Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Li com curiosidade os esclarecimentos dados por José Mário Costa, no tocante ao termo inglês jeans e à sua incorporação na nossa linguagem comum. Mas resta-me uma (ciber)dúvida: feito este inevitável aportuguesamento de uma palavra destituída de género, na sua origem, como classificá-la, agora?

Substantivo masculino (como é corrente), ou feminino (como o género de roupa – «as calças» – a que pertence)?

As raízes francesas da palavra jeans são bastante plausíveis, tendo em conta a provável derivação do nome da cidade italiana de Génova, muito associada ao fabrico dos tecidos usados nesta roupa; derivação esta que tem a sua origem na designação francesa para a mesma cidade – Gênes.  Chegados assim a jeans, por corruptela de tradução, percebe-se que os franceses atribuam o género masculino à palavra, uma vez que ela se situa no grupo, também masculino, denominado pantalons.  Mas será esta influência razão suficiente para legitimar a atribuição do mesmo género à roupa que, entre nós, se insere no universo (feminino) das “calças”?

Eis a questão.

Cordial e reconhecidamente.

Resposta:

O anglicismo jeans é geralmente classificado como nome dos dois géneros (masculino e feminino) nos registos dicionarísticos – são casos recentes os registos do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e do Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa.

Poderá, como propõe o consulente, atribuir-se à palavra importada o género que terá o seu sinónimo, processo conhecido como atração sinonímica. Sob este prisma, sendo jeans a denominação de um tipo de vestuário que se chama calças, do género feminino («as calças») então, lógico será atribuir ao estrangeirismo o mesmo género.

Contudo, importa também ter em conta a história da palavra, e neste caso não só não é despicienda a via por que foi transmitida ao português, como também não são de descurar certas tendências (que podem ser contraditórias) da própria língua de chegada. Neste sentido, observa-se que, em português, os anglicismos têm tendido a receber o género masculino, como já apontava um estudo de 20052:

«Normalmente, aos nomes comuns do inglês é atribuído o género masculino, podendo dizer-se que esse género é atribuído por defeito. É por essa razão que nomes como flash, ketchup e software têm género masculino.»

E os autores do estudo acrescentam:

«[...] a respeito da atracção sinonímica, encontramos vários contra-exemplos no próprio corpus REDIP, : os estrangeirismos bookshelf, goal-average e helpdesk ocorrem com o género masculino, não obstante poderem ser associados às palavras vernáculas [do género feminino] prateleira, média e secretária, respectivamente.»

Cabe tam...

Pergunta:

Uma pergunta muito concreta: devemos dizer «o médico está de estetoscópio no pescoço» ou «o médico está de estetoscópio ao pescoço»? Qual o critério de escolha, nestes casos, entre «ao» e «no»?

Resposta:

As duas construções estão corretas, mas «ao pescoço», no sentido de «pendurado à volta do pescoço», pode ter uso mais frequente do que «no pescoço» em certos contextos.

No Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, regista-se a locução «ao pescoço»:

«pescoço, ao: depois de ter as mãos cortadas, mandaram à cidade com um escrito ao pescoço. – Vieira, Cartas, Clássicos Sá da Costa, I, 28).»

A mesma obra inclui a expressão «pôr ao pescoço»:

«pôr ao pescoço: pôs um colar ao pescoço e mirou-se ao espelho (adornou o pescoço com, enrolou à volta do pescoço).»

Uma consulta da secção histórica do Corpus do Português, de Mark Davies, permite observar que a locução «ao pesçoço» é mais frequente depois de nome (214 ocorrências) do que «no pescoço» no mesmo contexto (148 ocorrências). Esta diferença pode não ser significativa porque pode decorrer do contexto sintático: com efeito, ocorrerá «ao pescoço» se o verbo for, por exemplo, atar («atar alguma coisa a outra»).

Mesmo assim, importa assinalar também que «trazer ao pescoço» conta mais exemplos (45) no referido corpus do que «trazer no pescoço» (2). Acrescente-se, em contrapartida, que, entre vários dicionários consultados1 , a maioria regista «(estar) com a corda no pescoço», o mesmo que «estar numa situação complicada», mas no Dicionário Priberam acolhe-se esta forma a par de «com a corda ao pescoço» e de «com a corda na garganta».

