Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se as expressões «barrar a manteiga no pão» / «barrar o pão com manteiga» estão ambas corretas.

Quanto à segunda, não tenho qualquer dúvida.

Muito obrigado!

Resposta:

Ambas os usos estão corretos.

O segundo é indiscutivelmente correto, mas o primeiro, embora não pareça ter registo em dicionários ou gramáticas1, é aceitável, visto que barrar ocorre como sinónimo de espalhar em construções como «manteiga (que é) fácil de barrar (em bolos/no pão/em tostas)» ou «manteiga para barrar ((em bolos/no pão/em tostas)». Além disso, não se conhece comentário especial ou preceito normativo que impeça ou desaconselhe usos como o de «barrar a manteiga no pão». 

Barrar, no sentido de «cobrir, revestir, untar», é um derivado de barro (cf. Dicionário Houaiss).

1 Foram consultados o dicionário da Academia das Ciências, o Dicionário Prático de Regência Verbal de Celso Pedro Luft, o Dicionário Gramatical de Verbos de J. Malaca Casteleiro e o Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses, de Winfried Busse.

Pergunta:

Sendo hálux (1.º dedo do pé) a forma preferível a hallux, gostaria de saber o plural para hálux.

Muito obrigado pelo excelente serviço prestado.

Resposta:

A palavra hálux é um substantivo masculino dos dois números, ou seja, não se altera no plural (cf. dicionário da Infopédia e Dicionário Priberam).

É vocábulo que ocorre nas seguintes aceções: «1 Rubrica: anatomia geral. o dedo grande do pé. 2 Rubrica: anatomia zoológica. o primeiro dedo das patas traseiras dos animais» (Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Que nome se deve usar para designar a qualidade do que é abstrato? O termo "abstratividade" existe?...

Muito agradeço uma resposta a estas questões e a indicação do termo mais adequado para o que pretendo.

Obrigada!

Resposta:

 Há registo de abstratividade, mas para denotar a «qualidade do que é abstrativo» (cf. Dicionário Priberam).

A palavra mais óbvia será, portanto, abstracionismo, que significa «qualidade ou caráter de abstrato».

Note-se, porém, que abstracionismo é corrente nas seguintes aceções:

«1 Uso: pejorativo.utilização excessiva do modo de pensar abstratamente as coisas. 2 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: filosofia.tendência presente em inúmeros sistemas filosóficos a considerar, de forma ilegítima, as abstrações criadas pela mente (representações, conceitos, categorias etc.) como realidades efetivamente concretas e objetivas [Conceito crítico formulado pelo filósofo e psicólogo norte-americano William James (1842-1910).] 3 Rubrica: história da arte. o mesmo que arte abstrata» (Dicionário Houaiss)

Como abstracionismo é, portanto, uma palavra com grande carga cultural, uma forma menos ambígua (e menos sintética) de fazer referência à propridade abstrata de alguma coisa é empregar expressões como «caráter/natureza abstrato/a».

Pergunta:

Qual o oposto de saciante? Existe?

Resposta:

Tendo em conta o registo de insaciado, no sentido de «não saciado», que é um derivado prefixal de saciado, afigura-se legítimo utilizar saciante como base de derivação prefixal, para obter insaciante (= «que não sacia»), ainda que esta seja palavra sem registo dicionarístico.

Pode também sugerir-se o uso de «não saciante», «insatisfatório», «desconsolador», «insípido», ou de perífrases como «que deixa com fome», «que não sacia» , entre outras formas de expressão mais analíticas.

Pergunta:

Relativamente à variação dos ditongos ou/oi, presente em palavras como ouro/oiro, poder-se-á afirmar que o ditongo oi é de cunho popular?

Obrigado.

Resposta:

Embora possa atribuir-se a muitas formas com oi certo caráter popular, deve assinalar-se que este ditongo chega a tomar o lugar de ou na norma culta. Por exemplo, as formas dous e cousa passaram a dois e coisa, respetivamente, tanto nos usos correntes como nos registos formais e na expressão literária do português em geral.

O ditongo oi terá surgido como uma inovação popular, alternando com ou, muitas vezes pronunciado como vogal simples – "ô", configurando um fenómeno de monotongação –, em casos como ouro/oiro, touro/toiro e ouço/oiço. Há meio século, num estudo dedicado aos ditongos ou e oi, observava o filólogo e linguista Lindley Cintra o seguinte1:

«A grande expansão da variante [ọ] parece-me característica dos falares populares regionais de uma zona de fronteira entre a região em que se produz a monotongação e aquela em que se conserva o ditongo (nas suas variantes [ọ] ou [ạ]). Se dos falares regionais passássemos para a língua comum e para a literária [...] encontraríamos uma convivência, à primeira vista extremamente confusa e por isso mesmo ainda mal descrita pelas gramáticas, de formas com ou  e formas com oi, importadas certamente de falares de características diversas. O emprego de umas ou de outras está longe de ser em muitos casos indiferente, como em algum sítio ...