Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Não me parece que haja controvérsia quanto à normal culta pressupor que uma pessoa se sente «ao piano», jamais «no piano», quando se quer expressar que se tenha sentado no banco do instrumento para executar uma obra musical. Depois desse estágio, começam minhas dúvidas.

Sei que Napoleão Mendes de Almeida acolhe «tocar ao piano» e condena "tocar no piano". Entretanto tocar (ou executar) "no piano" (executar uma obra por meio do instrumento) é indiscutivelmente errado no que tange à normal culta?

Além disso, quando a construção se transforma um pouco e se faz uso de "execução" ou "performance", então também "execução no piano" e '"performance no piano" são construções condenáveis, tornando-se imprescindível o uso de "execução ao piano" e "performance ao piano"?

Muito obrigado!

Resposta:

Se a pergunta é relativa à utilização do piano, o uso indiscutivelmente correto é «tocar piano», sem qualquer preposição.

Mas é possível «tocar ao piano», quando se refere a interpretação de uma peça musical com uso de um piano – ou seja, «ao piano»:

(1) «Se ao menos tivesse uma irmã, inteligente e poética! Fazia-o suspirar, cerrar os olhos, a ideia de uma mulher de alma romântica, que o amasse, recebesse, reconhecida, a revelação das suas sensibilidades e para o acalmar lhe soubesse tocar ao piano melodias de Weber ou árias de Mozart!» (Eça de  Queirós, A Capital, 1925, in Corpus do Português).

(2) «A Gioconda tocava ao piano o seu Chopin, Noturno n.° 2» (Erico Veríssimo, O Tempo e o Vento, parte 3, tomo 2, ibidem).

Quanto a «sentar-se ao piano», é expressão elíptica por «sentar-se ao piano para/a tocar (este instrumento)»:

(3) «De repente, sai do quarto, vem à sala de visitas, grita pela irmã, fá-la sentar ao piano, obrigando-a a tocar a "Bamboula [...].» (Lima Barreto, Diário Íntimo, ibidem)

Que levantem reservas quanto a «sentar-se no piano» é mais discutir uma questão de ambiguidade – a  expressão pode entender-se literalmente, como «sentar-se em cima do piano» – do que achar-se em presença de uma incorreção. Na verdade, ao contrário do que diz o consulente, o gramático Napoleão Mendes de Almeida não condenava «tocar no piano», muito pelo contrário, pois censurava «ao piano», que, segundo ele, era um galicismo a evitar (Gramática Metódica da Língua Portuguesa, p. 292):

Pergunta:

Se alguém escrever «andaste comigo à escola?» está a cometer algum erro?

Bem sei que a expressão «andaste comigo na escola?» é mais frequente, mas a primeira sendo mais antiga está formalmente incorreta?

Obrigado.

Resposta:

A expressão em causa, que não foi possível encontrar atestada noutra fonte que não a da pergunta que é feita, tem cabimento na comunicação mais informal, mas arrisca-se a ser vista como um erro noutros contextos. Em situações que requeiram menos familiaridade, emprega-se a expressão mais corrente: «andaste/andou/andaram comigo na escola».

Pode tratar-se de um caso de analogia com «ir à escola». Contudo, é importante assinalar que o verbo andar ocorre em muitas expressões populares, e aparece em algumas como abreviação de «andar a apanhar» no sentido de «andar a colher» ou «andar à procura»: «andamos aos figos», «andava à azeitona», «andou à amêijoa». Um exemplo deste último caso:

(1) «Cheira a maresia. Na maré baixa há centenas de vultos na água, andam à amêijoa. » ("Bruno Vieira Amaral no lugar do morto", Público, 21/04/2017 )

A esta construção pode associar-se uma expressão que exprima companhia: «andava comigo à amêijoa», ou seja, «andava comigo a apanhar amêijoa» ou «na apanha da amêijoa». É possível que esta construção tenha contaminado «andar (com alguém) na escola» (equivalente a «ser colegas na mesma escola»), e daqui tenha resultado «andar com alguém à escola» – mas não se encontraram fontes seguras que legitimem esta hipótese.

Observe-se ainda que a falta de dados sobre a construção não permite confirmar que seja mais antiga que «andar com alguém na escola».

 

N. A. (07/06/2021) – Um consulente identificado, a quem agradeço a partilha, comunica-me que a expressão «andar à escola» encontra registo numa edição de 1902 do livro Cantos populares portuguezes, de...

