Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Há alguma tendência para considerar o mais-que-perfeito simples «mais passado» do que o mais-que-perfeito composto ou vice-versa?

Por exemplo: «O Manuel foi dar uma volta de automóvel; antes disso, tinha lavado o carro; ainda antes, estivera a pensar no que havia de fazer» ou «O Manuel foi dar uma volta de automóvel; antes disso, lavara o carro; ainda antes, tinha estado a pensar no que havia de fazer»?

Obrigado.

Resposta:

Não há diferença entre as duas formas de pretérito mais-que-perfeito, a simples (lavara, estivera) e composto (tinha lavado, tinha estado): ambos marcam um intervalo de tempo anterior a outro intervalo passado, como se assinala na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 524/525):

«Na maioria dos seus casos, o pretérito mais-que-perfeito simples é praticamente equivalente ao mais-que-perfeito composto [...], muito mais frequente. [...] Corroborando esta equivalência, é possível que os dois tempos coocorram com o mesmo valor temporal: cf. "A Ana tinha visitado o avô, mas não lhe dissera que havia uma maneira de ele sair daquela situação."»

O que se observa na escrita é que ocorrem as duas formas, provavelmente com o intuito estilístico de evitar a monotonia:

(1) «Ah! Era tarde. Muito tarde. Ela bem via que o tinha perdido. Quisera resistir? Quisera fazer--se desejar? Coitada! Que infelicidade!» (João Gaspar Simões, Pântano, 194, in Corpus do Português, de Mark Davies).

(2) «Foi por eles que soube que " seu Jusa " se tinha enforcado e ficara todo um dia pendurado na corda amarrada na trave do tecto da loja [...]» (Castro Soromenho,

Pergunta:

Sempre me pareceu que devemos escrever «dependurar em», mas tenho visto, nomeadamente em textos poéticos, a forma «dependurar de». Está correta? A minha impressão está errada?

Obrigado, desde já.

Resposta:

É uso correto.

Nos dicionários de verbos consultados para dar esta resposta, indica-se que dependurar tem a mesma sintaxe que pendurar, verbo que constrói regência com em, de e sobre1.

Em textos literários do português de Portugal, atesta-se o uso de de associado ao particípio passado dependurado:

(1) «Até com uns pedaços de grilhões dependurados do pulso, e uma espada erguida na mão» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, in Corpus do Português);

(2) «"Ferrageiro e gebo" rugia, entre dentes, ao descobri-lo, dependurado do smoking, a olhar absorto para a casaca dum criado» (João Gaspar Simões, Pântano, 1939, ibidem);

(3) «Acudindo de longe, o Palma vem encontrar o velho dependurado da trave do casebre» (Manuel da Fonseca, Seara de Vento, 1958, ibidem).

 

1 Cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Celso Pedro Luft, no seu Dicionário Prático de Regência Nominal dá exemplos: «“3. TDpI: pendurar-se de ... Estar suspenso, dependurado ou pendente: Pendurar-se de um galho de árvore. Um filho pequeno pendura-se-lhe do seio. // Pendurar-se em, ...

Pergunta:

Li este texto onde surge a palavras "pageres" e "pager" que tudo indica, atendendo ao contexto, tratar-se de um tipo de embarcação (na Índia séc.XV ou XVI:

«Então [Vasco da Gama] mandou aos batéis que fossem roubar os pageres que eram dezasseis e as duas naus,...»

E, mais à frente:

«...Então o capitão-mor mandou a toda a gente cortar as mãos e orelhas e narizes e tudo isto meter em um pager, em o qual mandou meter...»

Não encontrei o termo em nenhum dicionário nem enciclopédia que não fosse com o habitual significado de "pager", palavra inglesa. Por isso recorro a vós solicitando que me possam esclarecer sobre o assunto.

Muito obrigado.

Resposta:

É uma variante de paguel ou paguer, «antiga embarcação da Índia» (cf. Infopédia  e Dicionário Priberam, bem como o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado1). As formas registadas nos vocabulários ortográficos são paguel e paguer2.

No Glossário Luso-Asiático (1919), de Sebastião Dalgado (1855-1922), pode ler-se o seguinte artigo, que carece certamente de alguma revisão nos dias de hoje (mantém-se a ortografia original):

«PAGUEL, pajer (ant.). Antiga embarcação de carga, na Índia meridional. Os dicionários do malaiala e os glossários não registam nenhum vocábulo correspondente; é porem muito verosímil que estivesse em voga no Malabar, ao tempo dos nossos descobrimentos, pagala, equivalente ao marata bagalā (concanim bagló), que quere dizer «uma embarcação arábica de especial feitio», e representa o árabe baqalā, usado no Mar Vermelho, conforme [Henry] Yule [orientalista escocês], para designar uma grande embarcação, construída de teca da Índia. É possível que baqalā seja corrupção do hispânico bajel, baxil ou baixel. Convêm notar que o marata tem pagār, que podia corromper-se em paguel;...