Poderá aqui propor-se que a escolha entre «ao pescoço» e «no pescoço» decorre de um contraste semântico-referencial, entre conceber a suspensão de algo ...

Pergunta:

Existe a palavra regressível? Não encontro referência dela nos vários dicionários que consultei.

Obrigado.

Resposta:

A palavra regressível não tem registo em dicionários aqui consultados, mas é uma palavra bem formada e, portanto, correta.

Porém, o facto de irregressível («que não admite regresso») ter presença em vários dicionários (por exemplo, Priberam e Infopédia, com o sentido de «que não pode regressar») é indicativo da possibilidade de empregar regressível, com significado equivalente ao de reversível, «que pode voltar atrás».

Regressível tem, de resto, uso, como ilustra a seguinte passagem:

«[...] [A]s populações [...] procuraram nos populismos crescentes reformulações inspiradas pela memória das antigas soberanias, parecendo ignorar que a circunstância mundial não é de regra regressível.» (Adriano Moreira, "A dúvida", Diário de Notícias, 15/02/2017).

Pergunta:

Nos livros de registos da paróquia de Ega (Condeixa-a-Nova) encontrei um lugar chamado Casal do Fagalhana. Tentei saber o significado desse nome mas nada encontrei que me pudesse esclarecer pelo que recorro ao Ciberdúvidas para mais uma tentativa.

O nome encontrei-o mencionado em documentos, durante o século XVIII até ao princípio do século XIX.

Obrigada pela atenção

Resposta:

Não foi possível obter informação sobre o nome em questão.

Trata-se de um topónimo composto, constituído pelo termo descritivo casal, que frequentemente ocorre na toponímia de Portugal no sentido de «pequeno povoado» ou «conjunto de pequenas propriedades», e o nome Fagalhana, sobre o qual as fontes consultadas2 são omissas.

No entanto, é possível que Fagalhana seja uma alcunha (no Brasil, apelido), isto é, um nome de pessoa atribuído por próximos (família, vizinhança, meio profisisonal), de caráter jocoso e até depreciativo. As alcunhas são frequentemente criações expressivas nem sempre de fácil interpretação, como será o caso com este nome, que parece ter ficado esquecido3.

 

1 Ver Cândido de Figueiredo, Novo Diccionario da Lingua Portuguesa, 1899, s. v. casal (a edição de 1913 está disponível numa versão em linha com o título Dicionário Aberto).

2 Consultaram-se a Revista Lusitana (1887-1941), o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado, e o Tratado das Alcunhas Alentejanas (2013), de José Martins Ramos e Carlos Alberto da Silva.

3 Não há registo de Casal do Fagalhana no Reportório Toponímico de Portugal Continental (1967), nem na 

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo ir pode ser conjugado como «nós imos» e «vós is/vades» no presente do indicativo.

Essas formas são aceites?

Resposta:

A forma vades faz parte parte dos quadros de conjugação verbal do português contemporâneo. Já a forma imos («nós imos») é tida por arcaísmo e regionalismo, o mesmo acontecendo com is («vós is»)1.

Vades é a forma de 2.ª pessoa do plural do presente do conjuntivo (no Brasil, subjuntivo). É incerto que esta forma se use ou se tenha usado em português com o valor de 2.ª pessoa do plural do presente do indicativo, mas na Galiza não parece desconhecido o emprego dialetal de vades no lugar de ides2.

Imos é uma forma arcaica e regional da 1.ª pessoa do plural do presente do indicativo, cuja forma mais corrente e padrão é vamos. Is é também a alternativa arcaica e regional a ides na 2.ª pessoa do plural do presente do indicativo3.

 

1 Ver Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966, s. v. ir.

2 Manuel Ferreiro, Gramática Histórica Galega, Edicións Laiovento, 1996, p. 329.

3 Ver Rebelo Gonçalves, op. cit.