Pergunta:

Há, notadamente, diferenças na grafia dos nomes dos países e das cidades no Brasil e em Portugal, como Irã e Irão; Moscou e Moscovo, Liechtenstein e Listenstaine/Listenstaina. Gostaria de saber o verdadeiro porquê disso.

Parece-me – mas não sei se estou certo disso – que as formas europeias são tentativas de um aportuguesamento maior, para talvez enfatizar o gênero do nome do país, e que as formas brasileiras são, limitadamente, tentativas de aproximar a grafia e a fonética da forma local.

Estou certo disso? Qual o verdadeiro motivo dessas diferenças?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se de diferentes formas de adaptar legitimamente os topónimos em questão. O Brasil e Portugal são países que estão politicamente separados e, portanto, foi inevitável que essa realidade política tivesse repercussão em vários planos linguísticos, designadamente quando se tratava de fixar nomes estrangeiros que, até ao momento da separação, tinham pouca ou nenhuma tradição em português.

Contudo, não se pode aqui confirmar inteiramente as grandes tendências que o consulente propõe a respeito das duas variedades.

Com efeito, começando por Irã, esta é adaptação do francês Iran, que em Portugal passou a Irão, por razões que não são óbvias, mas poderão ir ao  encontro do que o consulente classifica  de tentativa de «um aportuguesamento maior, para talvez enfatizar o gênero do nome do país». Na verdade, sendo nome masculino («o Irã»), poderia parecer estranha a terminação , geralmente identificada com o género feminino. Mas também pode ter ocorrido a analogia com os casos como Afeganistão, Indostão, que se referem a países ou  territórios vizinhos do Estado assim chamado. São conjeturas que não se levam mais longe nesta resposta.

Sobre Listenstaine/Listenstaina, nota-se este nome tem tido certa instabilidade. Em Portugal, tem-se usado Liechtenstein, apesar de, pelo menos, desde 19402, se registar Listenstaina como forma vernácula. Mesmo assim, mais recentemente o Código de Redação do português para a União Europeia optou por Listenstaine, cuja sílaba final -ne em português soa quase como o -n final da forma alemã.

Quanto à forma Moscou, tida por francesismo, parece ter tido uso em Portugal, ma...

Pergunta:

"Má-fama" ou "má fama"?

Por exemplo, «uma mulher de má fama» ou «uma mulher de má-fama»?

Resposta:

Escreve-se «de má fama», sem hífen e no sentido de «com má reputação» (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).  O nome fama, sem adjetivação, tem geralmente sentido favorável, mas igualmente ocorre a expressão «boa fama», também não hifenizado.

Assinale-se que dicionário da Academia das Ciências de Lisboa inclui esta expressão no artigo de fama, como sinónimo de reputação:

«3.Opinião pública sobre uma pessoa ou coisa.REPUTAÇÃO. Os produtos desta empresa têm muito boa fama. O rapaz tem má fama por causa do seu  comportamento e da vida que leva. Casa de má [fama]; pessoa de má [fama]; ter boa, má [fama].»

Note-se, porém, que o adjetivo afamado, correspondente a fama, entra na formação dos adjetivos mal-afamado e bem-afamado, ambos grafados com hífen (cf. Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, do Instituto Internacional da Língua Portuguesa).

Pergunta:

«O Manuel, tarimbado em discursos, tomou a palavra.»

«Em» é a regência correcta de tarimbado?

Como sempre, grato pelos vossos esclarecimentos.

 

O consulente escreve de acordo com a norma ortográfica de 1945.

Resposta:

É uso correto.

Tarimbado é um particípio adjetival (de tarimbar1), que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista como brasileirismo com o significado de «que é experiente, que tem tarimba». No entanto, a consulta de outros dicionários portugueses não confirma que se trate de palavra apenas usada no Brasil (cf. também Infopédia  e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

Quanto à construção de regência, segundo fontes brasileiras, associa-se-lhe a preposição em, conforme indica Celso Pedro Luft no seu Dicionário Prático de Regência Nominal:

«TARIMBA s.f. TARIMBADO a., s.m. em: Ter tarimba [experiência]/ser tarimbado em algo. “Antigo e tarimbado em qualquer ramo de atividade” (Aurélio, V. veterano, 3).»

A mesma preposição é atestada no Dicionário Michaelis.

 

1 O verbo tarimbar significa prestar serviço como militar; ser soldado» e deriva (ou melhor, é a conversão verbal) de tarimba, que, além de denotar um «estrado de madeira que serve de cama aos soldados no quartéis e postos de guarda» ou uma «cama rude e desconfortável», significa também «vida de soldado» e, por extensão metafórica, «experiência de vida» (cf. dicionário ...