Pergunta:

Há um vernáculo para buffet? Aportuguesar a palavra francesa não deu muito certo, de sorte que soa muito mal aos ouvidos.

Tentei usar pasto, ceia, vocábulos referentes a comida, mas lembrei-me que buffet tem mais o sentido de um serviço de alimentação prestado em eventos de diversos tipos, como casamentos ou bailes de formatura.

Resposta:

Com o mesmo tipo de significados que buffet – ou já aportuguesado como bufete e bufê1 –, é difícil encontrar um termo vernáculo equivalente, com uso estável*.

Observe-se que os dois aportuguesamentos do galicismo não têm a mesma datação e configuram até certa divergência semântica. Com efeito, pelo menos, já desde o século XVII que se regista bufete na aceção de «espécie de mesa, aparador», como empréstimo de uma adaptação provavelmente castelhana do francês buffet2. Na passagem do século XIX para XX, associa-se-lhe o significado de «mesa, em que se servem refrescos, licores, etc., aos convidados de um baile ou festa»3, o mesmo com que buffet era bastante corrente na referida época. Este uso do galicismo também voltou a ser adaptado ao português, sob a grafia bufê.

Poderá, portanto, aceitar-se que buffet encontra em português, como forma equivalente, o seu aportuguesamento seiscentista, bufete. Contudo, dada a ambiguidade deste último, o emprego de bufê tem maior exatidão, posto que se aplica apenas a uma maneira de organizar uma refeição. Mesmo assim, outras formas mais vernáculas parecem possíveis, embora com menos estabilidade4. Curiosamente, é de assinalar  que o próprio francês buffet acaba por ser traduzido por ele próprio num dicionário francês-português, o da Porto Editora (disponível na Infopédia).

 

1 dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista a forma bufete com a variante bufê, em ambos os casos, aportuguesamentos do francês buff...

Pergunta:

Em textos antigos, não é raro ver o ponto e vírgula sendo usado em orações coordenadas sindéticas explicativas. Exemplo disso é o seguinte trecho de um conto de Machado de Assis publicado originalmente em 1881, chamado "Teoria do medalhão":

«De oitiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular ideias novas, e é radicalmente falso.»

Além disso, ainda hoje é muito comum ver o ponto e vírgula sendo uso antes de orações aditivas/copulativas. Quanto a isto, aqui mesmo no Ciberdúvidas há um ótimo exemplo, numa resposta dada em 1998 pelo falecido José Neves Henriques: «Na academia aprendi jogos; e lutas que incluem defesa pessoal.»

Em todas as gramáticas que consultei, no entanto, as únicas orações coordenadas sindéticas em que o uso do ponto e vírgula parece ser considerado aceitável são as conclusivas e as adversativas. Assim, gostaria de saber a opinião de vocês sobre esta questão.

Principalmente no caso das sindéticas explicativas, chegamos de fato ao ponto em que conectá-las com o ponto e vírgula pode ser considerado errado ou inadequado? Ou é simplesmente algo que caiu em desuso (como o próprio ponto e vírgula, aliás)?

Para terminar, agradeço a todos os colaboradores deste site, que me ajudaram não só a esclarecer diversas dúvidas, mas também a expandir meus horizontes no que se refere ao uso da nossa língua.

Resposta:

No primeiro caso, o ponto e vírgula1 justifica-se pela razão que o consulente bem identifica, e,sobretudo, quando tem certa extensão o período que abrange a oração explicativa, adversativa ou copulativa.

Não se trata, portanto, de um uso errado nem inadequado, atendendo a que vem referido num livro recente – Pontuação em Português (Guerra e Paz, 2020), de Marco Neves –, onde se lê:

«O ponto e vírgula é uma alternativa ao ponto e à vírgula (como o próprio nome indica). Tem duas funções. Serve para:

♦ organizar frases de grande dimensão – caso em que substitui o ponto;

♦ organizar enumerações em que os elementos estão em linhas separadas ou já incluem vírgulas lá pelo meio – caso em que substitui a vírgula.»

Sobre a primeira das funções identificadas, o autor citado acrescenta:

«Na frase seguinte, o ponto e vírgula permite organizar a frase de grande dimensões substituindo um ponto: [exemplo] "Uma das maiores dificuldades com que me deparei foi a inexistência de registos escritos; embora existissem algumas notas soltas, não havia um verdadeiro registo de ocorrências."»

Note que, no exemplo acima, o ponto e vírgula marca uma relação assindética, em que se subentende "pois" ou o "porque" explicativo.

No caso da frase de José Neves Henriques, o ponto e vírgula permite sublinhar a função aditiva da conjunção e.

Agradecemos as palavras de apreço do consulente.

 

1 Antes da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, era frequente escrever ponto-e-vírgula, forma hifenizada que constituía a norma brasileira. Atualmente, grafa-s...