternância entre por e por causa de e a cau...